Escutou o som do telefone sendo desligado. Precisou de alguns segundos para compreender o que tinha ouvido: agora não, ligue depois…; não havia tempo, tem que ouvir, escute, estou passando…, mas nada, não tinha sido escutada. Escureceu. Antes de precipitar-se num abismo sem fim, ouviu sons, barulho… O que será que está acontecendo? Sentiu que flutuava, caiu.
Passos se aproximaram; fez um esforço para falar, nenhum som saía da garganta. Tudo parecia silenciar. Queria gritar, não conseguia. Vozes confusas; alguém falou, veja se tem documentos. Será que coloquei o seguro saúde, os telefones dos filhos… as vezes esquecia. Dos filhos, dois moravam no exterior e o filho estava sempre muito ocupado com o trabalho e a família. Ah, tenho o número do médico. Será que trouxe? Traz sempre dentro da carteira um antigo laudo, de quando sofreu infarte, nele consta o número do médico e de hospitais para os quais deve ser levada. Alguém falou: melhor chamar a ambulância. Pede para vir logo, parece que está mal! De repente lembrou de um fato. Faz tanto tempo… acho que era o começo da década de sessenta… estamos noutro século, mais de cinquenta anos…fez uma viagem!
Migrara para São Paulo, onde tinha parentes, irmãos, primos…muita gente. Na casa da irmã que a acolheu, mais de dez pessoas, e agora ela. Ao todo doze pessoas para instalar naquela pequena casa de vila com três cômodos, uma sala, um quarto, e uma pequena cozinha, na periferia da cidade. Ficaram alojados na parte da frente, e atrás um grande corredor de quartos habitados por outras famílias, não menos de quatro pessoas em cada um. Nas habitações, como também na casa em que estava, apenas uma torneira lavava todos que ali moravam. Estava se organizando para trazê-la com as crianças, quando a notícia chegou. Mas como aconteceu? Ninguém sabe ao certo.
A irmã morava numa cidadezinha do interior, seu maior sonho era ir para a cidade grande, estudar, ser professora formada. Ensinara antes de casar, mas só cursara o primário. Ensinava as crianças a ler, escrever e somar. A mãe morreu, a irmã mais velha teve que assumir a casa, quatro meninos e a caçula. O pai arranjou outra e queria colocar dentro de casa, não aceitou. Meses depois abandonou-os. A vida ficou difícil e a cada dia o sonho de estudar ficava distante.
Conheceu o marido na festa do padroeiro. Rapaz afeiçoado, bem de vida, segundo diziam, herdara do pai umas terras. As moças do lugarejo diziam que era um bom partido. Todas disputavam a atenção, até as irmãs ficavam elogiando. O sonho dela era outro…ir para a cidade grande, arrumar emprego e estudar. Enquanto não arranjasse trabalho, ajudaria a prima que morava na cidade e trabalharia num atelier de costura. Sabia costurar, bordar e desenhar, e sonhava ser professora. Ele, interessado, passou a cortejá-la.
Ela, nos sábados, dia da feira, para ajudar em casa, trabalhava no armazém, o rapaz deu para aparecer e esperava até o final do dia, acompanhava-a até a casa e certo dia disse-lhe: quero casar com você, mas sei que é órfã e seu pai foi embora. Ela respondeu, vou conversar com minha irmã, na próxima semana dou a resposta. Ouviu um som de ambulância, colocaram na maca, oxigênio, medicação… parece infarto, ouviu comentarem.
Casou. Em menos de um ano, teve filhos, um casal de gêmeos. Parto difícil, sofreu por três dias: ah, graças a Deus conseguiu parir, um menino e uma menina. Depois vieram outros, praticamente a cada ano mais um…já eram cinco.
Estava exausta da vida, do trabalho… todas aquelas crianças para cuidar. O marido passava a semana no sítio e quando voltava trazia a feira da semana… produtos que eram cultivados lá… durante a semana tinha que ganhar alguns trocados, costurando à noite, e durante o dia consertava sapatos… aprendera esse ofício. Lembra que sempre tivera habilidades com as mãos, consertar, pintar, costurar… nas férias visitava o tio que morava numa cidade vizinha e era sapateiro. Além de consertos, fazia sapatos encomendados. Ela ficava admirada com a habilidade dele. Assim, ao invés de ir brincar com os primos, preferia ficar na pequena loja ajudando o tio e aprendendo o ofício. Era esse trabalho que ajudava a ganhar uns trocados e comprar as coisas fora comida para as crianças.
Era verão, fazia muito calor, mas há três dias chovia intensamente. As crianças já estavam sem ter o que vestir. Não dava para ir ao rio. Em casa mesmo lavou algumas peças e colocou no calor do fogão de carvão durante toda a manhã enquanto fazia a comida. À tarde, as crianças brincavam quando ela foi verificar se as roupas tinham enxugado. Estavam úmidas. Pensou: vou ter que terminar de enxugar no ferro. Encheu o ferro de carvão, enquanto esquentava forrou a mesa onde faziam as refeições. Era o lugar onde tinha um bico de luz. Apesar de ser cedo da tarde, estava escuro, muita chuva, parecia noite.
A chuva não parava, parecia que tudo tinha parado, só a água caía em cântaros. Colocou as crianças sentadas no chão da sala para brincar com as poucas coisas que tinham. Da mesa onde passava o ferro, via as crianças e prestava atenção ao que estavam fazendo. Escutou um estrondo, levantou os olhos e viu relâmpagos rasgando o céu e, em seguida, o grito da terra…o trovão que estremecia até o chão. Olhou para as crianças…assustadas. Estou aqui vendo vocês. Não se preocupem…
Colocou as roupas na cadeira, experimentou o ferro, molhou o dedo na língua e pôs embaixo… secou imediatamente. Pensou, tá quente. Pegou a primeira peça, era um vestido da filha… estirou na mesa e começou a enxugar… devagar para que ficassem secas. Acima dela, o bico de luz aceso clareava o espaço. Estava ficando escuro… pensou, daqui a pouco vou ter que acender o bico de luz da sala. Por enquanto, esse aqui em cima basta…passava a roupa e uma tristeza foi se apoderando da alma…tinha tantos sonhos…o primeiro era estudar para professora, gostava de ensinar… de repente uma imensa claridade… Nossa, esse foi forte! Vai ser um trovão grande…esperou…tudo escureceu, a lâmpada explodiu, o ferro foi arrancado de sua mão e ela atirada longe… não conseguiu se levantar…as crianças correram para ela – que gritou: Não se aproximem! Olhou para o mais velho e disse: chame a vizinha, depressa!!! Mãe, tá chovendo… vá logo, gritou. Ele abriu a porta com dificuldade, o ferrolho estava duro. Lembrou da mãe dizendo ao pai…precisa consertar essa porta, ou trocar o ferrolho. Vou fazer, dizia… Agora, não conseguia abrir, chamou a irmã. A mãe dizia, depressa, depressa… Consegui abrir. Correu à casa da vizinha, bateu, bateu…ninguém atendia. Olhou para as outras casas, todas fechadas. Lá adiante viu uma janela aberta. Correu até lá, e já chegou gritando: ajude, ajude, mãe tá caída no chão e pediu pra chamar.
Ela mandou que a criança entrasse: não posso, tenho que voltar, vamos…Ela virou-se para apanhar o guarda-chuva e deu de frente com o marido: tá chovendo muito, vai se molhar toda e ficar doente. Não sabe que tem uma saúde fraca? A criança gritava: vamos, vamos. Ela se virou pra criança e disse: agora não…deixa parar um pouco a chuva. Mas a criança continuava gritando: vamos, vamos… arrancou o guarda-chuva da mão do marido e saiu correndo…como estou velha, pensou, nem consigo ir mais ligeiro… O menino agarrado na mão dela puxava com força. Chegando na casa, se assustou, as crianças ao redor da mãe chorando e ela nem conseguia falar. Fez um sinal para as crianças se afastarem. Abaixou-se, mas mal conseguiu ouvir: cuide de minhas crianças…mande avisar minha irmã, e jure que vai dizer a minha irmã que ela precisa ficar com as crianças…não quero que fiquem com o pai. Ele vai levar para morar no sítio…quero que eles estudem…jure, jure… fez sinal para o filho, que se aproximou, se abaixou e ouviu a mãe dizer: cuide dos seus irmãos. Vá com a comadre que ela vai entregar vocês a sua tia. Vai ficar com ela. Não vá pro sítio com seu pai, disse. Olhou-a espantado sem saber o que dizer. Jure, jure…puxou-o para junto de si, abraçou e sussurrou: cuide dos seus irmãos enquanto a tia não chega…
Ouvia o barulho da sirene…de repente freia…ouve vozes…rápido, não há tempo a perder. Antes de entrar, abriu rapidamente os olhos e um céu azul safira…última imagem. Tentava lembrar os caminhos que as crianças tomaram…não conseguia. Lembrava uma festa…onde alguém dizia: escreva a história de minha avó… respondi: não estava lá. Vou pesquisar. E agora que ouvia só ruídos, alguém perguntou: chegou alguém da família? Ainda não!!! Não conseguimos falar com o filho, o telefone avisa: deixe recado… Lembrou…agora não… depois…uma voz autoritária avisa: levar direto para a sala, vamos tentar salvá-la!!! Antes de perder a consciência, perguntou a si mesma: Para quê??? O mundo não mais me interessa… o último som da voz do filho: agora não…depois…!