CAPÍTULO IV – UM CAMINHO PARA O COMEÇO
A IDEOLOGIA ALEMÃ E AS TESE AD FEUERBACH: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É no processo de amadurecimento que se dá a cristalização teórico-metodológica de Marx. Entre 1845 e 1846, já com dois anos em Paris, vivenciando o Movimento Socialista e pesquisando sobre economia política, aparece o primeiro resultado das reflexões iniciadas em 1843.
De 1845 a 1846, as concepções de Marx, com forte colaboração de Engels, começam a tomar uma forma; amadurecendo todo o pensamento intelectual contraditório, tenso, que tinha se iniciado em 1843. Tal avanço está exposto n’A Ideologia Alemã e nas Teses ad Feuerbach.
Na Ideologia Alemã, tem-se a colaboração intelectual de Marx e Engels; mas, n’A Sagrada Família a composição das partes efetiva-se por ambos, simultaneamente.
A Ideologia Alemã foi escrito em setembro de 1845, cinco meses depois de Marx ter elaborado as Teses ad Feuerbach. Um texto é impensável sem o outro. Não é por acaso que Engels, muitos anos depois, escreve que o acerto de contas contido na Ideologia Alemã é o resultado da evolução dele e de Marx; embora Marx tenha tido a percepção do que se chamará a “nova percepção do mundo” antes de Engels.
O texto no qual está essa nova concepção é as Teses ad Feuerbach. Portanto, embora a contribuição de Engels na Ideologia Alemã seja muito importante, a matriz intelectual era de Marx. Assim, apesar d’A Ideologia Alemã ser uma obra em comum, a fundação de uma nova problemática, de uma nova proposta de equacionamento da história; muito especialmente, da relação entre economia e cultura, se deve a Marx. As Teses ad Feuerbach foram publicadas, primeiramente, em 1888, por Engels; como apêndice do seu texto Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica Alemã. As Teses ficaram inéditas durante 40 anos, como também A Ideologia Alemã esperou ainda mais tempo, publicada só em 1932.
Essa publicação póstuma e tardia expressa as dificuldades da exegese da obra marxiana. Na Ideologia Alemã e nos Manuscritos de 1844, que são contemporâneos de publicação, está a ideia do homem como ser prático e social. Assim, toda discussão marxista, depois da morte de Marx, em 1883, e de Engels, em 1895, se passa sem o conhecimento desses textos fundamentais. Só no ano de 1930 essa documentação é colocada à disposição dos pesquisadores.
Após concluírem a Ideologia Alemã, Marx e Engels procuram editores; mas, em virtude de uma série de dificuldades conjunturais, abandonam o projeto de edição, alegando que a obra é mais um autoesclarecimento, que um texto para tornar-se público.
Na realidade, o que impulsiona a elaboração da Ideologia Alemã é o acerto de contas com eles próprios, porque a polêmica, a desmistificação da tradição neo-hegeliana, já tinha sido realizada com A Sagrada Família. É assim que Marx, em uma correspondência, explica que depois de clarificarem as ideias, e de chegar aos primeiros resultados de sua crítica, que vinha desde 1843, lançando as bases para a crítica da sociedade e do Estado; ele e Engels se desinteressaram pela publicação d’A Ideologia Alemã, deixando o texto “à crítica roedora dos ratos”.
Era um texto que tinha cumprido sua função de municiá-los em um processo de auto-esclarecimento, levando-os à investigação de alguns dados provisoriamente conclusivos. O que abre o caminho para que pensem o momento histórico-social, de acordo com os fundamentos históricos a quem tinham chegado.
Depois da morte de Marx, Engels retoma a discussão sobre o fim da filosofia clássica e publica as 11 Teses ad Feuerbach, em 1888. Há uma explicação para a atitude de Engels; pois, em seu texto sobre Feuerbach, a preocupação é mostrar o que significou a dissolução do legado hegeliano nos anos 40. E, ainda, a sua posição e a de Marx, em face da obra de Feuerbach. Na verdade, as Teses dão a Engels o fundamento para o acerto de contas com Feuerbach, expresso no seu livro Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. Assim, antes da análise sobre A Ideologia Alemã, é preciso fazer uma reflexão sobre as Teses ad Feuerbach.
TESES AD FEUERBACH
Marx estava em contato com o Movimento Socialista, quando escreveu as Teses, em março de 1845. Havia também entrado em confronto com a economia política, através da análise da teoria do valor, de Ricardo. Discutira algumas questões de política e economia, com Engels, e elaborara as linhas da crítica à filosofia pós-hegeliana. Até então utilizava os argumentos de Feuerbach para fazer a crítica a Hegel e aos neo-hegelianos.
Em 1844, retorna com a discussão hegeliana, dando-lhe nova valorização. Essa interlocução que estabelece com Hegel, Feuerbach e a grande tradição filosófica alemã é marcada por idas e vindas, que o enriquecem. Porém, a partir do contato com a economia política e da reflexão sobre essa área, depois de ingressar no mundo burguês que Paris representava, Marx começa a perceber a fragilidade teórica de Feuerbach. E, ainda, que o materialismo por ele abordado era limitado. A partir dessa compreensão, escreve as Teses ad Feuerbach.
É um texto aforismático, mas é onde Marx estabelece a crítica do materialismo, posto que, nesse momento, trabalha ainda no plano da abstração histórica, justo o que critica em Hegel. Em 1843, escrevendo a Ruge, aponta a debilidade da construção teórica de Feuerbach, em relação à questão política.
Em Hegel, Marx sempre valorizou a ideia de autoprodução do homem; o que está explícito no comentário sobre a Fenomenologia do Espírito, de 1844. Para Marx, a autoprodução do homem é relevante na medida em que pensa o homem como produto de si mesmo. A limitação hegeliana está no fato de ver a autoprodução como puramente intelectual; ou seja, ocorrendo no domínio da ideia. Marx percebe que Hegel apanhou a ideia do automovimento, mas o fez mistificadoramente, porque não a apanhou em sua concreção histórica, e sim enquanto autodesenvolvimento intelectual da consciência.
É com essa determinação que Marx começa a perceber que, em Feuerbach, toda a concepção materialista – de não explicar a terra pelo céu, mas o céu pelas relações na terra –, deixa de lado precisamente o elemento dinâmico.
Marx valoriza a posição materialística e desmistificadora de Feuerbach, mas com a lógica hegeliana entende a insuficiência dessa concepção. É para fundar a sua concepção de sociedade que, desde os Manuscritos, põe como elemento constitutivo da sociedade o trabalho. É no trabalho que está o modelo de práxis, de prática criadora.
Marx se confronta primeiro com Hegel, uma vez que defende o processo de autocriação ser puramente ideal. E, depois, se confronta com Feuerbach, para quem o sujeito material é passivo, contemplativo, pois considera o sujeito de forma inteiramente abstrata, deslocado de suas relações materiais com o mundo. Feuerbach funda o seu materialismo, em um naturalismo do homem; concepção absolutamente insuficiente para Marx, que via no trabalho, ou seja, na atividade criadora e transformadora do homem, o fundamento da sociabilidade. Para Marx, já em 1844, nos Manuscritos, o homem é atividade, enquanto Feuerbach concebe o homem como sensibilidade contemplativa.
Nas Teses ad Feuerbach, com a evolução intelectual de Marx, ocorre a ultrapassagem do materialismo naturalista de Feuerbach. Marx, desde 1843, repudia o idealismo hegeliano, utilizando os argumentos de Feuerbach. Na medida em que amadurece suas próprias concepções sobre a constituição da sociabilidade, percebe que as Teses de Feuerbach são insuficientes e passa, então, a fazer críticas, com as quais resgata as concepções hegelianas, justamente pela valorização do aspecto da autocriação do ser social; mesmo que, em Hegel, tal concepção parta do mundo especulativo, Marx passa a fazer a inversão.
Em março de 1845, as concepções de Marx, em função de suas experiências intelectuais e políticas, desencadeiam um processo de revolução em sua problemática. Neste ínterim, desenvolve um debate crítico e fecundo com os mesmos autores que ocuparam seu universo intelectual nos anos anteriores, embora sejam alvo agora de uma crítica profunda, fundamentada em seu conhecimento acumulado. A partir daí, estabelece não só uma crítica à mistificação teórica hegeliana, com apoio de Feuerbach, mas utiliza essa crítica para apontar a limitação do autor.
Elabora, então, sua concepção dessa problemática, o que desemboca na feitura da Ideologia Alemã, embora as Teses ad Feuerbach sejam seu núcleo central. Nesta, faz a crítica ao materialismo vigente, que lhe servira de sinalizador às fragilidades do idealismo hegeliano e, especialmente, o idealismo dos neo-hegelianos.
Marx mostra que esse materialismo é insuficiente porque é especulativo e abstrato. Daí que a crítica de Marx dirigida a Feuerbach é uma aporia global. Nesta, demonstra que a concepção feuerbachiana não apreende a natureza essencial das atividades específicas do homem, como ser prático e social. E, ainda, que a realidade do trabalho, em sua relação homem/natureza e homem/homem, na qual a natureza é transformada e o homem também, não entra no campo analítico de Feuerbach; deduzindo, então, que a essência da sociabilidade, para esse autor, é a contemplação.
Para Marx, a atividade dos homens é prático-crítica, sendo esta a chave da Ideologia Alemã, porque é, simultaneamente, objetiva e revolucionária, pois se concretiza na realidade material do mundo e não nas expressões ideais dessa realidade. Com a crítica a Feuerbach, Marx demonstra que não há separação entre materialismo e idealismo, como na concepção naturalista de Feuerbach e, também, nas tradições idealistas. Para Marx, a atividade específica dos homens é crítico-prática, o que está sinalizado por um traço objetivo, porque não se dá nas representações do mundo, mas na sua materialidade objetiva. A atividade é prática na medida em que implica uma objetivação, que está materialmente além do sujeito.
Assim, a concepção marxiana, de que o homem é um ser crítico-prático, se contrapõe tanto ao materialismo metafísico abstrato de Feuerbach, quanto à tradição idealista; uma vez que ambos são insuficientes, pois não apreendem o caráter de subjetividade que a atividade dos homens tem.
Na realidade, Marx mostra que, para Feuerbach, o homem é uma sensibilidade passiva, que não age, porque não apanha o caráter de atividade dinâmica, que é próprio da estrutura e do modo de agir do ser social. A essa atividade dos homens, Marx chama de crítico-prática. É prática porque demanda uma objetividade que lhe é própria. Não é apenas o trabalho da consciência, ainda que se expresse, no trabalho, a consciência; pois os homens não estão no mundo apenas pensando, estão pensando e fazendo, e esse fazer tem uma objetividade que transcende o domínio do sujeito, inclusive, a sua representação consciente. Nesse sentido, ao insistir na objetividade da atividade humana, Marx está fazendo uma crítica a Feuerbach. Mas, ao mesmo tempo, está ferindo toda a tradição idealista, para a qual essa objetividade é absolutamente epifenomênica, não devendo, portanto, ser levada em consideração.
Tem-se, no entanto, uma crítica a certa tradição materialista, porque tanto esse materialismo como esse idealismo, pela forma como põem seus objetos, determinam certos traços de seu equacionamento, na medida em que ambos não valorizam a objetividade prática-material; pois, embora tenham elementos comuns, agem por razões diferentes.
Em Hegel, há toda uma concepção de construção da realidade na ideia; enquanto em Feuerbach, apesar de trabalhar com o concreto, sua concepção do ser social é ainda de um ser inativo frente à realidade. As concepções programáticas são distintas, os pontos de partida e os pressupostos também, pelo fato de não levarem em conta a objetividade da atividade humana.
Para Marx, a atividade humana não é objetiva e, portanto, prática. É mais que isso, é uma atividade crítica, revolucionária, porque transforma, simultaneamente, o sujeito e o seu objeto. Tal atividade é o trabalho, que transforma a natureza, transformando também o próprio homem. Nesta visão está contida uma crítica à concepção de Feuerbach, para quem o homem é sensibilidade frente à natureza, tendo esta como um dado primário para si.
Na concepção de Marx, a natureza que se apresenta para o homem já é a natureza transformada pelo homem. A relação animal/natureza é sempre uma relação de imediaticidade, porque a atividade dos animais não transforma a natureza além do ciclo da própria natureza. A natureza para os animais é a natureza originária, dada, ou seja, a natureza natural. Para os homens não, a natureza já é um produto das transformações que sofre pela ação dos homens.
Assim sendo, a atividade prático-crítica, ou objetivo-revolucionária, é a expressão da ideia desenvolvida por Marx desde 1844, contida nos Manuscritos, do ser prático e social. Da atividade prática do homem, derivam duas questões:
- a) a relação do homem com a natureza e com seus semelhantes não é uma relação teórica, de contemplação, porque envolve sensibilidade, sentido. Essa relação se dá porque o homem não apenas contempla a natureza, mas porque age¹⁷ sobre ela. A sensibilidade humana, na concepção marxiana, consiste em ultrapassar a contemplação¹⁸.
- b) a atividade humana, para Marx, é revolucionária.
Nesse momento, Marx está escrevendo em uma Paris em ebulição, onde emergem os movimentos sociais que antecedem 1848, vinculando-se ao Movimento Socialista. Marx está não só pensando politicamente a sociabilidade, mas o campo de transformação da sociedade burguesa.
A tradição revolucionária, do Movimento Operário, que vinha dos Iguais, de Graco Babeuf, cuja figura expressiva era Blanquí. Estes defendiam que um grupo revolucionário de vanguarda daria um golpe e, tomando o poder, instalaria a ditadura, eliminando os traços da velha sociedade. Nesta alternativa, já está embutida a ideia de vanguarda¹⁹.
O que essa tradição supunha, na realidade, era mudar as circunstâncias, para então mudar os homens; os homens vistos como produtos de seu meio desde a tradição iluminista.
A proposta dos vanguardistas era criar as condições para uma educação nova, mudando as circunstâncias, porque mudando a estrutura social, os homens mudariam. A realidade tem mostrado que não é assim. Marx critica tal concepção, afirmando que a atividade necessária à mudança da realidade social tem de ser crítico-prática, com objetivos revolucionários. Esta modalidade de atividade é que permite a transformação dos homens e de suas circunstâncias. Para Marx, o caminho não era a revolução para os homens, mas sim a criação das condições para que a classe dos trabalhadores se autoemancipe.
Assim, a tradição considerava que bastava mudar a consciência dos homens, que estaria mudando o mundo; mas, para Marx, isso não era suficiente, porque a atividade dos homens não se inscreve em sua consciência, é preciso que tenha objetividade. Portanto, não se trata de mudar as concepções que os homens têm do seu mundo, mas de mudar o próprio mundo. Com esta ideia, Marx infirma a reforma moral, qual seja: mudar primeiro os homens e, em decorrência, mudar o mundo; também não adianta mudar primeiro o mundo, para depois mudar os homens.
Na concepção de Marx, a revolução consiste na consciência da necessidade de mudança das circunstâncias e da consciência dos homens; ou seja, ao mudar o mundo, a classe operária mudaria a si mesma. Marx, nesse momento, estava pensando a Revolução Operária. Ao redigir as Teses, não busca discutir apenas as concepções antropológicas de Feuerbach, mas clarificar, para a classe operária, o processo revolucionário. Está tentando gestar a ideia de autoemancipação, de autolibertação da classe operária.
Esse processo não implica apenas na mudança do mundo, significa a mudança de si, enquanto classe, mais exatamente, a supressão das classes.
No texto, o debate político e o teórico estão juntos; ou seja, o que está estabelecido na 11ª Tese é que a filosofia tradicional, até aquele momento, se contentou em interpretar o mundo, mas o que importava agora era sua transformação. O eixo da discussão está na apropriação do conceito de revolução.
Na realidade, Marx discute nas Teses uma nova concepção de revolução, que não tem nada a ver com a tradição jacobina, blanquista, na medida em que é a classe operária, como sujeito revolucionário, pondo-se a si mesmo como sujeito histórico. Essa atividade revolucionária seria o paradigma da atividade prático-crítica marxiana.
É preciso esclarecer que na concepção marxiana não se trata de superar os momentos teórico-práticos. A 11ª Tese não diz que teoria e interpretação devem ser canceladas, a ideia é que da prática surja a teoria; ou seja, é na atividade revolucionária que se dá o caráter totalizante da ação humana. As Teses ad Feuerbach são uma síntese da exegese crítica que Marx faz da concepção feuerbachiana. A crítica de Marx está colada à realidade, pensando uma prática revolucionária, pela emergência do proletariado como sujeito político, para o qual já não bastam as tradições das práticas iluministas, jacobinas e blanquistas.
Daí porque o ano de 1845 é considerado definidor itinerário de Marx. A incorporação do conceito de classe social não é mais algo que se vislumbra no horizonte, tal como aparece na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Marx apreende a classe social, pensada a partir do trabalho, pondo-a como elemento prático-crítico, ou seja, objetivo e revolucionário.
A crítica que Marx faz a Feuerbach não é só um acerto de contas com um interlocutor que lhe fornece elementos fecundos com os quais critica Hegel; mas com aquele que lhe permite estabelecer as bases do materialismo, para fundar tanto uma nova concepção de prática social, quanto uma prática cujo protagonista sociopolítico é o proletariado.
¹⁷ Marx explica, nos Manuscritos, como é que os sentidos, na prática, se humanizam: o ouvido, para apanhar e compreender a música clássica, precisa ser educado; a percepção artística não é algo natural, é na fruição artística que se desenvolve o senso estético. A sensibilidade não é uma coisa dada, como afirma Feuerbach, mas é uma sensibilidade ativa, produto da ação dos homens.
¹⁸ Marx nega inteiramente Feuerbach, na medida em que para este pensador o exemplo maior de humanização é o amor, entendido como recepção de afeto; para Marx, essa questão se coloca de maneira invertida.
¹⁹Em relação à ideia de vanguarda, leva alguns críticos do leninismo a pensar que a teoria política de Lênin é uma continuidade do blanquismo: de que um partido formado por quadros profissionais, tomando o poder, instaura uma ditadura tipo “jacobina” (a “ditadura dos bons”) e elimina os traços da velha sociedade. Na verdade, essa concepção é uma derivação do iluminismo; isto é, alguns homens iluminados pela razão farão a revolução.