Do meu livro “Um Caminho para Marx”
Para sistematizar o eixo metodológico do pensamento marxiano é preciso atentar para duas observações preliminares na intenção de que se tenha, de um lado, o balizamento do terreno onde foi gerado e do outro, a dimensão da reflexão a ser feita. O primeiro ponto é o reconhecimento do caráter da obra marxiana; ou seja, aquela saída estritamente da lavra de Marx. O segundo ponto, chamado de marxismos, ou de tradição marxista, consiste no conjunto de elaborações que se estabelecem com a vinculação teórica ao pensamento de Marx.
É preciso esclarecer que em torno do caráter da obra marxiana existem várias posições, a saber:
A primeira é a interpretação que tem Engels como base e que se desdobra e se afirma na análise dos teóricos da II Internacional. A ideia é que com Marx surge uma nova concepção de mundo, com um fundamento científico, que se bifurca em dois grandes blocos do saber, o primeiro deles é chamado materialismo dialético, pois Marx concebia uma ciência geral do ser, independentemente de sua natureza e de suas determinações. E essa ciência geral, aplicada e estendida à sociedade, à história e à cultura, determinaria outro bloco de saber denominado de materialismo histórico. Assim, Marx seria o fundador de uma nova filosofia geral, uma visão de mundo entendida como filosofia abrangente, que forneceria uma explicação coerente do ser em todas as suas modalidades, seria o materialismo dialético e, especificamente dirigido ao ser social, se constituiria o denominado materialismo histórico.
Essa interpretação emerge a partir de 1880, da II Internacional, apoiada nas últimas leituras e intervenções de Engels, divulgadas em bibliografia sobre esse evento, tendo como referências básicas Kautsky e Plekanov, sem os quais não se compreenderia a constituição do conceito de marxismo. É uma concepção próxima da que será sancionada na III Internacional, a denominada Internacional Comunista. Há um corte político muito grande entre a II e a III Internacionais. A III Internacional se constitui em 1919, como uma resposta à crise da II Internacional; isto porque grande parte dos teóricos dos partidos vinculados vão, a partir de 1914, no bojo da crise europeia deflagrada pela I Guerra Mundial, se articular a uma corrente política que vai ser conhecida como “social democracia”; não mais no sentido clássico dos anos de 1880 a 1890, mas sim no sentido evolucionista, reformista e gradualista. Contra essa tendência é que os bolcheviques, especialmente Lênin e Trotsky, organizam a III Internacional, marcando, assim, um corte na linha política da II Internacional. O importante a destacar é que a este corte político não correspondeu um corte teórico.
O que ocorre é que a III Internacional leva às últimas consequências a teoria de que é possível revolução em um só país, avançando com a concepção teórica da II Internacional, com graves consequências. Assim é que toda vulgata stalinista dos anos 30, continuando pelos anos 40 e 50, na Europa e na América Latina, até os anos 70 e 80, caminha com essa concepção. Como ilustração desse fato é interessante lembrar o impacto das obras de Marta Harnecker, pensadora chilena que teve um papel fundamental na divulgação do marxismo. A maior consequência desse processo foi a transformação do pensamento marxiano em uma pauta de reivindicações; ou seja, em um conjunto de regras formais que resultou em uma típica corrente escolástica do século XX, com todas as derivações políticas daí decorrentes. Assim, a concepção do maior dos críticos, que é Marx, tornou-se um discurso de poder, apologético e pragmático, quer de práticas de poder, quer de práticas que tendem ao poder.
É na confluência dessas tradições (considerando o rumo que o poder soviético toma no final dos anos 20, após a morte de Lênin) que surge uma nova concepção, quase como uma “religião”, conhecida como marxismo-leninismo, mas aparecendo com diversas nuanças, como marxismo-leninismo-stalinismo, ou então, marxismo-leninismo-maomismo e assim por diante. Entretanto, sem contestar sua funcionalidade política, que teve um âmbito de validade indiscutível, nos anos 30, marxismo-leninismo significava um corte epistemológico no plano político – com determinada tradição no movimento operário; como exemplo as tradições mutualista (de cooperação mútua) e anarquista (a sociedade atuando independente e antagonicamente ao poder exercido pelo Estado, considerado dispensável e até mesmo nocivo), dentre outras.
Todavia, é preciso ficar claro que essas concepções pouco ou nada têm a ver com a concepção marxiana em si, pois coadunam falsas suposições, como a de que a obra marxiana apresenta, com o materialismo dialético, uma filosofia da natureza como princípio de uma teoria geral. Entretanto, é temerário sustentar essa afirmação baseada nos estudos de Marx, o que pode ser refutado com pelo menos duas observações: 1) A Ideologia Alemã contém princípios de análise de uma filosofia da natureza; na intenção de evidenciar, em um bloco cultural, toda a dissolução do pensamento hegeliano na Alemanha; 2) As obras e reflexões de Engels é que estão expressas no manuscrito inacabado Dialética da Natureza e não as de Marx.
É interessante ressaltar que a interpretação acima tende a projetar sobre a obra de Marx todo um conjunto de elaborações e construções que vem da tradição marxista, com as várias correntes surgidas depois da morte de Marx (1883); momento em que seus seguidores, com a preocupação de continuar com os estudos e pesquisas já realizados, produziram em campos teóricos não analisados e nem mesmo estudados por Marx. O resultado é que essas elaborações tendem a se colocar em confronto com as preocupações originais de Marx. Na realidade, grande parte desses marxistas ou desconheciam ou mesmo subestimavam a relação específica entre Marx e Hegel e, assim, muitos tendiam a fazer uma leitura rigorosamente cientificista e positivista da obra marxiana.
Como referência, basta lembrar Kautsky, um dos geradores desta tradição que, antes de se vincular à corrente marxista, era um rigoroso determinista naturalista, marcado pelo pensamento científico do século XIX. Assim é que Engels afirma, no enterro em frente ao túmulo de Marx, que conhecia apenas duas figuras que revolucionaram a concepção de mundo naquele século, de um lado, Marx e do outro Darwin. São conhecidas as simpatias de Marx pelas concepções de Darwin, a quem pretendia dedicar O CAPITAL, escrevendo-lhe, inclusive, uma carta comunicando a decisão, à qual o cientista respondeu: “se sentia honrado, mas que não gostava de política…”
Essa interpretação tem uma matriz distinta da anterior. É a que projeta sobre Marx a ideia da especialização das Ciências Sociais. Daí alguns economistas, não marxistas, dizerem que Marx estabeleceu uma crítica interessante da ordem burguesa, retomando um pouco dos pensadores clássicos, mas, no final, foi superado; ou seja, Marx aparece como um economista típico do século XIX e com uma contribuição interessante. Ou então, Marx é visto como o pai da Sociologia; isto porque a Sociologia teria um “pai” à direita, Augusto Comte, e um “pai” à esquerda, Karl Marx. Ou ainda, em algumas leituras filosóficas, Marx seria um crítico materialista de tradição hegeliana. O resultado é que, de acordo com a especialidade e o interesse do autor, são feitas leituras específicas das obras de Marx.
Dessa maneira, embora tais interpretações enveredem por caminhos distintos, contribuindo para a visão do Marx “enciclopedista”, quem ler os seus escritos encontrará um amplo material que diz respeito à especialização de vários campos do conhecimento, encontrando um pouco de Sociologia, Economia, Política, etc.
Na verdade, esta última leitura tem com a anterior uma relação necessária porque ao se pensar o materialismo histórico aplicado por Marx, o resultado acabaria por especializar-se dando margem a uma sociologia burguesa e uma sociologia marxista; uma historiografia burguesa e uma marxista e assim por diante. É preciso destacar, então, a incidência das determinações de classe nas apreensões teóricas, porque ao se estabelecer a polaridade o resultado é a ideia de especialização.
Em suma, essas interpretações, por mais diferentes que sejam, acabam sancionando como caráter da obra marxiana tão somente a distinção metodológica entre Marx e outros grandes pensadores da cultura ocidental. Com essa visão, pode-se dizer legitimamente que o pensamento social moderno, ou as ciências sociais contemporâneas, é fecundado por Marx, Durkheim e Weber; sendo as diferenças entre estes autores apenas de enfoque metodológico, no limite, são diferenças de compromissos com projetos sociais: Marx teria compromisso direto com um projeto socialista proletário; Durkheim seria um pensador reformista/conservador; e Weber o cientista social que luta por uma ciência totalmente isenta de valores.
O importante a ressaltar é que essas matrizes apesar de diferentes levam a uma conclusão similar, qual seja, a de sancionar a especialização do saber entendido como recorte legítimo de objetos reais. Assim, há um objeto do sociólogo, um objeto do antropólogo e daí por diante. Além do mais, esse recorte do pensamento de Marx é legitimado geralmente pelas instituições acadêmicas.
A concepção marxiana em si parte das próprias formulações de Marx, procurando apanhar a estrutura interna da reflexão deste pensador. O ponto de partida são os anos de 1845-46, momento em que a construção filosófico-teórica do pensamento marxiano está posta, daí em diante é só aperfeiçoar. Em 1845, Marx escreve, juntamente com Engels na Ideologia Alemã, que só reconhece uma ciência: “A Ciência da História”. Pensa, então, fundamentalmente, que a compreensão do social se constitui uma unidade teórica articulada restrita à sociedade; e que a compreensão desse objeto – a sociedade – obtêm-se através de uma análise que deve partir de uma perspectiva de totalidade.
Tal concepção, que aparece em 1845, pode ser diretamente conjugada com a célebre 11ª Tese ad Feuerbach, na seguinte afirmativa: “Até então os filósofos tinham pensado o mundo, se trata agora não apenas de interpretá-lo, mas de interpretá-lo para transformá-lo”. É a partir dessa afirmativa que se supõe Marx ter encontrado uma nova inteligibilidade do social. E essa nova inteligibilidade se caracteriza por três posições claras no pensamento de Marx:
1) A recusa à constituição de objetos teóricos desvinculados de uma perspectiva de totalidade; ou seja, recusa de qualquer segmentação que não seja informada, à partida, por uma concepção de totalidade. Isto porque Marx reconhece, na totalidade que é o social, totalidades parciais que podem legitimar abordagens teóricas segmentadas. É impossível estudar a sociedade, mas é perfeitamente legítima a abordagem setorial, desde que informada, à partida, pela concepção da totalidade social.
É importante esclarecer que essa totalidade não é uma totalidade epistemológica de pura reconstrução pelo viés epistemológico; o que daria, no limite, com a ideia bastante difundida de que nas Ciências Sociais a interdisciplinaridade permitiria obter uma abordagem totalizante. O aprofundamento do conceito de totalidade será alcançado por Marx em 1857, nos Grundrisse.
2) A recusa em desdobrar as suas análises para além do social. Apesar de ser uma posição extremamente polêmica, não é por acaso que a partir de 1845 a discussão marxiana se restringe exclusivamente à sociedade.
3) A recusa à tradição do que entendia por ideologia, que era, na realidade, a não aceitação de qualquer conhecimento especulativo. A ideia de ciência em Marx não é a que se afirma com um padrão de conhecimento extraído das Ciências Naturais; embora haja algumas passagens onde o autor correlacione a atitude do analista social com a do químico. No Prefácio ao Livro I do Capital diz textualmente o seguinte: “na medida em que não se pode trabalhar no laboratório, com o microscópio, me valho da abstração. Penso a história como um desenvolvimento histórico-natural […]”. A ideia é uma concepção de ciência que não tem nada a ver com a concepção de Ciências Naturais.
Assim, é preciso pensar a obra marxiana como uma estrita teoria social, que apresenta dois pré-requisitos básicos:
O primeiro é que todas as formulações marxianas são rigorosamente históricas. Porém, o histórico deve ser entendido como formulações relativas, o que significa que todas as suas terminações devem ser verificadas. Por ter desenvolvido seus estudos a partir da década de 40, do século XIX, os resultados estão diretamente vinculados à análise da sociedade burguesa e não podem ser aplicados diretamente a qualquer outro tipo de sociedade. Os estudos a serem feitos sobre a sociedade burguesa, por exemplo, no século XX, partindo da análise marxiana, devem apanhar os pensadores que acrescentaram todo o desenvolvimento da lógica burguesa. É o caso de Lukács.
O segundo é que a preocupação de Marx não está em saber como se conhece um objeto independente desse objeto, porque não escreveu um tratado epistemológico e muito menos as “regras do método dialético”; daí a observação de Lênin: Marx não escreveu um tratado de lógica, mas escreveu a lógica do capital. O essencial na discussão marxiana é algo que diz respeito ao movimento do próprio objeto que está sendo estudado, não a elaboração de um conjunto de normas, regras, muito menos um paradigma epistemológico para o conhecimento do objeto. Há em Marx o tratamento de um objeto concreto em sua essência, o determinante das formulações marxianas diz respeito não ao movimento de uma razão para aproximar-se do objeto, mas ao movimento racional que apreende o movimento efetivo desse objeto.
É preciso pensar Marx e analisar as suas obras não como um cientista social que se distingue dos demais por sua vinculação político-classista ou pelo seu projeto societário, mas por inaugurar uma forma radicalmente nova de pensar e analisar o social, ao fundar uma ontologia do ser social; as obras de Marx fundam uma nova compreensão do ser social, mas de um ser social específico, aquele posto pela ordem burguesa. Em suma, é necessário entender a obra de Marx não como sociologia, filosofia ou política mas como uma teoria social histórico-ontológica.
Para realizar uma análise da obra de Marx é preciso considerar três pontos básicos. Primeiro, a obra marxiana é uma unidade que se dinamiza em uma intensa relação de continuidade e de mudança, tendo como momento determinante o ano de 1843, a partir do Manuscrito de Kreuznach. Embora hajam escritos anteriores importantes, como sua dissertação de 1841, sobre a Diferença da Dialética da Natureza entre Demócrito e Epícuro, e os textos jornalísticos ou históricos publicados no Jornal Gazeta Renana, os Manuscritos são a base da primeira crítica rigorosa de Marx a Hegel. A partir daí se esboça um projeto de pesquisa que marcará toda a obra de Marx, ocupando-o durante os próximos quarenta anos.
É claro que em 1843 este pensador não tem ainda uma concepção teórica organizada, isto aparecerá apenas em 1857, com O Capital. Trata-se de um projeto inconcluso, emergente, embrionário e com uma clara contraposição frente a Hegel. Entretanto, mesmo rompendo com Hegel, Marx simultaneamente incorpora modalidades intelectuais e temáticas hegelianas. Este projeto vai se aprofundar entre 1845/46 com a obra A Ideologia Alemã e as Teses ad Feuerbach. No entanto, é preciso esclarecer que entre o projeto inicial e esses dois escritos, Marx produziu ainda A Questão Judaica, Os Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844 e A Sagrada Família, considerados fundamentais para a compreensão da construção ontológica do pensamento marxiano. Mas, é n’A Miséria da Filosofia de 1847, onde, pela primeira vez, o programa implícito em 1843 toma forma, com a abordagem totalizante da sociedade burguesa.
Vale esclarecer que este texto objetiva analisar e compreender o método construído por Marx para apanhar a realidade, portanto, algumas de suas obras não serão diretamente abordadas, como é o caso do Manifesto Comunista de 1848 e O 18 Brumário de Luiz Bonaparte. Nesta, Marx acompanha pari passu o Golpe de Estado que estabeleceu novamente o Império na França, em 1852. Assim, a reflexão se deterá nos textos que vão de 1857 a 1859, quando o filósofo, o pensador e o pesquisador estão em seu ponto máximo de construção e apreensão da realidade. É o momento da maturidade intelectual de Marx, quando aparece claramente o conjunto de procedimentos metodológicos que lhe permitirá decifrar a ordem burguesa.
Ao longo desse trajeto é possível apanhar o processo de construção da teoria social no pensamento marxiano. E o segundo ponto necessário à análise da obra de Marx está na apreensão de como este pensador trabalha os materiais de sua reflexão, como formula o movimento e as determinações daquele que será seu objeto de pesquisa por 40 anos, ou seja, a ordem burguesa. Na intenção de compreender como essa sociedade estrutura-se, como se desenvolve e quais seus elementos críticos. Nesse processo de análise e apreensão do pensamento marxiano não deve haver deslocamento entre método, desenvolvimento e construção teórica. Também não se deve pensar Marx como um filósofo especulativo, porque ele não pretende criar um sistema, embora sua reflexão e obra sejam sistemáticas, não constrói uma concepção de mundo fechada e acabada.
A obra de Marx é uma reflexão ontológica sobre um processo real, a construção e o desenvolvimento da sociedade burguesa. É uma obra, assim considerada, inacabada, na medida em que a realidade social ainda não se esgotou, mas, ao contrário, tem se aperfeiçoado em todo caminhar do século XX, embora viva em meio a profundas crises e praticamente sobreviva a partir dessas mesmas crises. Portanto, mesmo tendo desenvolvido vários estudos, sabe-se que Marx só publicou o volume I de O Capital; os volumes II e III foram organizados e publicados por Engels, após sua morte; e o volume 4 é de responsabilidade de Kautsky. Assim, sendo a ordem burguesa o objeto dos estudos marxianos, e considerando que ainda não está superada, torna-se impossível fechar esse estudo enquanto tal sociedade existir.
No processo de reflexão e análise dos escritos de Marx, observa-se que em cada momento há a continuidade do momento anterior, embora inclua também uma relação de ruptura. Na realidade, é preciso pensar a sua obra como uma unidade, recusando a concepção de que há nos seus escritos um “corte epistemológico” que se colocaria da seguinte forma: O Marx jovem, ideólogo e humanista (1844/45), e aquele que não tematiza mais a alienação, que é o cientista. E, ainda, a concepção de que Marx já está pronto por inteiro em um determinado momento. O pensamento marxiano é um processo que se expressa em uma série de registros documentais de acumulação de conhecimento, onde há inflexões e recuperações, uma verdadeira dinâmica.
É preciso verificar – eis o terceiro ponto para análise da obra marxiana – a relação que existe entre teoria e prática política. Apesar do foco não ser as vinculações políticas de sua obra, deve-se partir do princípio da existência dessas vinculações, na medida em que seu pensamento e elaboração são inconcebíveis sem o movimento operário. Marx não inventa o movimento operário, nem o movimento socialista, entretanto, se inscreve nesses movimentos não apenas como teórico, mas também como dirigente político que enfrenta as tarefas revolucionárias. Assim, tem um papel de destaque nas revoluções de 1848/49, principalmente na Alemanha, na função que realiza através do Jornal Gazeta Renana, das tarefas na Liga dos Comunistas e na I Internacional dos Trabalhadores. Em nenhum momento Marx descola a intervenção teórica da ação prática. No entanto, não põe a teoria a serviço da política, as concepções teóricas que desenvolve são autônomas em relação às necessidades imediatas da política.
O importante a destacar é que a concepção teórica de Marx se assenta em três pilares.
Primeiramente, no método dialético, concepção segundo a qual o ser social é processualidade autoestruturada e dinamizada por vetores críticos de suas contradições imanentes. A razão é parte desse movimento e o conhecimento teórico-social constitui a expressão racional de um processo real. Assim, Marx, nessa concepção, é um pensador de estirpe hegeliana. Marx apanha em Hegel exatamente a questão do movimento dialético a ser analisado no texto de 1843, onde mostra a inversão materialista realizada no pensamento hegeliano, com um redimensionamento categorial; sem o método dialético o pensamento marxiano é incompreensível.
Em segundo, na teoria do valor trabalho, apanha dos economistas clássicos Smith e Ricardo, como faz com o método dialético de Hegel, e submete-a a uma radical transformação, fundamentando, assim, a raiz marxiana da apreciação da ordem burguesa.
É preciso esclarecer que Marx não é um anticapitalista ou um revolucionário, mas considera a ordem burguesa injusta e desumana. Não expressa juízos de valores sobre essa sociedade, mas demonstra o seu elemento fundamental, que é o caráter explorador da ordem burguesa. É estruturado na teoria do valor trabalho que Marx extrai a teoria da mais valia.
O terceiro pilar de sustentação do pensamento marxiano é a perspectiva de revolução. Toda concepção teórica de Marx desaparece se dela for retirada a perspectiva de revolução, de transformação da sociedade. O viés histórico da perspectiva marxiana não se fundamenta na ideia de “processo histórico” como um devir necessário e obrigatório, porque essa concepção de historicidade existe, inclusive, no pensamento conservador, na tradição positivista de pensadores como Comte e Durkheim. Mas o movimento histórico percebido por Marx, tendo como limite a ordem burguesa, está na possibilidade de revolução. É, exatamente, a possibilidade de subversão da ordem burguesa a partir de dentro, como formulado no Manifesto Comunista: “A burguesia engendra seus próprios coveiros…”. É uma possibilidade inscrita no processo de desenvolvimento dessa ordem. Na verdade, a revolução não é apenas uma necessidade histórica, é uma necessidade do proletariado. Se considerarmos a revolução como uma possibilidade, sua realização histórica é a função da organização e da vontade política do proletariado.
Em seus escritos, Marx expõe com uma visão clara e até delimitada o que seja o sujeito revolucionário: o proletariado industrial urbano. Entretanto, hoje, não é mais possível pensar o sujeito revolucionário da mesma maneira que Marx; consistiria em um profundo erro de reflexão, pois seria não levar em conta todo o século XX, quando o desenvolvimento capitalista atingiu níveis inimagináveis no tempo de Marx.
Assim, a perspectiva de revolução permite a Marx um fundamento para pensar o caráter histórico da ordem burguesa. Este caráter histórico não é apenas um devir constante, é como uma precipitação no ritmo histórico, uma emersão revolucionária. É esta perspectiva que coloca o espaço e a possibilidade de uma nova ordem societária; sem esses elementos, o pensamento de Marx se descaracteriza completamente.
Logo, supor que o método dialético seja algo acidental, ou possivelmente complementado com uma filosofia crítica, afetaria em cheio a concepção marxiana de revolução. É esta a concepção de um dos revisionistas, o reformulador marxista, Bernstein, que escreveu no final do século XIX: “A dialética é uma armadilha hegeliana na qual Marx caiu, os seus seguidores não devem permanecer prisioneiros dessa concepção, limpemos o pensamento de Marx da dialética, enfim, vamos atualizá-lo”. A consequência imediata é que a ideia de revolução, já no final do século XIX, a partir dos revisionistas, passa a ser considerada não se enquadrando mais no tempo presente; isto porque no pensamento marxiano há precisamente vinculação teórica imanente entre a perspectiva dialética e a concepção revolucionária. Então, se for retirada do pensamento marxiano a questão relativa à teoria do valor, Marx passa a ser um pensador humanista da velha concepção que afirma o sistema capitalista ser injusto e opressor; por isso, deve-se lutar contra ele. Este é um argumento ético-moral e não teórico-político.
Os marxismos após Marx partem sempre de concepções que negam um desses pilares e como a construção teórica marxiana se estrutura a partir desses três pilares, negado um destes, todo o edifício cai. O marxista-revisionista Bernstein foi o primeiro a fazê-lo, mas ao longo do século XX as concepções marxianas foram de uma forma ou de outra negadas. Na Itália, pelo ex-marxista Colletti, que afirmou “com dialética não se faz ciência”. Os economistas da academia de um modo geral consideram que Marx teve percepções bastante claras da ordem burguesa do seu tempo – século XIX – especificamente quanto à teoria do valor trabalho, mas que está totalmente superado, porque não encontra apoio na realidade contemporânea. E outros ainda aceitam as concepções marxianas, mas sem a perspectiva de revolução, chegando a afirmar que têm um importante papel a desempenhar no mundo contemporâneo. Porém, sem revolução, a ideia de liquidar a ordem burguesa é negada completamente.
Em suma, é justo na perspectiva de revolução que se estrutura o pensamento político de Marx, uma vez que no desenvolvimento dos seus estudos, na realidade do seu tempo, identifica um sujeito revolucionário – o agente social real – que faz com que essa perspectiva não seja apenas um pressuposto, um axioma. Assim, Marx não constrói sua teoria supondo um sujeito revolucionário, mas o identifica na realidade concreta, no processo sócio-histórico real. Encontra esse sujeito em plena ação no Movimento Cartista, na Inglaterra, e no Movimento de 1848, na França – uma organização política operária –, em estágio embrionário e em desenvolvimento, para a qual oferece um aporte apreciável expresso, sobretudo, no Manifesto Comunista. É aí que está a contribuição do pensamento marxiano ao movimento político.
No entanto, é preciso deixar claro que o Movimento Operário não encampou as ideias marxianas. Quando se afirma que o pensamento marxiano é inconcebível sem o protagonismo operário do século XIX, não quer dizer que a teoria de Marx tenha sido incorporada pela classe operária, porque não foi o que aconteceu. A vinculação da teoria de Marx ao Movimento Operário é processo tardio, que se realiza após sua morte. Porém, é a classe operária o sujeito real, o suporte da reflexão marxiana. Entretanto, o pensamento de Marx não se esgota na reflexão política, vai muito além. É suficiente lembrar como Marx concebe a I Internacional, que consistiu em uma associação aberta ao conjunto de forças operárias, muitas das quais não eram revolucionárias, mas apenas reformistas.
Abordaremos ainda neste texto o processo de co-autoria e da tradição marxista, salientando que a reflexão a ser desenvolvida aqui envolve apenas as concepções de Marx, embora a contribuição de Engels ao desenvolvimento do pensamento marxiano seja fundamental. Por isso, acrescentamos que não se deve subestimar a sua contribuição, sem o apoio e a colaboração intelectual de Engels, provavelmente a produção intelectual de Marx não seria o legado tão amplo que se conhece hoje; basta ressaltar que os volumes II e III de O Capital têm Engels como co-autor. Além disso, no estado em que Marx deixou seus manuscritos, só alguém de altíssimo nível e que tivesse acompanhado todo o processo de construção e elaboração desse material poderia ser o organizador. Assim, os volumes II e III de O Capital só adquiriram forma através da reelaboração feita por Engels.
Engels sempre teve consciência de que não tinha a estatura intelectual de Marx, em suas cartas chega a se caracterizar como o “segundo violino”, enquanto o amigo era o primeiro e o titular. Em alguns momentos é preciso citar Engels, por seu papel importante na construção do pensamento marxiano. Esta mediação é visível na troca de correspondências entre os dois pensadores, onde ficam comprovadas as intervenções decisivas no próprio processo de elaboração das concepções de Marx. Assim, ao analisar os textos de Marx, onde estão expressas as questões metodológicas, é importante partir diretamente de suas obras, fazendo uma leitura de legitimidade e demonstração de como foi o caminhar na construção da compreensão da ordem burguesa. E mais, o pensamento marxiano não constrói uma obra acabada, daí a possibilidade de serem realizadas várias leituras, por isso, aqui propomos uma, com base estritamente nos textos de Marx.