Para entendê-la!!!
“Que não dê aos cães a coisa santa”.
Aconteceu-me alguma coisa que,
pelo fato de não a saber como viver,
vivi uma outra?
Perdi alguma coisa que me era essencial.
Mas uma ausência inútil me faz falta e me assusta,
era ela que fazia de mim
uma coisa encontrável por mim mesma,
e sem sequer precisar me procurar.
E havia, aquela coisa sonsa e inquieta
em minha feliz rotina de prisioneira?
E havia, aquela coisa latejando,
a que eu estava tão habituada,
que pensava que latejar era ser uma pessoa,
que meus olhos terminaram
não se diferenciando da coisa vista.
Eu bem queria ter visto coisa melhor.
Embora eu saiba o que é o horror
– o horror sou eu diante das coisas.
Nunca fui capaz de perceber
as coisas se encaminhando… meus olhos
tanto haviam manuseado a forma das coisas…
… o que eu estava vendo eram coisas feitas…
A primeira coisa que eu faria seria arrastar
para o corredor as poucas coisas de dentro de mim…
a coisa mais colada à minha vida,
… e desencantara a coisa viva.
… tudo podia ser chamado de qualquer coisa,
porque qualquer coisa se transmutaria
na mesma mudez vibrante de coisa.
Eu sei! Sei com horror: gozam-se as coisas.
Frui-se a coisa de que são feitas as coisas …
Mas há alguma coisa que é preciso ser dita.
É preciso ser dita… tenho certeza disto:
de que as coisas todas passam acima ou abaixo da dor.
… para eu poder colher as coisas com as mãos,
as coisas tinham que se coagular…
Piedade de ser alguém ou de alguma coisa…
… ser humano tem que ser o modo como eu, coisa viva,
obedecendo por liberdade ao caminho do que é vivo…,
seria a minha identidade tocando na identidade das coisas.
Olha só o que é tudo: é um pedaço de coisa…
Minha exaustão se prostrava aos pés do pedaço de coisa,
adorando infernalmente ser coisa…
E nem ao menos o eu estava tocando na coisa.
É irradiação opaca, simultaneamente da coisa e de mim.
Pois a coisa nunca pode ser realmente tocada.
O que existe, e que é apenas um pedaço de coisa,
no entanto tem-se que pôr a mão nos olhos
contra o opaco da coisa.
De que sou eu a semente?
Semente de coisa, de existência…
Não quero ver esse mundo feito de coisa!
… a coisa é viva como ervas. E foi o meu anjo
quem encontrou o pedaço de coisa…
Pois mesmo quando cai algo do céu, é um meteorito,
isto é, um pedaço de coisa.
Mas é a mim que caberá impedir-me de dar nome à coisa.
O nome é acréscimo, e impede o contato com a coisa.
O nome da coisa é um intervalo para a coisa.
A vontade do acréscimo é grande
– porque a coisa nua é tediosa.
Porque o tédio é insosso
e se parece com a coisa mesmo.
Quem está absorto está sentido o peso das coisas.
Uma das provas da coisa é o peso:
só voa o que tem peso.
Ou tudo isso é ainda eu estar querendo
o gozo das palavras das coisa?
Ficar dentro da coisa é a loucura.
… sei que estou indo para alguma coisa que dói…
… sei que abandonar tudo isso
– em prol dessa coisa mais ampla que é estar vivo -…
… alguma coisa na morte quer se libertar e tem
ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo.
… se está ininterruptamente ocupado em ser,
assim como todas as coisas estão sendo……
Talvez seres de outro planeta já saibam das coisas
e vivam numa intertroca para eles natural…
A beatitude é o prazer contínuo da coisa,
o processo da coisa é feito de prazer e
de contato com a coisa de que se precisa gradualmente mais.
E isso porque as coisas são muito delicadas…
A coisa é tão delicada que me espanto
de que ela chegue a ser visível.
E há coisas ainda tão mais delicadas
que estas não são visíveis…,
porque as coisas são muito delicadas.
… e era assim que eu pulava por cima da coisa
e sentia o gosto do tempero.
… eu punha minha pata humana em cima dela
e quebrava a sua delicadeza de coisa viva.
As asas das coisas estavam abertas,
ia fazer calor de tarde, já se sentia pelo suor fresco
daquelas coisas que haviam passado a noite morna…
Mas agora meu mundo é o da coisa que
eu antes chamaria feia ou monótona.
Quero o material das coisas.
Existe uma coisa que é mais ampla,
mais surda, mais funda, menos boa,
menos ruim, menos bonita.
Embora também essa coisa corra o perigo de,
em nossas mãos grossas,
vir a se transformar em “pureza”,
nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.
Não quero mais usufruir da felicidade
de gostar de uma coisa só porque,
estando ela aparentemente completada,
não me assusta mais…
A coisa é muito mais que isto.
Falar com as coisas é mudo.
O contato com a coisa tem que ser um murmúrio…
viver daquilo inicial e primordial que
exatamente fez com que certas coisas
chegassem ao ponto de aspirar a serem humanas.
Mas há alguma coisa que será indispensável dizer.
De uma coisa eu sei…
É que a redenção devia ser na própria coisa.
E a redenção na própria coisa,
seria botar na boca a massa da cosia…
… e a raiz de meus cabelos amolecia
Com àquela coisa viscosa…
…e alguma coisa se tinha feito.
A transcendência era em mim o único modo
como eu podia alcançar a coisa?
… então comecei a cuspir, cuspir furiosamente
aquele gosto de coisa alguma.
… a coisa precisa da coisa…
Mas estar vivo é outra coisa.
… agora eu desconfiava de estar
de novo transcendendo? as coisas…,
onde a dor não é alguma coisa que nos acontece,
mas o que somos.
Não sei, mas eu me aproximava
com angústia de alguma coisa…
E só posso amar…
a evidência desconhecida das coisas…
sem nenhum sentido humano,
seria minha identidade tocando
na identidade da coisa!
Obs: Fragmentos de busca da COISA in A PAIXÃO SEGUNDO GH de Clarice Lispector para reflexão no Grupo de Estudo que funciona no espaço CULTURA NORDESTINA Letras e Artes – Salete Rego Barros.
Recife, 26/07/2017