CAPÍTULO IV – UM CAMINHO PARA O COMEÇO
Na última parte do texto de 1843, especialmente a partir do comentário ao parágrafo 305, onde Marx esboça o trânsito para outro tipo de análise, as suas colocações são consideradas como caminho para o começo de uma construção original. Marx contrapõe ao ideal político de Hegel a noção de verdadeira democracia.
A partir do parágrafo 305 Marx começa a discutir as formas políticas e insiste que a questão não é a república ou a monarquia, porque essas formas políticas de conteúdos específicos têm como conteúdo central a propriedade privada. Marx faz uma longa digressão sobre as observações de Hegel, acerca da relação entre a propriedade fundiária, as formas de gestão e correlaciona tudo isso com certas expressões políticas. Para Marx, essa problemática das formas não é falsa, mas também não é decisiva. A decisiva é a problemática dos conteúdos; por isso aponta que o conteúdo central é o substrato econômico: O problema da propriedade. Marx aponta que a alternativa à pura representatividade constitucional, à soberania tal como Hegel a assinala, é a verdadeira democracia. Mas, não qualifica essa verdadeira democracia que, na verdade, é o ponto inicial do que se pode chamar de uma teoria negativa do Estado, desdobrada ao longo de toda a sua obra.
A teoria negativa do Estado aponta para a dissolução do Estado e da sociedade civil, que lhe são coetanos, mas que nesse momento não estão claramente definidas. O que se tem é uma posição de democrata radical, configurada na recusa quer da monarquia constitucional, quer da república burguesa. Tal concepção se fortalecerá quando a propriedade privada for submetida a uma ferrenha crítica. No texto de 1843, essa democracia verdadeira ainda não está devidamente concretizada por Marx. Será um caminho a trilhar a partir de 1844; mas já aí estão postas três ideias fundamentais do pensamento marxiano: a teoria da alienação, o socialismo e a relação com a política, mesmo que estejam ainda pouco desenvolvidas, embrionárias até, são colocadas a partir do parágrafo 305.
Primeiramente, a questão da alienação aparece a propósito da relação entre a sociedade civil e o Estado. Essa questão será analisada com profundidade por Marx a partir de 1844, no texto A Questão Judaica, como desdobramento próprio da ordem burguesa ou da moderna sociedade civil.
A discussão sobre a alienação nesse texto aponta, precisamente, para a infirmação da conclusão de Hegel: Esse Estado que aí está não é o Estado racional; é, antes de mais nada, o Estado que institucionaliza e concretiza a alienação dos cidadãos. Tal temática aparece, ao mesmo tempo, colada à discussão da propriedade privada; mas é ainda de ordem jurídico-política, e precária, pois se detém na relação: forma política e seu conteúdo. Marx não avança nessa discussão, o fecho é dado precisamente com a discussão sobre a verdadeira democracia.
A pontuação a respeito da alienação, emoldurada pela discussão da verdadeira democracia, é que mostra para onde está caminhando o pensamento marxiano; pois este pensador desloca o foco das instituições políticas do terreno político e aponta para a propriedade privada e para o fenômeno da alienação. Por isso, o texto de 1843 é um ponto de chegada, um acerto de contas teórico-metodológico com Hegel e, ainda, um ponto de partida para a discussão da propriedade privada e da alienação, temas que conduzirão o estudo de Marx ao ponto que constitui a base ontológica fundamental do fenômeno social – o trabalho.
É a partir daí que se pode, segundo Marx, fazer uma crítica radical do político. Então, nesse texto, está posto o caminho a ser percorrido em sua trajetória para a compreensão da sociedade; porque a crítica do político, enquanto forma jurídico-política, é insuficiente, sendo preciso desdobrá-la. É uma simples indicação, mas consiste no ponto de partida de uma incansável reflexão que ocupará o filósofo até os últimos dias de sua vida.
Uma questão à qual se faz necessário chamar atenção é a relação entre teoria e prática no pensamento marxiano. Em Marx não existe separação entre essas duas ações, porque na sua construção teórica não é a razão que põe os problemas da vida; a razão pode iluminá-los, apreendê-los, organizá-los e apontar vias de equacionamento, de solução. Além do que, toda atividade vital de Marx vinculava a reflexão à ação política.
Assim, sua ação em relação à teoria e prática, cujo problema remonta a Maquiavel, aparece como problema da vida, para o qual era preciso apresentar respostas. Essa questão se esclareceu quando esteve à frente de um Jornal de orientação política, onde tinha de dar respostas aos problemas apresentados simultaneamente. Nesse momento, foi possível perceber a relação entre a reflexão e a intervenção que precisava ser feita, que não podia ser elaborada no gabinete; por isso, com a problemática da vida, o jornalista e ator político tinha de entender o que estava se passando na realidade concreta. Dessa maneira, a reflexão e a necessidade de iluminação teórica se dão para e pela própria ação.
Logo, não se trata de juntar reflexão com ação; a ação põe demandas de reflexão que não brotam diretamente de si, mas da reflexão, pois constituem um nível diferenciado, um outro tipo de atividade que está imbricado na ação. Nessa perspectiva, diante de um problema de orientação política (do Jornal Gazeta Renana), Marx retira um problema teórico. Tal combinação de intervenção com reflexão não é um apriorismo, um axioma, mas uma condição de seu próprio modo de intervir e de refletir.
O problema, nesse momento, no texto de 1843, era de saber o seguinte: Existem divisões na ordem civil que implicam no particularismo, assim, de que maneira o Estado pode ter garantida a sua universalidade?
O texto de Hegel, que estava sendo analisado, refletia o caldo de cultura da época; mas a própria natureza do texto e o desempenho de Marx, como ator político, demonstravam que a relação teoria e prática estão imbricadas. Marx conseguia combinar organicamente as demandas da ação com as requisições teóricas. Esse problema que estava em Hegel, e em toda a tradição política, também se põe para Marx como um protagonista da luta sociopolítica.
Quanto à ideia de socialismo, já era uma preocupação de Marx quando trabalhava na Gazeta Renana; isto porque faziam eco na Alemanha algumas propostas socialistas de radical transformação do social. Uma proposta de alteração não apenas na forma de distribuir riquezas, mas uma ultrapassagem das estruturas sociais marcadas por classes. No contexto das polêmicas da Alemanha surgem os primeiros pensadores que divulgam propostas socialistas. Marx, então, precisa tomar posição diante dessas ideias, embora confesse, explicitamente, naquele momento, não ter ainda condições de posicionar-se, uma vez que desconhecia a literatura sobre o socialismo.
Marx não se considerava um socialista, mas, ao se negar a debater sobre essa temática por desconhecê-la, coloca questões de ordem política. Ele caminha para esse debate só depois de compreender o processo político da sociedade.
A relação que Marx estabelece com a política não está diferenciada do caldo cultural da Alemanha da época; não é o único pensador a discutir a Filosofia do Direito de Hegel, outros também o faziam, como Arnold Ruge, Moser Hess e, muito caracteristicamente, Engels que (estava na Inglaterra participando do movimento Cartista), por essa época, estava se vinculando ao movimento socialista.
Portanto, o que distingue a relação que se estabelece entre o pensamento de Marx e Hegel é o específico laço que aquele terá com a política.
É para entender o quadro onde se situa a reflexão marxiana que se deve analisar alguns pensadores da esquerda hegeliana, que desempenharam papéis importantes na construção do pensamento de Marx. Dentre os quais está Feuerbach, pensador central na discussão do hegelianismo; e Strauss, que avança no sentido do materialismo, realizando a crítica da religião; embora ambos não atentem para a política. Um outro é Bauer, professor universitário que tivera em 1841-42 um destaque importante nas discussões sobre a realidade prussiana, mas, depois de sua expulsão da universidade, caminhou para uma posição criticista de oposição ao Estado prussiano; porém, não acreditava na existência de qualquer força social capaz de ser dinamizada para opor-se a essa realidade. Bauer, no bojo dos neo-hegelianos, constitui um núcleo que considera apenas os pensadores, e no plano da reflexão, capazes de ultrapassar a miséria do Estado alemão. Esse grupo se denomina “Livres de Berlim”, considerando a massa, o conjunto do povo, inepta para qualquer ação política. Para os participantes desse grupo, somente o criticismo teórico e especulativo seria capaz de dar forma a uma alternativa para o miserável Estado político alemão. No limite, esses neo-hegelianos de esquerda acabaram incorporando toda uma concepção que Feuerbach já superara: A concepção segundo a qual bastava que se construíssem ideias alternativas para estarem dadas as condições às alternativas reais.
Vale destacar que em torno de Bauer passa a gravitar um conjunto de intelectuais que tende, à partida, no plano do pensamento especulativo, realizar reformas que não se dinamizam na realidade. É por isso que a partir de 1844, Marx rompe todos os seus vínculos com Bauer e, no texto A Sagrada Família, submete todo esse tipo de elaboração, reflexão, a uma crítica corrosiva e implacável.
Diferentemente desses pensadores, Marx procura uma alternativa política, voltando-se para o confronto com Hegel, e aceitando, em princípio, a concepção hegeliana da universalidade do Estado e da particularidade dos interesses privados.
Marx aceita o problema colocado por Hegel, mas recusa a solução hegeliana de que é o Estado que instaura, funda e compreende a sociedade civil, sendo o seu elemento universalizador; ou seja, o Estado como demiurgo da sociedade. É precisamente neste ponto que se incompatibiliza com a tradição conservadora da leitura de Hegel, pois considera que a ação política pode levar ao Estado Democrático. Tomando como rumo essa concepção, Marx se descola dos “Livres de Berlim” e rompe com Feuerbach, que despreza a ação política.
Marx não identifica a forma do Estado com o seu conteúdo na concepção de Hegel, porque o Estado hegeliano é a Monarquia Constitucional; mas considera esta uma questão de ordem formal, pois o que importa mesmo é uma ação política para gerir a democracia. É com essa concepção que demarcará seu espaço também em relação a Engels e Hess, uma vez que estes já consideravam a ideia do comunismo. Entretanto, a democracia apontada por Marx ainda não estava muito clara, entretanto, eles se recusa à concepção da tradição conservadora; embora não aceitasse os termos do avanço sociopolítico colocados pelos pensadores, não sabia ainda o que propor. Nesse momento, passa a compor efetivamente a esquerda alemã, ma não por propostas, e sim por recusas.
Em relação à política, Os Manuscritos Kreuznach ainda não apresentam de modo definido a questão da democracia; porém, no ano de 1843, Marx escreve uma crítica referente à Revolta dos Tecelões da Silésia: Glosas Críticas Marginais ao Rei da Prússia e a Reforma Social. É um artigo contra Arnold Ruge, sobre o movimento dos trabalhadores e a sugestão de reforma social sugerida por este intelectual. Nessa crítica, a questão política aparece claramente.
Os Manuscritos de 1843 não devem ser confundidos com os de 1844, intitulado Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, no qual está totalmente delineada a ideia de revolução e de classe social.
É claro que ainda não tem a clareza de ideias que será encontrada nos textos posteriores, mas é exatamente entre a elaboração desses dois textos, Manuscrito de Kreuznach e Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que ocorre a Revolta dos Tecelões da Silésia, momento em que Marx entra em contato com o movimento operário. O movimento dos tecelões oferece a Marx os elementos concretos para a compreensão da questão política e a prova de que a Alemanha não estava perdida. É a partir daí que a ideia de revolução se põe para Marx concretamente.
A Revolta dos Tecelões da Silésia é a primeira manifestação significativa em que se expressa um novo ator social: O proletariado. Este novo personagem aparece no horizonte das concepções marxianas com papel fundamental para o entendimento do processo social. O impacto do movimento dos tecelões torna-se um demarcador na vida cultural alemã.
Nesse momento, Marx já está a caminho da França, onde entra em contato com a literatura francesa de esquerda. A partir dos textos de 1844, o personagem que aparece nas Glosas, enquanto figura emergente da revolta dos tecelões, começa a ganhar concreção. Embora no texto de 1843 não incorpore todas as implicações políticas, já começa a trabalhar com um novo foco e suporte social que, em 1842, não tinha. Assim, em um curtíssimo espaço de tempo, a sua concepção política se concretiza com um caráter que até então não tinha: Um caráter de classe. Esta questão não aparece em 1842, emerge apenas em 1843, mas em 1844 ganha concreção; não por meio de uma requisição intelectual, mas por elementos do movimento social, da realidade. Isto porque o movimento silesiano não aparece para Marx como um fato pontual, isolado, e sim como o sinal de um processo necessário, que modificará o rumo de sua reflexão.
Marx não inventa quando diz refletir sobre o concreto, uma vez que apanha a realidade do próprio movimento social. É a partir daí que a concepção negativa de política toma forma em seu pensamento.
Diante dessa concepção política, é preciso analisar as questões que envolvem a relação de Marx com a tradição contratualista, que localiza em Rousseau os problemas da sociedade civil “a partir do momento em que o primeiro homem cercou um pedaço de terra e disse que lhe pertencia”, fundamento da propriedade privada. Esta questão envolve a discussão direta com Hegel, referente ao método.
Ao criticar Hegel, a impressão que se tem é a de que Marx não faz uso de uma perspectiva dialética, pois não enfatiza a análise do pensamento de Hegel, e sim a do objeto do pensamento. Isto ocorre porque ao proceder à análise dos aspectos lógicos do objeto hegeliano, sua preocupação está mais na crítica da maneira como Hegel vê a lógica do objeto do que no próprio objeto; e ainda a questão de que no texto de 43, Marx trabalha com oposições (do tipo “ser ou não ser” ou “todos participam ou todos não participam”), em lugar de focar as contradições.
Ao refletirmos sobre a visão contratualista, o primeiro nome que normalmente se aborda para entender essa relação é o de Hobbes. De acordo com este pensador, a ideia de Estado natural é aquela onde há uma guerra de todos contra todos e, por isso, se faz necessária a alienação dos poderes em função de um para, precisamente, coibir a eliminação da sociedade.
Entretanto, o grande teórico do contratualismo é Locke; com a ideia da passagem do Estado natural para a sociedade civil, caracterizada diversamente da concepção hobbesiana, posto Locke ser um pensador advindo da chamada “Revolução Gloriosa”, ocorrida na Inglaterra, e da Restauração, onde o contrato serve para validar a Monarquia Constitucional. Locke parte de premissas inteiramente distintas das de Hobbes, mas é a partir daí que a tradição política chega ao ápice com o contratualismo. Depois de Locke, o contratualismo sofre uma transformação, na medida em que o pensamento liberal lokeano entra em crise com as implicações da Revolução Francesa, que traz a proposta de uma relação de igualdade entre os membros da sociedade, superando a proposta liberal contratual Locke.
No caminho de preparação ideológica da Revolução Francesa há algumas ultrapassagens de esquerda do liberalismo, por exemplo, com a concepção de Rousseau. Isto porque, ao contrário de certa tradição liberal – da qual ele mesmo faz parte –, Rousseau será o primeiro grande crítico da democracia moderna, ao formar as concepções do Estado liberal. Hegel também auxilia na superação do contratualismo clássico, na medida em que é tudo menos um pensador liberal. Em Hegel há um fortíssimo contraponto, uma contraface à tradição liberal; não é casual que, em Hegel, o Estado funda a sociedade civil.
O ponto de corte de Marx com a tradição contratualista se dá porque nessa tradição e em Hegel (embora este não seja contratualista) há uma concepção orgânica entre sociedade civil e Estado – o pensamento contratualista clássico pensa a relação Estado e sociedade civil como uma relação orgânica – e, em Marx, não é vista como orgânica, mas como de tensão dialética; ou seja, precisamente por não se tratar de uma relação orgânica é que nas contradições da ordem civil podem ser localizados tanto a gênese do Estado quanto seu caráter coercitivo.
No texto de 43 essa concepção ainda não aparece. O rompimento de Marx com a tradição contratualista ocorre quando indica o Estado como instrumento de alienação; o que não acontece na tradição contratualista; pois nenhum contratualista colocava em questão a propriedade privada; pelo contrário, a sua preservação e generalização são condições do Estado.
Para Marx, de fato, não é a condição desse Estado que importa, mas como se contrapor a esse Estado, uma vez que consiste em uma universalidade alienada; assim, há de se romper com a propriedade privada. Então, na concepção de Marx existe tanto um corte político quanto um posicionamento teórico.
Além do que, para os contratualistas, em função do caráter atomístico da ordem civil, fundada na propriedade privada, o Estado é um instante de universalidade; instante em que o proprietário se põe como cidadão. Marx faz uma desmontagem dessa concepção, explicando que a cidadania é uma cidadania alienada, porque esse Estado é um Estado alienado; pois o ideal político dos contratualistas, de Locke, considerando que a cidadania não pode ser universal, é a de que o cidadão, necessariamente, seja o proprietário.
Em Locke, a concepção é a de que o fundamento da propriedade é o trabalho. Em princípio, todos os homens podem chegar a ser proprietários e, por consequência, cidadãos; mas é apenas “no princípio”, então, Marx rompe com essa concepção. E, ainda, em relação à democracia, para Locke, é composta pelos cidadãos proprietários; logo, só pode ser uma democracia restrita.
A reflexão marxiana sobre a propriedade privada é feita junto com a proposta de democracia, mas primeiro põe em questão precisamente o fundamento dessa cidadania, que vai dar direto na soberania do Estado, uma soberania que não é do povo. No texto de 43, a ideia de povo é pouco clarificada, nebulosa, mas há uma oposição povo/Estado que ao longo da construção do pensamento marxiano vai sendo esclarecida.
A ruptura teórica de Marx com o contratualismo existe na medida em que uma relação, não de oposição, mas de contradição dialética, se faz entre a sociedade civil e o Estado. O Estado só é explicado, só é desnudado se for analisado na sua relação com a sociedade civil, precisamente porque esta não é um todo orgânico, mas uma totalidade dialética, e o Estado é uma representação alienada. Alienada, não no sentido da alienação pelo contrato, mas da alienação por uma instância coercitiva: uma parte do todo que se apresenta como o todo. Daí a universalidade alienada.
A ideia de um sistema onde todos participam vem de Rousseau, sob esse aspecto Marx não é original; a sua originalidade está em vulnerabilizar a concepção rousseauniana, no texto de 43, pela crítica da propriedade privada. A utopia democrática de Rousseau se funda na pequena propriedade. A República de Rousseau não é a supressão da propriedade, mas o contrário, é a sua generalização. Nesse sentido, Rousseau é um crítico do Liberalismo Clássico. Marx se distingue de Rousseau por colocar a concepção da participação de todos, supondo que essa participação não se dará baseada na propriedade. No texto de 43 ainda não avança nessa questão, apenas começa a colocá-la.
Quanto ao método, na discussão com Hegel, Marx não joga com as palavras, as notas que emite são de reflexão a partir da própria fala do autor com o qual se bate. Esse momento de Marx é de experimentação, não usa todo o seu arsenal teórico; está rigorosamente dissecando o seu objeto. Apesar de dialético, mas não o suficiente, faz a primeira grande crítica, começando um caminho de construção ontológica no seu pensamento.
Não há no texto de 43 o conjunto de categorias e a forma que utilizará em 1858-59, que já é a dialética em sua inteireza. Não tem ainda condições de apanhar toda a lógica do seu objeto, mas sabe exatamente o que não quer, e começa a perceber por onde caminhar. Esse texto é o momento de ruptura com toda a tradição filosófica daquele momento.
E, ainda, o tratamento dado no texto de 43, por Marx, é sem dúvida sistemático; trata menos do Estado histórico real que da construção hegeliana de Estado, mas o conjunto de críticas é feito trabalhando por dentro a reflexão hegeliana, com o objetivo de compreender o Estado liderado por Frederico Guilherme IV.
A crítica histórica não se encontra plasmada explicitamente no texto de 43, mas fundamenta-se com a exposição marxiana da limitação do pensamento hegeliano, que transforma categorias históricas em categorias lógicas; ou seja, a história serve no texto para uma dupla mediação: de um lado, à mediação dos conflitos que Marx vinha tendo no plano sociopolítico com a institucionalidade alemã; de outro, à própria filtragem que Hegel faz mistificando categorias históricas em categorias lógicas.
No texto de 43 Marx ainda não está de posse de seu arcabouço para apanhar a lógica do objeto, mas afirma que Hegel não consegue apanhar a lógica do objeto, pois não tem o instrumento central, que seria a análise da dinâmica da sociedade civil.
É possível dizer que Hegel tem uma visão clara da dinâmica da sociedade; era leitor dos clássicos da economia política. Na análise de Marx, fica evidente que ainda não dispõe de elementos para fazer uma crítica nesse nível. Ele sai da Alemanha trazendo ainda sua concepção de filosofia; só a partir de 1844 estudará os problemas de economia política, quando precisa enfrentar as questões da dinâmica da sociedade, enquanto jornalista.
Em 1844, faz as primeiras leituras dos socialistas, de Adam Smith e Ricardo; momento no qual identifica o resultado falso a que chega Hegel, compreendendo que era preciso deslocar o objeto de análise, visão que não consegue ter em 1843.
Entretanto, já no texto de 1843, certas categorias desenvolvidas por Hegel são aceitas por Marx – por exemplo, a relação entre o fenômeno e sua explicação, dos pontos de vista esotérico e exotérico; como também a ideia de essência e aparência –, ainda que não se valha dessa terminologia.
O impasse categorial se encontra nos textos de 1843, 1857, 1858 e 1859; é possível dizer que no de 1843 há uma elementariedade categorial que Marx só desenvolve posteriormente. Não existe ainda uma saturação da história como nos textos de 58-59; consequentemente, não há concretização histórica. É isso que distingue a utilização de categorias nos textos. Porém, apesar do arsenal heurístico de Marx, ainda não tinha nesse momento um pensamento concluso, mas algumas categorias basilares que apanhara de Hegel, mesmo acusando-o de empirista. Acusa Hegel de ter um procedimento mistificador, quando este afirma que a sociedade civil e o Estado são extremos, ou seja, que constituem uma polaridade. Essa discussão passa pela relação orgânica e dialética entre as categorias: Estado e sociedade. Para Marx, se é uma relação orgânica, não há mediação, porque a mediação não se dá entre polaridades; agora, se a relação for dialética, a polaridade admite mediação, porque não tem antíteses, mas complementariedades.
Marx chama atenção para o fato de que Hegel só construiu mediações artificiais, pois apresenta o Estado como racional e mediador, o que Marx refuta, alegando que se o Estado fosse mediador não seria alienado. O Estado em Hegel é alienado, coercitivo e opressor, por isso não faz mediação e Hegel é obrigado a fazer interpolações, precisamente porque não consegue sustentar o caráter de mediação desse Estado, que só apresenta como extremo.
No entanto, Marx questiona o procedimento lógico de Hegel, pois não se trata apenas de transformar categorias lógicas em categorias históricas, uma vez que essas categorias lógicas, elas mesmas, estão invertidas. Assim, a mediação em Hegel é falsa. Há, primeiramente, uma falsidade lógica, porque não é arrancada dos extremos, e ainda uma falsidade política, já que o Estado é visto como elemento de regulação da sociedade civil, quando, na realidade, a sociedade civil, os proprietários, é que regula o Estado.
A discussão feita por Engels, sobre a questão do Estado, que aparece formalizada especialmente na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado é resultado de uma série de reflexões e diálogos entre este pensador e Marx, à respeito da obra de Morgan¹¹, antropólogo americano que estudou as relações sociais em algumas tribos indígenas da América do Norte.
Apesar de ter discutido o tema com Marx, Engels escreveu o texto sozinho, publicando-o após a morte daquele pensador. Nesse texto, aparece uma teoria do Estado delineada nitidamente, que constitui uma das bases da tradição marxista.
No entanto, Engels trata o Estado ao longo de uma série histórica extremamente ampla; parte da tese de que quando em uma determinada comunidade se mostra o antagonismo de interesses entre grupos, é necessário um elemento regulador que elimine esse antagonismo, pois, ao longo do processo, acaba se autonomizando, e passa a submeter todo o conjunto da comunidade a um poder coercitivo de uns poucos.
Em Engels, o Estado é superficialmente o resultado da contradição de interesses entre grupos e, posteriormente, de classes sociais.
O procedimento de análise realizado por Engels é diferente do utilizado por Marx, apesar do texto ter sido feito a partir de um debate entre os dois. Marx apreciava e pesquisava sobre a obra de Morgan, encontrando nela indicadores de uma ampla concepção de evolução histórica. Mas, para este pensador, distintamente do que tematizava Engels, não se trata de um Estado qualquer, pois quando Morgan se refere ao Estado, está se referindo ao Estado burguês; assim, toda a discussão marxiana é sobre um Estado historicamente datado, aquele que emerge da ordem burguesa.
Marx se preocupa com a sociedade burguesa e reflete sobre ela, portanto, sua sistematização é sobre o Estado burguês. A discussão de Marx sobre sociedade civil parece sempre referir-se à relação Estado e sociedade, no marco da emersão da burguesia. Dessa maneira, é preciso certo cuidado ao tentar estabelecer uma relação entre as discussões de Marx, já no período do texto de 1843, e a elaboração engelsiana de Estado.
Engels universaliza de tal maneira a teoria do Estado, que fica difícil compatibilizá-la com as discussões particulares de Marx; embora exista sempre a ideia do aparelho coercitivo da parte que se autonomiza, que se sobrepõe ao todo, com a autoilusão, que é também uma ilusão mistificadora de representação do todo.
Na discussão sobre as concepções de Marx e Engels não existe só uma linha problemática, existem várias, inclusive a definição de sociedade civil, pois a própria expressão alemã para sociedade civil pode ser traduzida como sociedade burguesa. Essa ambiguidade não é casual, está muito marcada pela constituição da via capitalista, e Engels extrapola essa concepção com muita acuidade, insistindo que as pesquisas de Morgan fundamentam a sua colocação.
No tratamento mais sistemático do que histórico dado por Marx ao texto de 1843, embora não tenha saturado o conteúdo das categorias, encontramos a crítica da ideia absoluta de Hegel como derivando as coisas materiais do Estado e não da da sociedade civil; isso implica dizer que o suposto do qual Hegel parte é o próprio Estado Moderno naquele momento histórico. E, uma vez que o Estado já está configurado, tanto no pensamento de um quanto do outro, a crítica se sistematiza, não fica apenas no pensamento formal.
Marx parece aderir ao Estado, como Hegel o pensa, passando a analisá-lo. Porém, ao elaborar o texto de 43, o que se observa é que desenvolve uma reflexão marcadamente histórica, embora a explicação seja ainda insuficiente, por ser muito tangencial. Não explicita plenamente, como se verá depois em outros textos que vão comprovar a evolução do pensamento marxiano.
Mas, apesar dessas fragilidades, Marx chega a dizer nesse texto: O Estado que Hegel está teorizando é o Estado que aí está. Daí a vinculação histórica com a qual Marx fundamentará todos os seus estudos, tomando o texto de 43 como seu marco.
Com o texto de 1843, apesar de ser de leitura difícil, cada vez que se retorna a ele, se constata tratar de um momento importantíssimo na construção do pensamento marxiano, imprescindível à compreensão da lógica desenvolvida para explicar a ordem burguesa.
Abordado o Manuscrito de Kreuznach, como texto seminal no processo de construção do pensamento marxiano, fica clara a sua importância. É nesse texto que emerge um pensamento original, no plano da crítica ao pensamento hegeliano, pois é nele que Marx sistematiza o mesmo problema de Hegel – a relação entre Estado e Sociedade –, incorporando a temática desse autor e rompendo com sua programática; e o esboço de solução apresentado por Marx é a ruptura política com Hegel.
Enquanto Hegel tende a legitimar a Monarquia Constitucional, pensando o Estado como elemento fundante da sociedade, Marx desenvolve a ideia, ainda pouco definida, de povo, para fundar a defesa de uma democracia verdadeira. Essa ruptura política marca a diferença tanto entre Marx e Hegel, quanto com alguns de seus interlocutores naquele momento. Ela é simétrica a um rompimento filosófico; isto porque o pensamento de Marx naquele instante destaca-se do de Hegel pelo traço materialista.
No entanto, era muito mais do que articular o processo sociopolítico do ponto de vista materialista, tratava-se também de toda uma rearticulação metodológica. Marx incorpora a concepção dialética hegeliana e “coloca sob seus pés” a base materialista; fazendo uma rigorosa crítica aos procedimentos analíticos de Hegel, o que contribui para sua articulação teórico-metodológica.
Em 1843, além da ruptura política com Hegel, há também uma ruptura teórico-metodológica, responsável pelo deslocamento da temática hegeliana, apontada no final do texto de Marx. Esse texto é determinante na reflexão de Marx, porque não se trata mais de uma crítica das formas jurídico-políticas, que pense o político em si mesmo, mas uma crítica política a partir da crítica da sociedade. Emerge daí o que mais tarde se chamará “Uma concepção negativa de política ou do Estado”, em Marx.
Contudo, o texto de 1843 tratava de um ponto de chegada, no qual Marx acertava suas divergências com Hegel – não de maneira conclusiva, porque posteriormente voltaria a dialogar criticamente com este autor – mas também de um ponto de partida, para uma caminhada nova que se estende até o final de 1870. É exatamente entre 1844/45 que ocorre a precipitação teórico-ideológica de Marx. É nesse período que, o que aparecia em estado latente, apenas emergente desde 1843, começa a se configurar. O texto representativo e determinante desse período é a Ideologia Alemã, desenvolvido com a participação de Engels.
Para analisar esse período, 1844/45, é necessário delimitar não apenas o cenário social, mas também o cultural, quando ocorre a precipitação do ritmo de amadurecimento da reflexão marxiana. E, para isso, a contribuição de Engels é fundamental, na medida em que o texto A Ideologia Alemã foi escrito com sua parceria. Engels nasceu em 1820, com status social diferente de Marx. Era filho de médio industrial, o que acaba por marcar toda a sua vida, pois terá estabilidade econômica para dedicar particular atenção ao período de 1850-70, com os negócios da família, em gigantesco esforço de trabalho a que chega a chamar de “cativeiro egípcio”; alusão ao algodão da fábrica de tecidos que vinha do Egito. Administrava por oito horas dia a dia a sua fábrica, e ainda fazia pesquisas, e participava de discussões políticas. Foi com a contribuição financeira de Engels que Marx conseguiu desenvolver seus estudos e pesquisas para elaboração d’O Capital. Depois de 1870, viveu com certa comodidade, sempre contribuindo solidariamente com os exilados e com os movimentos políticos.
Engels, entre 18 e 19 anos, se desloca de sua cidade, Barmen, para a região portuária, para aprender a ser um homem de negócios, conforme os planos de seu pai. Nesse período, convivendo com marinheiros, com muita facilidade começa a conhecer várias línguas e se envolve com diversas questões, só não aprende a ser negociante. É chamado de volta para casa entre 1838-39. A maneira que Engels encontra para sair da casa paterna é ir prestar serviço militar voluntário. Portanto, em 1839, vai para Berlim. No período em que serve, compreende que tem uma grande sensibilidade para as questões militares, não apenas de forma abstrata. E não se trata apenas de uma vocação burocrático-autoritária, mas de que os fenômenos militares, os processos entendidos como constituição de exércitos nacionais, são fenômenos típicos do século XIX. A ideia de um exército profissional, vinculado à noção de Estado Nacional, é fruto da ação napoleônica, ou seja, é uma realidade emergente na Europa da época. Na realidade, é um fenômeno novo. Durante toda a sua vida, Engels desenvolveu amplas discussões sobre temas militares.
Entre 1830 e 1841, Engels frequenta cursos livres na Universidade, onde passam a chamá-lo de “aluno-ouvinte”; mas nunca termina nenhum dos cursos, não chega a ter uma formação acadêmica sistemática como Marx. Nesse momento, se vincula a um segmento hegeliano hegemonizado pelos irmãos Bauer, contribuindo para a agitação acadêmica, ao escrever panfletos contra Schelling, que fora companheiro de lutas filosóficas de Hegel até 1806/07. E, após a morte deste, foi nomeado para reitor da Universidade de Berlim. A partir daí, Engels se torna uma figura conhecida no meio dos “jovens hegelianos”.
Em 1842, o pai de Engels, preocupado com o destino do filho, resolve impor-lhe um estágio na Inglaterra, em Manchester, onde tinha uma sociedade com alguns ingleses que trabalhavam com fiação e tecelagem. Tal atitude é compreendida por questões culturais, a família de Engels era vinculada a corrente luterana extremamente ortodoxa, que tinha como lema “ganharás teu pão com o suor do teu rosto”. A noção ética do trabalho, da acumulação, aparece com muita força entre os luteranos¹², e Engels se vê obrigado a se enquadrar nessa lógica.
Por isso, é mandado para a Inglaterra, com o objetivo de trabalhar na fábrica em que o pai era sócio. No caminho, Engels passa em Colônia, onde ficava a sede da Gazeta Renana, em razão de sua ligação com os jovens hegelianos e suas relações com Bauer, e ainda com os pensadores chamados “Livres de Berlin”, propõe ser o correspondente do jornal na Inglaterra. Data daí o primeiro encontro de Marx com Engels; encontro não muito amistoso, na medida em que o Doutor Marx já estava em atrito com os Livres de Berlin, porque tinha uma posição muito crítica em relação às concepções por eles desenvolvidas.
Engels chega à Inglaterra, Manchester, em finais de 1842, onde se estabelece até princípios de 1844. Em Manchester, conhece um mundo que não lhe era accessível no continente, o mundo do trabalho na fábrica, onde fica o coração do capitalismo.
Em virtude do grau de maturação do processo industrial, era a fábrica do mundo. Assim, Engels sai da Alemanha com um viés teórico-ideológico muito específico, na medida em que tivera forte influência do filosófico comunista Moses Hess, possuindo já uma vocação socialista, embora ainda no plano ideal.
Engels, muito crítico em relação à ordem burguesa, chega a Manchester para trabalhar no mundo fabril, no instante em que o movimento operário inglês experimenta um momento de grande organização com o chamado Movimento Cartista, que tivera origem no princípio da década anterior, com as reivindicações da famosa Carta ao Povo (um programa de reformas basicamente político-eleitorais de 1831). É o momento em que o Cartismo empolga os principais segmentos dos trabalhadores ingleses de ampla sindicalização na Inglaterra¹³, já com fortes inclinações socialistas, mas ainda extremamente ideais. Engels se insere nesse processo, quer do desenvolvimento capitalista, quer da maturação da classe operária, realizando não só o projeto para o qual foi enviado, seu estágio de formação empresarial, mas também converte esse momento em um estágio de formação política, ligando-se diretamente ao Movimento Cartista e aos jornais do movimento.
Envolve-se com a operária migrante irlandesa, Mary Burns, que será sua companheira por quase vinte anos; e, por intermédio dela, não só penetra no mundo operário, como dirige sua atenção para o problema irlandês; ou seja, já havia por essa época, na Inglaterra, toda uma questão colonial com a Irlanda, sobre a qual Engels deixa muitas páginas inéditas, acerca da opressão inglesa sobre a Irlanda.
O fato é que, nesse período, Engels realiza, pela sua experiência no mundo do trabalho, enquanto os atores sociais experimentam a organização sócio-política, sua vinculação ao movimento operário. Para tanto, as ideias de “comunismo filosófico” mudam e ganham concreção sócio-política. Engels, então, encontra um ator social que subverte o mundo burguês; se depara, materialmente, com um proletariado que não é apenas aquele que sofre, que é explorado, mas um proletariado ativo que se organiza em busca de soluções sócio-políticas para a sua vida cotidiana. Ocorre, com isso, o que se poderia chamar de “o passo de Engels ao comunismo”, por intermédio de sua vinculação ao movimento operário. Nessa época, começa a escrever artigos para os Jornais do Continente, da Inglaterra e do Movimento Cartista.
A vinculação ao movimento operário oferece a Engels material para suas reflexões, que ele utiliza em um ensaio publicado nos Anais Franco-Alemães, com o título de “Esboço para a Crítica da Economia Política”. Esse texto exerce impacto sobre Marx, que o considera como um “esboço genial”.
Quando Engels publica esse texto, tem apenas 23 anos. Em contato com o mundo fabril inglês, faz uma primeira elaboração teórica, onde busca apanhar a literatura da economia política, que legitima as condições socioeconômicas; lendo os autores que expressam, no plano teórico-ideológico, a situação inglesa.
Os estudos de Engels têm um duplo viés crítico: 1) uma posição de práxis vinculada ao Movimento Operário, em que se coloca como crítico da ordem burguesa, partindo de uma leitura da literatura sobre o processo industrial, mas do ponto de vista do operário; e 2) vindo da esquerda hegeliana, dos debates entre os Jovens Hegelianos, em que faz a leitura do ponto de vista da concepção dialética, do pensamento e da história. Pela primeira vez, as concepções da economia política inglesa são submetidas a uma crítica dialética, embora ainda insuficiente.
A contribuição de Engels, nesse período, foi seu trabalho intelectual e seu processo de formação. Além do ensaio, e de artigos para os jornais, Engels levanta dados para uma pesquisa acerca das condições de vida da classe operária inglesa. O texto é publicado em 1845, quando volta ao Continente, intitulado “A situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”. Trata-se, na realidade, de um levantamento minucioso das condições de vida do operariado inglês, tomando como objeto central o proletariado de Manchester; isto porque o fenômeno industrial e a emersão da classe operária eram fatos cruciais à vida social. Evidentemente, sobre esse fato, se debruçaram pensadores socialistas e conservadores. Entretanto, o texto de Engels é singular frente a toda essa bibliografia, tendo em vista dois pontos: 1) Pela concepção de classe operária, tomada não como objeto de sofrimento e exploração capitalista, mas como sujeito social. Nos estudos de Engels, a classe operária surge como ser social ativo, capaz de protagonizar processos de direção política. 2) Pela compreensão que esboça da sociedade burguesa, em que percebe os fenômenos de industrialização e urbanização configurarem um mundo novo. E, ainda, que a imbricação desses dois processos abre uma possibilidade ao desenvolvimento humano; embora suas características contraditórias de classe realizem o impedimento da via, na objetivação das possibilidades, para a maior fatia da população.
Esses dois direcionamentos são desenvolvidos posteriormente por Marx. No entanto, é Engels quem muito antes de Marx faz sua transição ao comunismo, realizada pela intervenção efetiva na vida social, com sua vinculação ao movimento operário.
É um pensador envolvido com o movimento operário que Marx encontra em 1844. O texto de Engels, sobre economia política, abre, para Marx, novas perspectivas para os estudos que vêm desenvolvendo.
Em 1844, Engels, de volta da Inglaterra, indo para a Alemanha, passa por Paris, onde se encontra com Marx, impressionado com seu texto sobre economia política. Marx identifica nesse texto elementos com os quais vinha se debatendo, do ponto de vista político, encontrando, ainda, nos estudos de Engels, o mundo do socialismo e o do comunismo.
Nesse momento, as tendências socialistas e comunistas brotavam como cogumelos em Paris, capital do exílio europeu. Nesse encontro, percebem, confrontando as suas evoluções e perspectivas, que, por caminhos diferenciados, estavam tendendo o mesmo resultado, as mesmas conclusões. É por isso que, a partir de 1844, se estabelece entre eles não apenas uma sólida amizade, mas uma colaboração intelectual e política que trará uma grande contribuição intelectual.
É daí que surgem dois projetos, que assinalam toda força desse período formativo do pensamento de Marx: A crítica da crítica crítica, que será publicado em 1845 e a Ideologia Alemã, que permanece inédito até 1932.
Na realidade, o fato é que a grande evolução de Marx se efetua depois de encontrar em Engels um colaborador. Essa parceria, bem como a mútua influência e interação intelectual, entre os dois, dura até o fim da vida de Marx, em 1883. Mas em 1844 é que se dá o encontro decisivo. Apesar de decisivo, na construção do pensamento, não é apenas esse encontro que precipitará o ritmo de desenvolvimento ideológico de Marx, outros acontecimentos também farão parte desse processo:
1 – O fechamento da Gazeta Renana, que impede qualquer intervenção pela imprensa na Alemanha. Havendo, depois disso, a alternativa de criar um órgão, no exterior, que pudesse ser veiculado na Alemanha. Porém, não poderia ser um órgão qualquer, tendo em vista o tipo de crítica que seria desenvolvido; posto que, Marx, junto com Arnold Ruge, submetia a Alemanha a uma crítica rigorosa, partindo do princípio de que “somos os contemporâneos do presente, enquanto os ingleses fazem a história, nós pensamos a história”. A ideia seria vincular as tendências críticas da Alemanha às tendências críticas da França; daí a necessidade dos Anais Franco-Alemães, Revista criada juntamente com Ruge, quando Marx chega exilado a Paris.
2 – A passagem por Kreuznach, em seu autoexílio, em direção a Paris, onde escreve os famosos Manuscritos de Kreuznach, que é a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel.
3 – Em Paris, no final do ano de 1843, quando desenvolve com Ruge um projeto editorial nos Anais Franco-Alemães¹⁴. Portanto, fica entre França e Bélgica.
Paris ocupa, nesse momento, um papel importante, é a capital do exílio: todos os perseguidos, os proscritos, os dissidentes, que fogem de seus países, acabam em Paris. É, na verdade, um laboratório de aproximação dos povos. Nesse país, se encontram eslavos, poloneses, belgas, e, sobretudo, alemães.
A migração da classe trabalhadora para Paris era fortíssima, não apenas por razões políticas, mas também por razões econômicas. Marx chega a penetrar nesse laboratório de concepções revolucionárias, encontrando a revolução anti-burguesa em preparação; a resistência configurada nas sociedades secretas, cujo legado principal vinha do fracasso da Conjuração dos Iguais, de 1797.
A partir da repressão desfechada contra Babeuf, e outros líderes da Conjuração dos Iguais, todo um veio de golpismos, de tentativas de tomada do poder à força, toda uma cultura política conspirativa e revolucionária se desenvolveram na França. O maior representante dessa cultura política era Blanquí, que, dos setenta anos de vida, cinquenta passou na cadeia. Era um dos animadores de uma das principais sociedades secretas, chamada Societé des Saisons (Sociedade das Estações).
A cultura do secretismo, das seitas, era forte no proletariado francês; e mesmo os emigrantes que estavam na França também se organizavam assim.
Os alemães tinham, desde 1830, uma associação secreta que, inicialmente, chamava-se Liga dos Proscritos, mas depois passou a se chamar Liga dos Justos.
Marx, quando chega a Paris, encontra essa tradição, à qual não se vincula organicamente, desde o começo será avesso à ideia de secretismo e conspirativismo. Isto porque, diferentemente do líder Blanquí, não considera que a revolução possa ser obra de uma minoria, de uma vanguarda descolada do conjunto da classe trabalhadora; ao contrário, pensa a revolução como obra da massa, da ação organizada de milhões de homens. Portanto, o fundamental seria tornar pública a ideia de revolução. Por isso, convive com toda essa tradição, mas se nega a ingressar na Liga dos Justos, que é uma organização clandestina, à qual se vinculou em 1846/47, tendo um papel importante em 1848.
É em Paris que Marx entra em contato com o Movimento Operário. Nesse momento, a cultura do político aparece para ele com um conjunto de representações, de projeções crítico-utópicas; era o que de mais avançado existia no cenário político.
As críticas eram feitas à ordem burguesa e à utopia, enquanto projeções de possibilidades, vislumbrando-se uma perspectiva para além dessa ordem. É assim que Marx entra em contato com toda elaboração do mais importante dos socialistas daquele momento, Fourier. Este, apesar de ser um estudioso importante, suas ideias, no entanto, eram consideradas mirabolantes. Em 1830, escreve que se pode irrigar os desertos e unir os oceanos. É o que se tem hoje, no Canal de Suez, ou com as experiências do Estado de Israel. Foi o primeiro que percebeu a importância da democracia na vida do cotidiano; desenvolveu a ideia de que o grau de liberdade de uma sociedade se mede pelo grau de autonomia da mulher; naquele momento, tida como subalterna.
É de Fourier que Marx recupera a a ideia de concepção negativa de Estado; que diz ser preciso substituir a administração dos homens pela administração das coisas. Outra figura de expressão, com quem Marx entra em contato, é Proudhon; no primeiro momento, com seu texto “A Propriedade é um roubo”, e, depois, com uma crítica ferrenha ao texto “A Filosofia da Miséria”, de onde parte para escrever “A Miséria da Filosofia”.
Conhece, ainda, Weitling, alfaiate alemão que exerce, nesse momento, junto aos emigrados alemães, influência fundamental no desenvolvimento da consciência política dos trabalhadores exilados.
É com essas doutrinas, teorias e concepções políticas que Marx se envolve em Paris. Tal contato ocorre exatamente no momento em que tem de responder a demandas imediatas, em relação à questão social, o que serve de alerta para a necessidade de um estudo mais aprofundado de sua parte; que não seja teórico, mas prático, no qual participe do movimento político, desenvolvendo concepções de práticas políticas.
Nesse processo, intervém entre os exilados, escreve para os jornais, e suas reflexões vão tomando um caráter mais universal. É quando recebe o artigo de Engels, sobre economia política. Ao analisá-lo, Marx dá um passo decisivo em seu desenvolvimento; e, pela primeira vez, trata de economia política. É a partir daí que opera as bases para concretizar a crítica social, para a qual aponta a necessidade, apenas como indício, em 1843.
O ano de 1844 é de profunda precipitação na formação teórica do pensamento de Marx, momento a partir do qual estuda com profundidade a economia política.
Esse estudo aparece nos debates contidos nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, de 1844, na relação que estabelece com os escritos de Ricardo, quando coloca a questão do valor. Logo, é nos anos de 1844-45 que a construção intelectual de Marx sofre um grande avanço. Em Paris, finaliza um movimento, mesmo que subalterno, que implode em 1848, quando entra em contato com Engels; incorporando os debates da economia política e franqueando o passo para compreensão do mundo burguês. É daí que a crítica de 1843 toma sua grande configuração.
¹¹ MORGAN, Lewis – Antropólogo inglês “Na América, descobriu de novo, e à sua maneira, a concepção materialista da história – formulado por Marx, quarenta anos antes – e, baseado nela chegou, contrapondo barbárie e civilização, aos mesmos resultados essenciais d Marx”. NGELS, F. Prefácio à primeira edição/1884 – A Origem da família, da propriedade e do Estado – Rio de Janeiro, Civilização Brasileira – 1981.
¹²Noção ética do trabalho que vai ser desenvolvida por MAX WEBER em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
¹³ O encontro de Marx e Engels se dá no coração de Paris, na Rua Vanu, 18.
¹⁴ Marx não permanece até o ano de 1848 em Paris. É expulso da França por pressão do governo prussiano; muda-se então para a Bélgica, onde se liga aos movimentos operários. Em 1846 faz uma viagem à Inglaterra, acompanhado de Engels, conhece Manchester, sede do capitalismo, da industrialização e da organização dos operários.