Capítulo 8
PERSPECTIVA DE SUPERAÇÃO DA SOCIEDADE CAPITALISTA
O Homem e a Emancipação Humana
Se a questão é o homem, é preciso compreender de onde ele veio e para onde caminha. Assim é que, quando em meados do século XIX, o movimento operário, faz emergir o que então se chamava, era designado como movimento operário e que viria a ser chamado de movimento proletário, etc., abria-se uma perspectiva de que a superação dos limites da auto-constituição do homem fossem rompidos. Essa é uma questão muito antiga, é pré-marxiana, mas Marx é o herdeiro dela, além de ser a antena mais perspicaz teórica e praticamente que soube compreender e apanhar o movimento da história.
Na realidade, para responder à questão acima é preciso apanhar o processo da divisão radical entre o público e o privado, e do homem concentrado sobre si próprio, ou seja, do homem entendido como um ser egoísta, fechado em si mesmo e que atua movido exclusivamente por esse lance do egoísmo, nesse processo, a razão se põe a partir desse egoísmo havendo, por conseguinte, um ardil da razão que movendo o egoísmo se afirma enquanto racionalidade.
Esta questão está posta hoje mais do que nunca pois quando se passa a ouvir que é o mercado, que é a concorrência, que é a livre iniciativa, que é a competência que deve reger o universo da sociabilidade, nesse instante se está sob as formas mais puras, no sentido de isentas de qualquer outra intervenção, do nódulo fundamental da sociabilidade do capital. Isto porque, é na sociedade regida pelo capital onde se gerou a concepção de homem como ser isolado, cujos limites são os limites do seu egoísmo, e que a liberdade é o exercício desse egoísmo e é o controle desse egoísmo no mundo político. Por isso que o Estado é, neste sentido, o controlador do egoísmo. Logo, é preciso organizar, através de uma solução contratualista qualquer, uma ordenação tal que os egoísmos não levem à recíproca aniquilação entre os indivíduos, pois se o egoísmo só conhece, por limite, o seu próprio egoísmo, cada um vai até o limite máximo do seu egoísmo.
Assim, partindo da lógica, ou seja, da concepção de que a lógica do capital concebe o homem como um ser egoísta, isto é, movido pelos seus próprios interesses a expressão máxima fundamental como atributo desse ser é a propriedade privada. Isto está na Constituição Francesa de 1793, que data assim chamada democracia burguesa, cujo princípio que a norteia é a divisão do homem em dois contextos: o cidadão da vida pública e o burguês da vida privada: ao primeiro é conferida a graça dos direitos públicos universais; ao segundo, o direito a consubstanciação dos interesses econômicos particulares e desiguais. Assim, sob a designação expressa de direito do cidadão e direitos do homem, o conteúdo dos primeiros é a participação na comunidade política, especificamente, na sociedade política (no Estado); enquanto que os últimos são os direitos do membro da sociedade civil, isto é, do homem circunscrito ao egoísmo. Dessa maneira, a característica decisiva da sociabilidade do capital, isto é, da ordem burguesa, é a propriedade privada.
Por outro lado, é preciso não esquecer que a propriedade privada gerou um desenvolvimento fantástico, ressaltado positivamente por Marx. Mas, colocava também que a questão daí para a frente, era superar essa forma de propriedade transformando-a em social. Assim, a transição socialista é o instante, não definitivo, que opera a passagem da propriedade privada para a propriedade social. A essência da transição socialista é constituída por isto.
A questão que se coloca a partir desse instante é: como se daria esse processo na análise de realidade, ou seja, como se daria, de acordo com a análise de realidade feita por Marx, a passagem da propriedade privada para a propriedade social? Esta análise aparece ainda nos escritos de juventude e será mantido por Marx pelo resto da vida. Está formulado, por exemplo, na Ideologia Alemã, que é de 1845/46, onde está colocado que “ocorrerá no instante em que existir um universo gigantesco de riqueza, riqueza material e espiritual”.
É preciso entender o que significa para Marx riqueza material e espiritual. Na realidade, significa o aperfeiçoamento de todas as capacidades ou capacitações humanas e espirituais, como inteligência, intelecto, sensibilidade, ou seja, não um princípio qualquer para além ou transcendente à dimensão material, mas um princípio decisivo, um elemento absolutamente nítido, cuja expressão maior, mais imediata é o fato de que o ser humano tem pensamento, tem consciência. Isto porque o simples fato de falar gera a prova disso, uma vez que a linguagem é a consciência ativa, é a consciência se fazendo, se pondo, se colocando. Na realidade, a fala é a consciência universal.
Assim, quando esse mundaréu gigantesco de riqueza material e espiritual estiver de um lado e do outro a pobreza absoluta, que é praticamente a situação em que se encontra hoje a humanidade; e quando se tem ao mesmo tempo um universo magnífico de riqueza material e espiritual em praticamente metade da humanidade e a outra parte é o repositório da miserabilidade tanto material quanto espiritual, no contexto da formação capitalista que despossuída, não apenas dos bens materiais, mas sobretudo dos bens espirituais, as condições para o deslanche de um processo revolucionário estão postas.
É interessante, para melhor compreensão desse processo, fazer um parênteses para explicar o que é bem material. Para Marx, a produção e reprodução dos bens é a objetivação do gênero humano. O ser humano se põe, enquanto tal, como um ser especial porque ele não ganhou de presente de alguém. A natureza é o enxoval inicial para a formação desse ser, mas o homem não habita mais na natureza, o homem habita o mundo que ele cria, a partir das transformações da natureza, produzidas por seus atos teleológicos no processo de trabalho. Nesse processo o ser social, o homem, vai construindo a sua própria humanidade.
Por outro lado, é preciso não esquecer que o homem tem dimensões biológicas das quais ele não pode se apartar, basta pensar na nutrição e na sexualidade. Mas, nem a nutrição, nem a sexualidade se resolve de forma natural, mas sim de forma social, ou seja, humana, isto é, criada por ele próprio, pelo homem. E a partir do momento em que uma parte da humanidade tem toda imensa riqueza material e espiritual criada pela sociedade, e outra parte destituída dessa riqueza material e espiritual, as condições para o deslanche de um processo revolucionário estão postas. Isto porque, na medida em que se entende por riqueza material e espiritual, o mundo posto pelo homem, o que acontece com o pobre, ou seja, aquele que é desprovido da riqueza material e espiritual gerada socialmente, além de ser pobre, ele está destituído da morada do homem. Isto porque, o pobre, o expropriado, o desvalido de que se extrai a mais valia, é aquele que perdeu, antes de mais nada, o habitat do homem. Ele perdeu as condições reais de ser homem. Esta é uma dimensão, um aspecto, absolutamente, decisivo no processo de construção da humanidade do homem, uma vez que, o mundo do homem é feito de dimensões materiais e espirituais. Assim, o homem destituído de mundo é o homem privado de humanidade, isto é, das condições materiais e espirituais de ser humano. Marx diz isso, literalmente, nos seus textos.
Além do que, é decisivo que seja a maioria que esteja destituída das condições materiais e espirituais para que o processo revolucionário deslanche. Mas é preciso que essa maioria se levante revolucionariamente como forma de recuperar a sua condição humana. Ela não faz a revolução simplesmente para deter o poder político. O poder político é detido simplesmente como mediação instrumental. Aliás essa é também uma questão que foi esquecida, que foi perdida pelos herdeiros do pensamento marxiano, ou seja, a concepção marxiana de que só poderá existir comunismo, o reino da liberdade, quando se extinguir a política e o Estado. Nisto Marx era categórico, não existe liberdade, não existe comunismo, não existe transição socialista que não aponte para o fim da política e do Estado.
É preciso esclarecer que essa tese marxiana não tem nada a ver com a tese anarquista de cancelamento do Estado a um dado instante. Em Marx, o Estado, a política se tornam inútil, ou seja, se tornam inutilidades. Assim, a auto-constituição, ou construção do homem só é possível de se tornar realidade a partir dessas duas destituições: da propriedade privada e da destituição da política. É a partir da destituição da propriedade privada na direção da propriedade social e a destituição do Estado, da política que conduz à emancipação humana, ou seja, a emancipação da humanidade. Isso ocorre porque a política e o Estado são parcela das forças sociais alienadas num instrumento para além da sociedade.
Dessa maneira, a discussão não é sobre este ou aquele Estado que está distante ou acima da sociedade. É da natureza do Estado, de sua essência fundamental tomar distância em relação a sociedade civil, porque ele é um usurpador de energias sociais. Ele, o Estado, é o conjunto da alienação social. Isto porque o Estado recolhe um coágulo da sociedade como um todo e o volta em benefício e ao mesmo tempo contra a sociedade civil. Assim, a organização da sociedade civil na articulação com o Estado é a preservação das relações privadas de produção, ou das relações estatizadas de produção. O que leva a um novo elemento, qual seja, socialismo não é estatismo, porque a transição socialista não é a passagem da propriedade privada para a propriedade estatal, mas sim, a passagem da propriedade privada à propriedade social, isto é, a propriedade do conjunto dos trabalhadores, ou seja, dos produtores que a regem livremente. Com relação a sociedade comunista vale a pena citar de Marx uma passagem na Ideologia Alemã, onde ele afirma, categoricamente que: “o comunismo não é para nós um estado que deve ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade terá que se dirigir. Denominamos comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento ressaltam de pressuposto atualmente existentes”. E mais ainda, “ o comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores pelo fato de que subverte os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio anteriores, e de que aborda pela primeira vez conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que os precederam, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos unidos. Sua instituição é, portanto, essencialmente econômica, a produção material das condições dessa união; faz das condições existentes condições da união. O existente, que o comunismo está criando, é precisamente a base real para tornar o impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em que o existente nada mais é do que um produto do intercâmbio anterior dos próprios indivíduos”. Daí que, os elementos para a instauração da nova sociedade ou sociedade humana são gerados no seio da sociedade atual, ou seja, nesta sociedade capitalista.
Logo, para que o homem possa atingir sua emancipação humana é preciso entender que no processo histórico de desenvolvimento da sociedade, cujo ápice no momento em que Marx construiu seu pensamento e a sociedade burguesa²¹, o proletariado e a riqueza são contrários e como tal constituem uma totalidade, não basta dizer que são duas faces de um todo, porém, são ambas formações do mundo da propriedade privada e é preciso saber que lugar determinado ocupa cada um deles nesta contradição. A propriedade privada, enquanto propriedade privada, enquanto riqueza, é forçada a perpetuar por isso mesmo, a do seu contrário, o proletariado.
A propriedade privada encontrou a satisfação de si mesma e é o lado positivo da contradição. Enquanto inversamente, o proletariado é forçado como proletariado, a abolir-se a si mesmo e ao mesmo tempo abolir o seu contrário, a propriedade da qual depende e que faz dele proletariado. Constitui o lado negativo da contradição a inquietação no seio da contradição, a propriedade privada dissolvida e dissolvendo-se.
A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade nessa alienação; encontra nela uma confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda classe sente-se aniquilada na alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana. É, para empregar uma expressão de Hegel, no aviltamento, na revolta contra este aviltamento, revolta para a qual aquela classe é empurrada pela contradição entre a sua natureza humana e a sua situação na vida, que reside a negação franca, categórico total desta mesma natureza.
No seio desta contradição, o proprietário privado é, pois, a parte conservadora, o proletário, a parte destruidora. Do primeiro emana a ação que mantém a contradição, do segundo, a ação que a aniquila.
É verdade que, no seu movimento econômico, a propriedade privada se encaminha por si mesma para a sua dissolução; mas o fará unicamente através de uma evolução independente dela, inconsciente, que se realiza contra a sua vontade e que a natureza das coisas condiciona: só o consegue engendrando o proletariado enquanto proletariado, a miséria consciente de sua miséria moral e física, consciente de sua desumanidade, e, portanto, como desumanização que supera a si mesma. O proletariado executa a sentença que a propriedade pronuncia contra si mesma ao engendrar o proletariado, assim como executa a sentença que o trabalho assalariado pronuncia contra si mesmo ao engendrar a riqueza de outrem e a sua própria miséria. A vitória do proletariado não significa de modo algum que ele se tenha transformado em ser absoluto da sociedade, porque ele só é vencedor ao abolir-se a si mesmo e a abolindo o seu contrário. Depois disso o proletariado desaparece tal como a propriedade privada, o seu contrário que o implica.
Se os autores socialistas atribuem ao proletariado este papel histórico, não é de maneira alguma por considerarem o proletariado como deuses, mas ao contrário do que a crítica parece crer. Antes pelo contrário. No proletariado plenamente desenvolvido encontra-se consumada a absorção de toda humanidade, até da aparência de humanidade nas condições de vida do proletariado encontram-se condensadas todas as condições de vida da sociedade atual no que elas podem ter de mais inumano. No proletariado, com efeito o homem perdeu a si mesmo, mas adquiriu ao mesmo tempo, consciência teórica desta perda; além disso a miséria que ele já não pode evitar nem mascarar, a miséria que se lhe impõe inelutavelmente – expressão prática da necessidade – obriga-o diretamente a revoltar-se contra tal inumanidade; é por isso que o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo.
Ora, o proletariado não pode se libertar sem abolir as suas próprias condições de vida. Não pode abolir suas próprias condições de vida sem abolir todas as condições de vida inumanas da sociedade atual, o que resume a sua própria situação. Não é em vão que ele passa pela rude, mas fortificante escola do trabalho.
Não se trata de saber que objetivo este ou aquele proletário, ou até o proletário inteiro, tem momentaneamente. Trata-se de saber o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a saber de acordo com este ser. O seu fim e a sua ação histórica são-lhe traçados de modo tangível e irrevogável pela sua própria situação e por toda a organização da sociedade burguesa atual.
21 – Marx E Engels, in – “ A SAGRADA FAMÍLIA” Ed. Martins Fontes, págs., 53/56.