CAPÍTULO IV – UM CAMINHO PARA O COMEÇO
A PASSAGEM AO COMUNISMO
É nos Manuscritos que Marx se reconhece comunista. Em 1844, incorpora a discussão sobre o comunismo. Entre 1844-46 se dá a grande polêmica com Proudhon, expressa n’A Miséria da Filosofia. E, em 1848, surge o Manifesto Comunista. Esse processo tem três fases, que se sucedem quase concomitantemente:
1) A passagem filosófica está expressa na Crítica de 1845, que ocorre no contexto do levante dos trabalhadores da Silésia (1844), quando Marx já está em Paris, participando do grande laboratório de ideias. Consiste na mudança de perspectiva de análise do objeto; pois, no texto de 45, não aparece mais a categoria povo, contida nos Manuscritos de 43; aparece, pela primeira vez no universo teórico de Marx, a categoria proletariado, como uma classe, embora concebida ainda como referência abstrato-teórica, atuando como antítese da burguesia. Isto porque, nesse momento, Marx não tem um conjunto de determinações históricas concretas, que configurem o proletariado. Assim, na “passagem filosófica”, o proletariado é quase uma petição de análise, uma vez que não se recorre a ele em sensibilização ao movimento histórico-social, mas tomando-o como objeto de investigação teórica. Essa é a forma de entrada do proletariado no horizonte intelectual marxiano.
2) A passagem política é firmada quando Marx deixa de pensar a política como movimento difuso entre a sociedade civil e o Estado. A política se concretiza, então, como movimento de classes que se auto-organizam. Marx trava contato com as organizações operárias de Paris, tendo acesso também, através dos textos dos pensadores políticos da época, a informações sobre as organizações. Contudo, é a Inglaterra, considerada a “oficina do mundo capitalista”, que lhe fornece material para reflexão, com o Movimento Cartista. Trata-se de um movimento sindical, com o qual ainda não tinha uma experiência direta, mas apenas o conhecimento filosófico.
A primeira passagem, que é de uma percepção rigorosamente filosófica, como “petição de análise”, sensibiliza o pesquisador e abre caminho para a passagem política, que é um processo eminentemente prático, que começa a estruturar a crítica da passagem filosófica, a infirmar e a negar as bases da representação anterior.
3) A passagem teórica se dá com o rompimento do traço puramente especulativo adotado anteriormente, culminando na ruptura com a ideologia alemã. O conhecimento gerado nesse momento tem um estatuto diferente daquele que a filosofia possuía. É a cisão com a ideologia alemã o passo ao comunismo. Na passagem teórica estão contidos: a) a crítica da ideologia alemã e de toda concepção teórico-filosófica que analisa; b) a superação de uma concepção anterior; c) um novo modo de pensar; e d) a vinculação com a prática política.
É no final de todo esse processo histórico que se encontra o Marx teórico-comunista, que avança para a polêmica com Proudhon, o teórico do Movimento Operário; para sua vinculação orgânica com o movimento social, com a prática política. É importante ainda compreender a relação de Marx com Feuerbach.
No período de 1841 a 1845, a posição de Marx frente a Feuerbach é de movimento: ora de aproximação, ora de distanciamento. Portanto, não é possível estabelecer um limite, ao longo dos quatro anos, de qual era a posição de Marx em relação a Feuerbach. Nas Teses ad Feuerbach (1845), está explícito o rompimento com a tradição filosófica especulativa; pois, Marx, já na primeira tese, afirma:
O principal defeito de todo materialismo até aqui (incluído o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição; mas não como atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente. (MARX K. e ENGELS, F. Ideologia Alemã. São Paulo: HUCITEC, 1987, p.11)
Diante dessa colocação, torna-se visível o rompimento. Na realidade, Marx tem uma concepção homem/sociedade que transcende largamente a dimensão política, concebida por Feuerbach; embora essa posição não seja explicitada claramente, pois seu distanciamento político sinaliza para outro conjunto de diferenças. Já em 1844, com os Manuscritos, começa a se afastar de Feuerbach, buscando Hegel para confrontá-lo. Em 1845-46, a interlocução é contínua, embora desmonte os substratos que alimentam as construções filosóficas anteriores, desembaraçando-se delas para seguir seu próprio caminho.
O que se deve destacar nessa polêmica é que o ponto central da divergência não é tanto a questão política, mas o papel ativo do sujeito humano.
O ponto de ruptura entre Marx e Feuerbach é a visão antropológica que empreende, a partir do papel ativo do sujeito humano. Assim, embora Marx estabeleça uma relação de proximidade com seus interlocutores, na medida em que lhe fornecem o mote, não se forma uma relação de dependência entre ambos, mas de busca pela gênese das questões e possibilidades de superação.
Dessa maneira, Marx começa a pensar em um movimento dialético, com o qual vai superando as várias concepções, em direção ao caminho que o levará à compreensão da sociedade, do ser social.
Embora não se possa precisar uma única razão para seu afastamento em relação aos pensadores e filósofos da época, sabe-se que a causa central era a questão política, sobretudo, na concepção da estrutura antropológica adotada, que já está na Fenomenologia do Espírito de Hegel. É desse modo que Marx, mesmo polemizando, conserva a ideia de autoprodução do homem, que se esbate completamente em Feuerbach.
A superação política sinaliza para essa ideia. É quando Marx se detém no exame crítico da obra de Feuerbach, que essas questões são explicitadas.
Com Marx, fixa-se a noção de humanismo positivo, como sinônimo de comunismo. No mesmo tempo em que emerge a ideia de práxis e a superação, efetivada pela concepção marxiana, em relação às correntes filosóficas da época.
Os textos publicados entre 1844 e 1845 são importantes para a compreensão do caminhar intelectual de Marx, sobretudo, A Ideologia Alemã. No primeiro capítulo desta obra, elaborada com Engels, mostra-se a evolução operada desde o texto de Kreuznach, passando pela Questão Judaica, até a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e os Manuscritos Econômicos-Filosóficos.
1844 é o ano do projeto, articulado desde o encerramento da Gazeta Renana (órgão que congregava e veiculava posições da intelectualidade democrático-radical e progressiva da esquerda alemã), tomar forma. Mas, ao mesmo tempo, Marx procurava recuperar a vinculação com o movimento socialista francês, através da publicação dos Anais Franco-Alemães, cujo único número sai em fevereiro de 1844. Neste número, Engels publica um texto sobre economia política, que causa grande impacto na compreensão de Marx. São publicados, de Marx, A Questão Judaica e Introdução à Crítica da Filosofia de Hegel.
A QUESTÃO JUDAICA
A importância d’A Questão Judaica não está no seu caráter altamente polêmico, na medida em que se trata da resenha crítica de um texto de Bruno Bauer, relacionada às polêmicas de 1842-43, que separavam, na esquerda hegeliana, os Jovens Hegelianos dos Livres de Berlim.
Bauer, em seus escritos, argumenta acerca das condições dos judeus, que estavam impedidos de exercer cargos públicos, tendo a cidadania restrita; ou seja, tinham seu desempenho cívico obstaculizado por uma série de exigências legais. É nesse momento que se inicia uma discussão sobre cidadania, sem estar ligada à empreendida por Hegel, em 1843. Bauer afirmava que os judeus não eram capazes de realizar a sua emancipação política e que a razão dessa incapacidade estava, em primeiro lugar, no fato de que, para isso, os judeus precisavam romper com a sua tradição religiosa.
Assim, em sua crítica, Marx afirma que a emancipação política pode ser equalizada às conquistas da revolução burguesa; pois, pensar a libertação política é pensar o fim das amarras da ordem feudal. E, ainda, que esta emancipação estava inscrita na Declaração dos Direitos do Homem. Mas o problema consiste, concretamente, em não se identificar a emancipação política com a emancipação humana. Marx mostra que Bauer se equivoca profundamente; considerando que seu raciocínio, acerca da incapacidade dos judeus promoverem a sua própria emancipação política, não oculta apenas um traço antissemita, mas o fato de que a emancipação política não significa emancipação humana, porque não se identifica à liberdade, por estar restrita à possibilidade do exercício do direito à cidadania.
Essa questão é vista como importante para Marx, que chama atenção para o progresso histórico representado pela Revolução Francesa, instauradora da noção de cidadão. Nessa ordem, a emancipação política é um passo fundamental no processo de emancipação humana. Todavia, diz Marx, a emancipação política não pode ser identificada como emancipação humana, porque tal erro imobiliza o processo histórico nos marcos da sociedade burguesa; ou seja, é supor que a emancipação humana se realiza na ordem burguesa. É colocar um ponto final no processo de lutas sociais. Marx explica emancipação política como momento histórico constitutivo da emancipação humana, mas apenas um momento. A emancipação política não coroa, não finaliza o processo de emancipação, porque a emancipação do homem é muito mais ampla.
A libertação que gera a emancipação política é apenas um meio para realização da vida na sociedade civil; entendida, segundo a concepção hegeliana, como o “reino da miséria”, o “reino do egoísmo”.
Isso explica o fato de que a revolução burguesa funda a emancipação política, criando uma sociedade onde o que move os homens é o egoísmo, os interesses individuais; fazendo com que, para se realizar, o homem negue sua própria sociabilidade. Nessa ordem social, o homem só se realiza quando se põe como sujeito singular vencedor, exitoso, mas o êxito implica na perda de sua característica genérica – o indivíduo só vê a si mesmo –, os outros são apenas meios para a sua realização pessoal.
No texto de 1844, ao polemizar com Bauer a respeito da questão judaica, surge, no pensamento marxiano, a crítica à figura do cidadão. Marx afirma que a emancipação política, realizada pela sociedade burguesa, é importante, mas toma o homem do ponto de vista do indivíduo, da singularidade, no âmbito do que Hegel chamava de “sociedade civil”.
A emancipação política libera os indivíduos para a consecução de seus fins singulares, dos seus interesses individuais. Nesta crítica de Marx está embutido um vetor crítico à tradição do individualismo, não contra a constituição de indivíduos livres, mas contra as ideologias e práticas individualistas.
A emancipação política, afirma Marx, é um meio para que cada indivíduo realize seus fins singulares, ou seja, os direitos que lhes são atribuídos são direitos negativos, porque foram estabelecidos em contraposição aos direitos de outrem. Deste modo, a libertação política é degradada a um meio para a realização, não de interesses sociais, mas de interesses individuais e particulares. Portanto, é tarefa da revolução burguesa.
A pontuação de Marx, acerca da cidadania burguesa, não perde o alcance histórico das conquistas realizadas, mas insiste que o limite é o da propriedade privada. Considera que a cidadania é definida e circunscrita pela propriedade privada, fundamento da sociedade burguesa.
Nesse ponto, Marx volta à questão que já colocara em 1843, de que a propriedade privada é o fundamento de uma ordem que não é a “democracia verdadeira”. Então, critica a cidadania burguesa:
A verdadeira emancipação humana – aquela para a qual a emancipação política é só um passo – supõe não apenas a crítica da sociedade civil, mas, muito especialmente, supõe pensar os homens em seus laços sociais. A emancipação humana supondo a emancipação política, vai muito além desta e, mais, a contradiz e a nega porque supõe precisamente a supressão do fundamento dessa emancipação política.
Em 1843, Marx estuda os teóricos da política e se confronta com Hegel, por considerar seu adversário o Estado prussiano, fazendo um resgate da tradição do pensamento político desde Maquiavel. N’A Questão Judaica, rebate a crítica de um dos primeiros analistas da democracia burguesa, Rousseau. Apesar de conservar elementos do pensamento de Rousseau, rompe, ao mesmo tempo, com a crítica rousseauniana, uma vez que esta conduzia não à supressão da propriedade privada, mas à sua universalização e generalização.
Marx adota uma posição muito mais radical, conduzindo à raiz mesma da forma de emancipação, apresentada em duas razões:
1) Ao considerar a crítica feita por Moses Hess ao dinheiro, que aparece como forma acabada da alienação, Marx toma esse componente, relacionando-o à “condição do judeu”. O judeu era visto sob o estereótipo social de entesourador; portanto, o viés antissemita que Bauer incorpora está ligado aos papéis sociais dos judeus desde a Idade Média. Marx diz que tal característica não é da essência judaica, mas sim da própria ordem burguesa. Tem-se, então, um rebatimento da crítica democrática de Rousseau, mas também um corte com essa crítica, uma vez que a superação do dinheiro consistiria na supressão da propriedade privada.
2) Ao deslocar a crítica política do campo jurídico para o campo social, no texto de 1843, Marx dá um passo adiante. No momento em que a alienação pelo dinheiro passa a ser alvo de crítica, o que está em questão é a sociedade burguesa. Dessa maneira, aponta não só o terreno sobre o qual a crítica deve se erguer, mas já começa a elaborar essa crítica.
O horizonte do pensamento de Marx é ainda a Revolução Alemã, ou seja, o quadro político alemão; e seu problema é como democratizar a Alemanha. O período é fevereiro de 1844, todas as indicações são de que A Questão Judaica foi escrita entre o final de 1843 e o início de 1844, quando Marx está chegando a Paris. Os Anais Franco-Alemães tinham como objetivo dar continuidade às lutas contra as formas autocráticas germânicas. Na realidade, o que Marx discute ao falar em revolução, em emancipação política, criticando o texto de Bauer e a situação do judeu alemão, é a possibilidade de revolução burguesa acontecer na Alemanha. Esta era a discussão que objetivava em suas atividades, na Gazeta Renana, jornal produzido por um segmento da burguesia local que, ao colidir diretamente com as formas autocráticas, é fechado.
A conclusão de Marx, após o fechamento do jornal, é que na Alemanha sequer a emancipação política se efetiva, tornando-se cada vez mais difícil, na medida em que seu agente histórico, a burguesia alemã, é débil, vacilante e tímida; não se contrapõe ou quebra as amarras do feudalismo.
Logo, a pretexto de uma crítica à obra de Bauer, Marx constrói uma formulação política que fere a sociedade alemã. A questão que coloca é: Como uma burguesia que recua, à menor pressão, pode fazer revolução na Alemanha? Será que é possível, diante desse quadro, se fazer uma revolução burguesa? Marx mesmo responde, dizendo que, na Alemanha, é quase impossível, pois não existe uma burguesia que a consolide; conclui então que, enquanto não se realizar uma revolução em prol da emancipação política, os alemães, e não apenas os judeus, continuarão no passado.
Enquanto a emancipação política da França se punha desde 1789, cinquenta anos depois, Marx indaga sua possibilidade na Alemanha.
Essa problemática, que vem desde 1842, perpassando 1843, continua aparecendo em 1844, mais radicalizada; porque a crítica que se põe à propriedade privada vai ser matizada, não mais por uma referência puramente filosófica, mas pela comparação entre as condições da revolução francesa e as do resto do continente. Marx não vai mais pensar a questão alemã, justificado na ideia de que, sem a existência de uma burguesia decidida, conquistadora e heróica, a tarefa revolucionária é irrealizável.
Nesse ínterim, continua com o mesmo problema, não encontra o protagonista histórico capaz de assumir a tarefa da emancipação humana. Mas avança, em relação a 1843, na medida em que esboça uma crítica da sociedade burguesa, sem apontar apenas a propriedade privada como o eixo de suas limitações, vai adiante, estudando – sob a influência de Mosse Hess – a questão do dinheiro como encarnação da alienação.
Verifica-se que Marx faz um texto de transição, onde ecoam as impostações de 1843, mas progride com a análise da diferença entre emancipação política e emancipação humana. Entretanto, o dilema permanece: Qual personagem social realizará a emancipação humana? Quem dará corpo à verdadeira democracia?
O burguês emerge como protagonista de classe, mas falta o contraponto, que Marx não consegue ainda localizar. No texto de 1845, na sequência do seu raciocínio, encontra o sujeito histórico capaz de realizar a emancipação humana.
Para compreender esse processo, é preciso refletir sobre A Questão Judaica em consonância com A Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. Estes dois textos foram escritos simultaneamente.