Capítulo 8
PERSPECTIVA DE SUPERAÇÃO DA SOCIEDADE CAPITALISTA
Relação liberdade/necessidade na humanização
A questão da liberdade está colocada em praticamente toda a obra de Marx sob a designação de emancipação humana, ou de ponta a ponta ainda sob a forma de emancipação do trabalho. Habita todos os textos da juventude e habita também o capital. Habita em especial os Grundrisse de ponta a ponta. Para o efeito de ilustração é interessante ler umas duas ou três linhas de uma entrevista que Marx deu a Bert Andreas que era jornalista representante de um jornal americano em Londres. A questão é a seguinte, em 1878, portanto, quase às vésperas da morte de Marx que ocorreu em 1883, ele foi entrevistado por este jornalista, que fez a seguinte pergunta: então, qual o objetivo da Internacional, do movimento dos trabalhadores a nível internacional? Marx respondeu: em termos de objetivo só o geral é comum, porque cada país tem seus próprios problemas! Daí o entrevistador voltar a perguntar: é o poder operário, o poder proletário, o estado proletário, é uma dessas expressões? Aí, Marx respondeu categoricamente: não! É a emancipação do trabalho! É a liberdade humana!²²
A questão da liberdade, da emancipação do trabalho é a questão chave do pensamento de Marx. E isto foi perdido desde a sua morte, mas está sendo recuperado agora nos últimos anos e essa questão que foi perdida é a razão pela qual a direita tomou conta e tentou demonstrar que a liberdade política é maior liberdade possível. Sobre essa questão fundamental é que todos os militantes de esquerda, até a décadas atrás, diziam que estar é uma questão burguesa. Na realidade, eles partiam das seguintes perspectivas: como pensar a liberdade se não se tem o que comer? É evidente que não ter o que comer é um grave, um decisivo um impedimento da liberdade, é uma grave manifestação da falta de liberdade. É a falta de liberdade em que sentido? É a falta de liberdade de se conservar vivo.
É preciso destacar que a concepção de Marx parte precisamente da seguinte questão: emancipação do trabalho, ou seja, emancipação humana! Porque para Marx trabalho não é medição, isto é, não se trabalha para poder comer, na realidade, o trabalho é a categoria fundante do ser social. É como afirma Lukács“ o trabalho, de fato, enquanto categoria que se explicita no ser social, só pode alcançar a sua verdadeira existência no complexo social que se mova e se reproduza processualmente. (…) o trabalho tem um significado fundante para a especificidade do ser social, do qual fundadas as determinações. Todo fenômeno social, por isso pressupõe direta ou indiretamente, às vezes muito indiretamente, o trabalho com todas as suas consequências ontológicas”.
Além do mais, ressalta Lukács, que um dos resultados mais importantes a que chegou com relação a esta questão é que: “os atos do trabalho necessária e continuamente, remetem para além de si mesmo”. Destaca ainda que no processo histórico do seu ser para-si do social ocorre diferentemente do mundo orgânico. Isto porque, enquanto na vida orgânica as tendências para preservar a si e a espécie são reproduções no sentido estrito, específico, ou seja, são reproduções daquele processo vital que perfaz a existência biológica de um ser vivo, enquanto, portanto, neste caso, só mudanças radicais no ambiente provocam, via de regra, uma transformação radical desses processos! Porém, diferentemente ocorre com o ser social, porque, afirma Lukács: “no ser social a reprodução ampliada, por princípio, explica mudanças internas e externas”. E que “as etapas singulares do estágio inicial frequentemente duraram dezenas de milhares de anos. No curso de cada uma delas, ocorreram mudanças contínuas – nos instrumentos, no processo de trabalho, etc – As quais, por menores que tenham sido tiveram consequência que em certos momentos nodais, se revelaram soltos, transformações qualitativas”.
É muito importante destacar nesse processo que “o fundamento ontológico objetivo destas transformações que exibem uma tendência desigual, mas no conjunto progressiva consiste no fato de que o trabalho teologicamente, conscientemente posto, contém em si, desde o início, a possibilidade (dynamis) de produzir mais do que o necessário para a simples reprodução daquele que realiza o processo de trabalho”.
E ainda uma outra questão destacada por Lukács é o fato de que “ uma das consequência necessárias do trabalho é a fabricação de instrumentos à exploração das forças naturais (uso do fogo, domesticação de animais etc.), o que dá lugar em certos estágios de desenvolvimento, aqueles pontos nodais (saltos qualitativos) que transformam qualitativamente a estrutura e a dinâmica da sociedade singulares. Esta capacidade de o trabalho ir, com seus resultados, para além da reprodução do seu escultor, cria a base objetiva da escravidão, antes da qual existia apenas a alternativa de matar ou adotar o inimigo feito prisioneiro”. O que é mais interessante é que continua Lukács, da escravidão “o caminho leva através de várias etapas ao capitalismo, onde este valor de uso da força de trabalho se torna a base todo o sistema”. É por isso que, “ qualquer que seja o horror ideológico, frente à expressão da mais valia, que se apodere de alguns teóricos, destaca Lukács o reino da liberdade no socialismo, a possibilidade de um tempo livre com sentido, também repousa sobre esta peculiaridade fundamental do trabalho, produzir mais do quanto é necessário para a reprodução do trabalhador”.
Assim, é na sociedade capitalista que o trabalho assume uma fisionomia corrompida, porque é a sociedade onde o trabalho vira meio, mediação e através desse meio o homem se animaliza.
O trabalho, para Marx, se coloca num patamar completamente diferente porque o trabalho é a primeira necessidade do homem, é no trabalho que o homem se faz homem. Portanto o trabalho é a primeira necessidade do homem porque corresponde ao seu processo de construção do ser social para-si, ou seja, corresponde à construção de sua humanidade. Na realidade, o trabalho é a primeira necessidade do homem porque é através dele, tendo partido da animalidade, que o homem chega a ser homem.
Daí porque, é o trabalho colocado como substância da humanidade do homem, e o trabalho como meio de subsistência, é a forma de alienação própria da sociedade regida pelo capital, ou seja, da sociedade capitalista, porque é nesta sociedade que o trabalho produz o homem, mas ao mesmo tempo, o desproduz, no próprio processo de produção.
Para Marx, a questão básica do trabalho é que é o trabalho que constrói o homem, o ser social, por isso o trabalho corresponde a uma necessidade intrínseca do homem. E isto para Marx é liberdade! A liberdade é a possibilidade de se autoconstruir, mas como o homem não se constrói isoladamente, pois isoladamente nenhuma pessoa é homem, só se pode ser homem na interrelação com os outros homens, no processo de desenvolvimento de suas atividades.
Dessa maneira, quando o homem está impedido de trabalhar, ou a trabalhar como meio de subsistência, ele está cortado na sua essência de modo que ele não é. O que é um trabalhador para Marx? É aquele que perdeu a sua condição humana! Não é para deter o poder do Estado, o poder político, porque para haver realmente emancipação do trabalho é preciso suprimir o Estado. Isto porque, liberdade é a possibilidade de autoconstrução do próprio homem. Assim a liberdade não é como afirma Engels: “ consciência das necessidades”. Isto é a verdade apenas como momento abstrato, como um aspecto do autoconstrução, porque não é saber das necessidades, mas é saber quais as possibilidades de resolver essas necessidades.
Assim, essa questão colocada por Engels sobre a liberdade, ou seja, que é a “consciência das necessidades”, é um dos equívocos ou limites dele, ou da estreiteza com que enfrenta a questão. É na realidade como ele dizia no enterro de Marx: “eu e os companheiros aqui somos apenas homens de talento, apenas homens de talento, porque gênio era Marx”. Isto está escrito na oração fúnebre do enterro de Marx proferida nessa oportunidade.
É preciso destacar que liberdade não se resolve meramente na consciência, porque na hora em que se está morrendo de fome, se se tomasse consciência da necessidade se seria livre, mas não é assim! Porque ser livre é a possibilidade de efetivação! Mas não de qualquer efetivação, da efetivação de cada um, porque não se pode efetivar-se a não ser na relação com o outro, só se pode ser livre no interior de uma sociedade livre, porque cada um é o seu gênero, ou seja, a alma do homem é a sua generidade, isto é, é a sociedade. A alma do homem é social, o homem tem alma, tem espírito, mas não no sentido religioso, cristão. O homem tem alma no sentido de auto-construção dele próprio. Isto porque, o homem constrói sua alma, o seu espírito. Mas essa alma, esse espírito, o homem não nasce com ela, ele a constrói, mas ela não é um princípio distinto do seu corpo, isto é, esta alma não tem um princípio espiritual, ela é uma realidade, uma espiritualidade de sua existência.
Dessa maneira, liberdade e necessidade se ligam no pensamento marxiano. Mas a liberdade e necessidade do idealismo Alemão são duas categorias radicalmente separadas, porque onde há liberdade não há necessidade, onde há necessidade não há liberdade. Em Kant isto é extraordinariamente nítido. A liberdade é o não condicionamento, é o não condicionado, porque liberdade é a situação em que independentemente de qualquer determinação extensiva a cada um, se faz a escolha sem nenhuma injunção, a não ser os parâmetros da razão. Assim, liberdade é o exercício livre da razão, e em decorrência da qual se desdobra um ato efetivador em consonância com a escolha feita. Livre é, portanto, uma escolha que se faz sem que o ato de opção esteja compelido sob qualquer forma. Logo, a necessidade é a ausência de liberdade, é compulsão que se realiza independentemente da escolha. Por exemplo: respirar, o homem respira por necessidade, não é um ato livre, porque se ele não respirar morre. Assim, ninguém pode parar de respirar, porque o coração bate por necessidade e não por liberdade.
Essa separação radical entre liberdade e necessidade leva a noções formais e abstratas de liberdade, particularmente, a ideia de liberdade absoluta, a concepção de que o homem não pode ter nada que o limite, ou seja, que limite o exercício de sua liberdade. Mas, a necessidade de uma limitação, porque se se tem que comer para poder viver, logo, não é uma escolha da pessoa se alimentar ou não, porque se não o fizer morre, portanto, ela faz um cumprimento de sua necessidade. Decorrentemente, não se come por liberdade, mas por necessidade. É esta coisa que faz Kant chegar ao seguinte raciocínio: “o homem é livre no exercício da razão (ele chama isso de liberdade), mas o homem ao mesmo tempo é heterônomo, isto é, não livre, porque ele tem necessidades biológicas, afetivas, etc”. Assim sendo, nesse raciocínio, o homem vive um contraponto entre liberdade/ necessidade. Mas isso não é uma contradição dialética em Kant, é uma contraposição radicalizada, porque é a liberdade fechada em si mesma. Mas, o homem tem essas duas coisas, então como é que fica a questão? É aí que surge a concepção trágica do homem, porque Kant tem uma concepção trágica do homem, é o homem dilacerado entre liberdade e necessidade. De modo que, a prescrição de Kant colocada por Luciem Goldman em sua obra “Origens da Dialética”, é que propõe ao homem o seguinte: ” estabelecer no mundo a felicidade de Deus na terra pela liberdade, no entanto, sabendo que esse procedimento em função das necessidades não será alcançado”. Então, o homem deve agir para instaurar o universo divino de vida na terra, sabendo que isto não é possível. Daí a ideia de trágico, dilacerado, de impossível.
Diante desse quadro, extrapolando Kant, numa concepção, a liberdade é uma abstração irrealizável, porque a necessidade é uma determinação, um determinismo de tal ordem que, a própria discussão sobre liberdade fica absolutamente inútil. Isto porque, se o homem é determinado de tal forma que não tem escapatória, então, não se tem liberdade. A liberdade é uma ficção.
Porém, diferentemente, em Marx, onde liberdade e necessidade se articulam, naquilo que Hegel denomina e Marx adota, ou seja, elas são “determinações recíprocas” liberdade e necessidade são categorias recíprocas, isto é, nunca se sabe isoladamente o que é cada uma delas, só se sabe o que é liberdade, só se sabe o que é necessidade na interligação entre as duas. Da mesma maneira que, para Hegel e para Marx, por exemplo, relativo e absoluto, não são duas categorias separadas, isoladas como na tradição geral da filosofia. Mas, ao contrário, são momentos de uma só manifestação, de uma só coisa. Da mesma maneira como liberdade e necessidade são momentos de uma só manifestação, porque sem a necessidade não se pode pensar em liberdade, sem as carências humanas, o homem não atua na busca da liberdade. Então, a necessidade passa a ser considerada a base fundamental para a construção da liberdade.
Assim, nessa construção, ou seja, nessa concepção, se extrai da necessidade aquilo que a liberdade é: resolução de necessidades. Necessidades, por outro lado, não são meramente necessidades biológicas, estas são apenas o ponto de partida, porque vão se formando novos níveis de necessidades cada vez mais humanas. Portanto, resolver necessidades, pela liberdade, é criar novas necessidades de padrão, de nível mais elevado. Logo, não há liberdade na pobreza. É absolutamente impossível! Porque se o homem passa o dia inteiro pensando no que vai comer amanhã, para não dizer hoje, que liberdade ele pode exercitar? Nenhuma! É aí que se coloca a questão que está em vários escritos de Marx, principalmente em O CAPITAL, que é a passagem do mundo da necessidade para o império o reino da liberdade. Império da liberdade que é autogestão do homem. É o homem autodeterminado, mas que não supriu jamais o universo da necessidade. Mas, é o enfrentamento racional, voluntário da necessidade.
Na realidade, uma leitura cuidadosa dos escritos de Marx mostra de ponta que esta questão vem rigorosamente posta. Afinal de contas, o que é que é o mundo da liberdade no pensamento de Marx? É o mundo da resolução e da criação de novas necessidades, cada vez mais aperfeiçoadas. Este é o império da liberdade; e resolver necessidades é criar novas necessidade. É se autoconstruir humanamente. Assim, lido adequadamente, ontologicamente, O CAPITAL, se entende, se percebe que ele tem como eixo a questão da liberdade.
Relação entre democracia/liberdade no processo histórico da humanidade
A democracia ganhou seu padrão de realização em finais do século XVIII, nos últimos anos após a Revolução Francesa. Toma-se como referência a constituição francesa de 1793, onde está claro a divisão do homem em duas partes. Ou seja, é lá que a figura humana é dividida em duas partes, uma das partes é chamada de cidadão que recebe determinadas prerrogativas, e a outra parte é o homem. Portanto, há os direitos do homem e os direitos do cidadão, que são distintos, e que são entendidos como articulados, isto é, um complementa o outro, e de fato complementa. Mas, quando se lê os direitos do homem, observa-se que o homem pesado, tomado como referência para estipular os direitos do cidadão, este homem é o proprietário, é o burguês. E entre as prerrogativas está, precisamente, o direito natural do homem à propriedade.
Dessa maneira, isso significa que, quem não tiver propriedade não é homem. Mas, então, poder-se-ia perguntar: o homem que não tem propriedade está excluído da democracia? Não, do ponto de vista burguês, porque não há ninguém que não tenha propriedade! Esta questão foi posta desde Hobbes. Qual a propriedade daquele que não tem propriedade? A força de trabalho, a força de trabalho é uma propriedade que não tem como se tirar do indivíduo. O que é força de trabalho? É a capacidade muscular e cerebral! Esta capacidade é algo que se vende ou se aluga.
A questão que se coloca é: era assim antes? Não! Isto porque o trabalho não era livre antes, basta pensar no esquema feudal onde o homem vivia vinculado à terra. Ele era literalmente vinculado a terra. O senhor feudal não podia dispor de um pedaço de terra tirando os homens dela, quando ele dava de presente, doava, vendia, seja lá o que for que fizesse com o pedaço de terra, os homens iam junto. Da mesma forma que ele não podia dar de presente um conjunto de homens de um pedaço de terra, porque a terra tinha que ir junto. Assim, homem e terra estavam umbilicalmente interligados.
Diferentemente, ocorre na sociedade capitalista porque o que caracteriza este tipo de sociedade é praticamente a ausência de qualquer vínculo e até mesmo de todo e qualquer instrumento de trabalho. Isto porque durante muito tempo e na fase de transição do feudalismo, o camponês conservava a pá, a foice, enfim, alguns instrumentos elementares de trabalho, e ele só era empregado se tivesse esses instrumentos. Na progressão, todos esses instrumentos são tirados dele. Ou então quando um trabalhador urbano que não tivesse serrote, martelo, etc., não poderia ser carpinteiro. A partir de certo momento, se ele tiver esses instrumentos, ele não vai trabalhar, ou seja, não vai ter trabalho. O martelo, o serrote tem que ser jogado fora para ele receber esse mesmo tipo de instrumentos na empresa onde vai trabalhar, agora, evidentemente, não mais pertencentes a ele. É claro que é muito mais do que isso a sociedade civil, ou seja, a isso que se chama de sociedade o indivíduo, a família, as empresas, etc, etc. É onde o conjunto de atividades, cujos resultados são trocados de tal forma, que irradiados esses bem eles suprem material e espiritualmente o conjunto de necessidades em um dado momento.
Por outro lado, é preciso destacar que a sociedade do futuro não é a sociedade privada dos meios de produção, porque essa propriedade será social e será regida pelos trabalhadores livremente associados. Assim, a existência isolada do indivíduo, dobrada sobre as individualidades que só teve limite a liberdade ou outro, ou seja, na sociedade burguesa, a liberdade é por limite os direitos do outro e tem por fundamento a concepção do homem como a individualidade que age simplesmente e simultaneamente circunscrita à lógica do egoísmo e que, no plano político, recebe a estrutura onde o homem se transforma, ou se abstrativa em cidadão. Toda a diferença que existe na sociedade civil, e que é um direito inalienável de cada um, ser o que é e se afirma enquanto tal, ou seja, o burguês se afirma enquanto proprietário, o trabalhador se afirma enquanto carente de propriedade, exceto de sua força de trabalho, mas, em virtude das crises, não tem mercado para colocá-la à venda, assim se torna carente até mesmo de sua única propriedade, aquela que lhe permite sobreviver. Nessa sociedade todos são iguais no universo abstrato da comunidade política, isto é, na sociedade política, que é o Estado.
Assim, a comunidade que é o Estado integral a todos, onde cada um entra fração ideal desse terreno. Mas, se para entrar nessa comunidade política tem-se que ser o outro, isto significa que se tem que abandonar todas as diferenças. Da mesma forma que o outro também abandona as suas diferenças. Então não é cada um que entra, ou seja, cada indivíduo de per-si, mas quem entra é o indivíduo enquanto fração ideal da comunidade política, o cidadão, isto é, a abstração da igualdade. Assim, o que é que o conjunto das abstrações da comunidade política faz? Decide as regras da convivência ao limite, diz qual é a fronteira de um para o outro. Na realidade, é a velha ideia de Hobbes “sem um Estado organizado os homens se entredevoram, porque eles são totalmente regidos pelo egoísmo”, ou seja, “é a guerra de todos contra todos”. Só um limite acordado pelo conjunto poderá ser respeitado. Logo, a ação política é o desenho, e a configuração desse limite é o Estado, que é o mantenedor do respeito pelos limites estabelecidos. Assim, ele deve ser mínimo para não interferir em nada que se faça na sociedade civil. Ora, o que esse Estado faz? Garante o egoísmo! Garante a propriedade privada!
Portanto, esse Estado, essa democracia tão apreciável, sob inúmeros aspectos, surge com uma banalidade. Veja-se, por exemplo, o direito de ir ou vir, o direito de locomoção que soa hoje como um absurdo. É preciso lembrar, porém, que o homem no feudalismo não podia nem ir nem vir, estava preso à terra. O trabalhador urbano dos burgos, o aprendiz, o oficial não podia trocar de lugar. Aliás, o aprendiz pagava ao mestre para aprender a profissão e não podia abandonar a qualquer hora pois o mestre tinha vários aprendizes e o que eles pagavam para aprender fazia parte de sua arrecadação orçamentária.
Dessa maneira, o oficial não podia também abandonar aquela firma e abrir outra, para isso, ele tinha que se submeter a cursos e provas. Tanto assim que, obra prima e título de mestre nascem nessa época. Assim, nada havia nesse período que consubstanciasse a cidadania, porque as formas de dominação estavam estruturadas pela vertebração individual, pessoal. Eram relações de dependência pessoal, o aprendiz e o oficial ao mestre, o mestre, a confraria dos mestres, a confraria dos mestres do poder do burgo, do poder do burgo à coroa, à coroa ao papado.
Esse sistema de organização impede visceralmente formação do mercado. O mercado que isto propicia é demasiadamente estreito para as necessidades do capital. A primeira providência do capital é liquidar com isso, abrir as comportas, ampliar os espaços. A partir daí os espaços são gerais, não há mais fronteiras, consequentemente. Para assegurar, garantir a estabilidade da nova situação. Qual é a nova situação? O império da propriedade privada sob a forma de capital! Como fazer isso? É aí que nasce o que é efetivamente o Estado. Isto porque, até na Monarquia absoluta não se podia falar em verdadeiro Estado, ou em verdadeira política, porque o Estado é o Rei, enquanto o Estado democrático é a representação da configuração de todas as células que formam a grande molécula de um todo abstrato, ou seja, na democracia tem-se assegurada a universalidade do homem na abstração e, simultaneamente, assegurado a concretude das diferenças indi- viduais no plano da sociedade civil. As duas coisas se articulam a partir dos mesmos princípios, porque a liberdade na sociedade civil, como diz Marx, “é a liberdade restrita de uma base restrita”.
Assim, a liberdade na sociedade burguesa é como, diz Marx, “uma gloriosa liberdade no progresso do desenvolvimento humano, mas ela não é o ponto de chegada, ela está muito distante disso”. E ainda afirma Marx: “Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso, embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual”, ou seja, no contexto da sociedade civil, sociedade regida pelo capital logo, a liberdade política não é o ponto de chegada da humanidade burguesa, onde são gerados os elementos que conduzirá a emancipação humana.
Além do que, na sociedade burguesa se caracteriza a relação de propriedade privada, ora, se se pode ser proprietário e se milhões decidem ser proprietários há aqui uma desigualdade que já começou na Revolução Francesa, na franja dos acontecimentos dos fins do século XVIII, quando começaram a surgir questões do seguinte tipo: temos que entender no plano social o que se dá no plano político. Isto é colocado por Graco Babeuf²³, são as primeiras ideias da perspectiva dos trabalhadores que vem precisamente nesse sentido, puramente entender no plano social o que se deu no plano político.
Na verdade, se está incompleta a Revolução Francesa, gritavam Babeuf e outros, ela precisa se completar. E ele pensava exatamente na revolução dos despossuídos como uma extensão sobre o social daquilo que havia se constituído no plano político. Qual era a proposta dele? O comunismo da miséria! Porque era a defesa para todos daquilo que é estritamente necessário para sobreviver, a ele e a seu grupo familiar. Portanto, é o político determinando o social.
Diferentemente se coloca a revolução teórica de Marx, que é exatamente o social que determina o político. Então, a democracia é o instante em que, fechado a dominação capitalista, o capital encontra a sua forma adequada de dominação global. A democracia é a ordem da liberdade que confere ao capital a sua máxima liberdade. No momento histórico em que o capitalismo é a vanguarda da humanidade, os homens procedem e tendem a proceder de tal forma que os seus passos parecem dar razão
a ordem geral em formação. Assim, a liberdade efetivamente é liberdade, a democracia é liberdade, mas ela tem um dado tamanho e quando a perspectiva do trabalho começa a se por teórica e praticamente a afirmativa é: o social é que determina. É aí que Marx formula a colocação de que a liberdade social é mais ampla, mais profunda e mais decisiva do que a liberdade política.
Portanto, não há possibilidade, não tem como aumentar a liberdade política, a liberdade democrática. A liberdade democrática é a perfeição da liberdade política no universo do capital. Na ordem burguesa não existe liberdade política maior do que a democracia, que é o seu ponto final. Mas, a questão é: esta liberdade é toda liberdade possível? É muito fácil responder que não, na medida em que não há liberdade no plano social, porque se alguém morre de fome é porque não há liberdade. Então, a questão da liberdade vai encontrar a sua base real, não é a armação política, mas é a armação social, onde o homem se encontra em relação aos outros homens em recíproca interatividade. De modo que, liberdade é a possibilidade de criar e resolver necessidade, ou seja, de se autoconstruir. Ora, a propriedade privada, o capitalista, a sociedade burguesa foi onde se gerou a liberdade limitada, agora é preciso que ela seja superada para que o homem possa continuar a construir a sua humanidade, ou a sociedade humana.
É preciso destacar que, para Marx social é humano imediato, e como o marxismo não é uma utopia e como Marx abomina as utopias, mesmo porque ele estava se batendo contra diversas utopias. Se bateu contra Saint Simom²⁴; Fourier (*); Proudhon (*) outros. Foi referido anteriormente a Graco Babeuf que não era um utópico, é o primeiro comunista prático. Aliás, Marx dizia: colocar Graco Bebeuf, essa graciosa figura, como precursor das ideias comunistas é estúpido”. Ele dizia ainda: “ só cabe na cabeça de um professor, de um professor alemão”. Quando Marx queria ofender ao máximo, ele dizia que a coisa só cabia na cabeça de um professor ou mais agudamente, na cabeça de um professor alemão.
Consequentemente, a questão de liberdade social é a superação da propriedade privada dos meios de produção. Isto não é utópico. O que importa fazer, o que cabe fase é superar a propriedade privada, transitando para a propriedade social, ou seja, transitando na direção da propriedade social dos meios de produção. Toda a recomendação de Marx é esta, não há nenhuma prescrição se a sociedade será o outro terá que ser assim. Ele diz uma dada passagem: “socialismo ou comunismo é um estágio que supera a situação atual”. O que pode ser eliminado? A propriedade privada. Isto significa superação do trabalho ser medido pelo valor de troca, subentende a eliminação do mercado enquanto praça de valores de troca.
Para reforçar tudo o que foi anteriormente dito é interessante citar uma passagem de Marx que é uma joia do seu pensamento: “alma do homem é social. Só existem homens em sociedade, não existem homens isolados, porque o humano, social nasce da interatividade. Eu sou, portanto, uma parcela do meu gênero. E eu sou aquilo que sei fazer”. Entra nessa questão toda uma análise da divisão social do trabalho.
A questão que se coloca é: quem vai fazer isso? Na formulação de Marx é o proletariado e explica porque. Mas, hoje se nega isso, é preferível dizer que a superação vai ser feita pela perspectiva do trabalho, porque o que Marx chama de proletário pode gerar dificuldade hoje, porque ele pensava no trabalhador fabril que era a vanguarda do trabalho em sua época. Hoje o trabalhador fabril não é mais a vanguarda do trabalho, e é a vanguarda do trabalho que vai fazer a superação. Esta colocação está na Sagrada família, escrita em 1845-46. Hoje o trabalhador braçal é uma coisa arcaica que não dá perspectiva de revolução nenhuma. Porque não é a revolução de Babeuf, para todo mundo ser igualzinho na miserabilidade, porque socialismo é a sociedade da opulência. Não há possibilidade de uma sociedade socialista, uma sociedade verdadeiramente humana sem opulência.
Assim, para a construção da sociedade humana ou humanidade social é preciso ter, de um lado, a montanha gigantesca de riqueza e, de outro, uma população desvalida que, para recuperar sua condição humana, passa a mão, desapropria a minoria. Não é preciso matar, só se ela resistir. Por que a violência? A violência só nasce disso, nasce do fato de que é miserável material e espiritualmente, porque o outro se apropria de mim, se apropria literalmente do meu corpo. A minha violência antiburguesa é uma reação de defesa do humano, plenamente legítima. É um ato de legítima defesa como se diz em direito. A revolução é a recuperação das condições humanas.
Essas colocações são feitas por Marx de uma forma brilhante, e ele dizia mais, com relação a questão ética: “Eu sou o meu gênero, fora do meu gênero eu não sou nada”. Assim, está liquidada a concepção burguesa de homem egoísta, ou seja, a concepção do homem como ser egoísta. Isto está colocado nos Manuscritos de 44, onde ressalta que “eu sou pelo meu gênero, eu me realizo no meu gênero”. Logo, os fundamentos de uma ética marxista estão estruturados nisso: “como sou o meu gênero, quanto mais elevado meu gênero, tanto mais eu me elevo. A minha liberdade, que é auto-construção, não se realiza contra o meu gênero, mas através do meu gênero. O outro não é o meu limite, porque eu me realizo no outro, através do outro e outro e pelo outro. Sem o outro eu não posso ser livre”. Daí se sintetiza a questão da liberdade em Marx. Na realidade, a concepção fundante da ética é que um só se realiza no outro, o indivíduo só pode eticamente proceder quando beneficia o outro. A relação indivíduo/gênero é muito trabalhada por Lukács no seu texto “A ontologia do Ser social”.
²² Ver a entrevista completa “ KARL Marx: Entrevista com o fundador do Socialismo Moderno”. Chicago Tribune/Dezembro de 1878. Bert Andréas. Publicado nos cadernos ENSAIO n 1 – Série Grande formato, Vol. 1 – Marx HOJE. Edit. Ensaio. SP. 1888.
²³ BABEUF, Graco. (1760-1797) revolucionário Francês, destacado representante do comunismo utópico igualitário, organizador das “conspirações dos iguais”.
²⁴ (*) Saint–Simom, E. (1760-1865) e FOURIER, C. (1800-1867) grandes socialistas utópicos franceses.
PROUDHON, P.J. (1809-1865): publicista, economista e sociólogo francês, ideólogo da pequena burguesia, um dos fundamentos do anarquismo. Em 1848 foi deputado da Assembleia Constituinte.