um esclarecimento dialético! 1
“Na sociedade industrial, o amor é faturado…”
“Todo prazer é social…”
“A compaixão é suspeita…”
“Fé, religião e fanatismo é a perdição do humano…”
A compaixão tem um aspecto que não se coaduna com a justiça e ela confirma a regra da desumanidade através da exceção que ela pratica… Ao reservar ao próximo a tarefa de superar a injustiça, a compaixão acata a lei da alienação universal, que ela quer abrandar, como algo inalterável…
O compassivo defende como indivíduo a pretensão do universal – a saber, de viver – contra o universal, contra a natureza e a sociedade que a recusam.
Mas a unidade com o universal, entendida como interdoridade, que o indivíduo pratica, revela-se como falaciosa em sua própria fraqueza.
Não é a moleza, mas o aspecto limitador da compaixão, que a torna questionável, ela é sempre insuficiente…
As deformações narcísicas da compaixão, como os sentimentos sublimes do filantropo e a arrogância moral do assistente social, são a confirmação interiorizada da diferença entre ricos e pobres.
Os fascistas que dominaram o mundo, traduziram o horror pela compaixão no horror pela indulgência política e no recurso à lei marcial, no que se uniram à filosofia metafísica da compaixão, que considerava a esperança de instituir a humanidade como a loucura temerária daqueles cuja única esperança é a infelicidade.
Os inimigos da compaixão não queriam identificar o homem com a infelicidade, cuja existência era, para eles, uma vergonha. Sua delicada impotência não tolerava que o homem fosse objeto de lamentações…
Desesperada, a compaixão se converteu no louvor da potência que, no entanto, renegavam na prática sempre que se oferecia a eles; a bondade e a beneficência tornam-se pecados, a dominação e a opressão virtude. Todas as coisas foram outrora coisas ruins; todo pecado original transformou-se numa virtude original.”
Proceder consciente à transvalorização é, uma vez destruídas todas as ideologias, adotar como moral aquilo que a cristandade considerava execrável na ideologia, mas nem sempre prática…
Tudo se passa sem ilusões… Até mesmo a injustiça, o ódio e a destruição tornam-se atividade maquinal depois que, devido à formalização da razão, todos os objetivos perderam, como numa miragem, o caráter da necessidade e objetividade.
A magia transfere-se para o mero fazer,
para o meio, em suma para a indústria.
A formalização da razão é a mera expressão.
O meio é fetichizado: ele absorve o prazer.
Assim como o esclarecimento transformava teoricamente em ilusões os objetivos com que se adorna a antiga dominação, assim também ele os priva, com a possibilidade de abundância de seu fundamento prático. A dominação sobrevive como fim em si mesmo, sob a forma de poder econômico.
O gozo já parece algo de antiquado, irrealista, como a metafísica que o proibia:
“O que importa é nos enriquecer, e nós nos tornarmos gravemente culpados se não atingirmos essa meta; só quando estamos bem adiantados no caminho da riqueza podemos nos permitir colcolher os prazeres: até aí, é preciso esquecê-los”.
Mesmo utilizando a razão ainda se conserva uma superstição, que é uma ingenuidade do sacrilégio, é preciso tirar dele o prazer.
Todo gozo, porém, deixa transparecer uma idolatria: ele é o abandono de si mesmo a uma outra coisa.
A natureza não conhece propriamente o gozo: ela não o prolonga além do que é preciso para a satisfação da necessidade. Todo prazer é social, quer nas emoções não sublimadas quer nas sublimadas, e tem origem na alienação. Mesmo quando o gozo ignora a proibição que transgrida, ele tem sempre por origem a civilização, a ordem fixa, a partir da qual aquela o protege.
Os homens só sentem a magia do gozo quando o sonho, liberando-os da compulsão ao trabalho, da ligação do indivíduo a uma determinada função social e finalmente a um eu, leva-os de volta a um passado pré-histórico sem dominação e sem disciplina.
É nas nostalgias dos indivíduos presos na civilização, o “desespero objetivo” daqueles que tiveram que se tornar elementos da ordem social, que alimenta o amor pelos deuses e demónios; era para estes, enquanto natureza transfigurada, que eles se voltavam na adoração.
O pensamento tem origem no processo de liberação dessa natureza terrível, que acabou por ser inteiramente dominada.
O gozo é, por assim dizer, sua vingança. Neles os homens se livram do pensamento, escapa à civilização.
Nas sociedades mais antigas, os festivais possibilitavam o retorno à natureza como um retorno em comum. As orgias primitivas são a origem coletiva do gozo.
“Esse intervalo de universal confusão que constitui a festa e aparece assim como o espaço de tempo em que a ordem do tempo está em suspenso.
Eis porque todos os excessos são permitidos. O que importa é agir contra as regras. Tudo deve ser feito ao contrário.
Na época mítica, o curso do tempo estava invertido: nascia-se velho, morria-se criança…
Assim, todas as prescrições que protegem a boa ordenação natural e social são sistematicamente violadas. As pessoas se abandonam às potências transfiguradas da origem; mas, do ponto de vista da suspensão da proibição, esse modo de agir tem o caráter de excesso e do desvario.”
É só com o progresso da civilização e do esclarecimento que o eu fortalecido e a dominação consolidada transformam o festival em simples farsa.
Os dominadores apresentam o gozo como algo racional, como tributo à natureza não inteiramente domada; ao mesmo tempo procuram torna-lo inócuo para seu uso e conservá-lo na cultura superior; e finalmente, na impossibilidade de eliminá-lo totalmente, tentam domá-lo para os dominados.
O gozo torna-se objeto de manipulação até desaparecer inteiramente nos divertimentos organizados.
O processo se desenvolve do festival primitivo até as férias. “Quanto mais se acentua a complexidade do organismo social, menos ela tolera a interrupção do curso ordinário da vida.
É preciso que tudo continue hoje como ontem e amanhã como hoje. A efervescência geral não é mais possível. O período de turbulência individualizou-se.
As férias sucedem a fefesta.
No regime fascista, elas são complementadas pela falsa euforia coletiva produzida pelo rádio, pelos slogans e pela benzedrina (escrito 1947…e hoje?).
Todo gozo tem um caráter mítico, diz o filósofo.
Abandonando-se à natureza, o gozo abdica do que seria possível, assim como a compaixão renuncia à mudança do todo. Ambos contêm elementos de resignação. Isso é detectado em todos os cantos, como o gozo de si mesmo na solidão, como o prazer masoquista nas depressões do autotorturador.
“Contra todos os que se contentam em gozar!”
O amor abnegado e recusado, o amor burguês que, enquanto resistência à inteligência, é característico do século dezenove. No amor o gozo estava associado à divinização da pessoa que o concedia, ele era a paixão propriamente humana. Mas acaba por ser revogado como um juízo de valor condicionado pelo sexo.
Na adoração exaltada do amante, assim como na admiração irrestrita que lhe devia a amada o que se repetia sempre era a transfigura da efetiva servidão da mulher. Com base no reconhecimento dessa servidão, os sexos se voltavam sempre a se reconciliar: a mulher parecia assumir livremente a derrota, o homem a conceder-lhe a vitória.
O cristianismo transfigurou no casamento, como união dos corações, a hierarquia dos sexos e o jugo imposto ao caráter feminino pela ordenação masculina da propriedade, aplacando assim a lembrança de um passado mais feliz desfrutado pelo sexo feminino na era pré-patriarcal.
Na sociedade industrial, o amor é faturado.
A ruína da propriedade média e o desaparecimento do sujeito econômico livre afetam a família: ela não é mais a célula da sociedade, outrora celebrada, já que não constitui mais a base da vida econômica do burguês. Os adolescentes não têm mais a família como horizonte e a autonomia do pai desaparece com ela a resistência a sua autoridade. Antes, a servidão na casa paterna acendia na moça a paixão que parecia levar à liberdade, ainda que ele não se realizasse nem no casamento nem em nenhum outro lugar.
Mas, ao mesmo tempo que se abre para a moça a possibilidade do emprego, fecham-se para elas as perspectivas do amor.
Quanto mais o universalmente o sistema industrial moderno exige de cada um que se deixe assalariar, mais se acentua a tendência a transformar os que não foram engolfados neste mar do zé povinho branco (a ralé), em que converteu o trabalho e o desemprego não-qualificados, no pequeno especialista, obrigado a cuidar da sua própria vida.
Sob a forma do trabalho qualificado, a autonomia do empresário – que já pertence ao passado – torna-se característica de todos os que são admitidos no processo de produção e assim também da mulher “profissional”.
O respeito próprio das pessoas cresce proporcionalmente a sua fungibilidade. A oposição à família não é mais uma audácia, do mesmo modo que o namoro com o rapaz tampouco é o paraíso na terra. As pessoas assumem em faces as outras, aquela relação racional, calculadora, que há muito fora proclamada como uma antiga sabedoria no círculo esclarecido do cotidiano. O espírito e o corpo são separados na realidade, como haviam exigido aqueles libertinos, que não passavam de burgueses indiscretos.
De novo, parece…que uma é coisa muito diferente amar e gozar…
Pois os sentimentos de ternura correspondem às relações de humor e de conveniências, mas não se devem de modo algum à beleza de um colo ou ao bonito torneado dos quadris; e esses objetos que, segundo o gosto de cada um, podem excitar vivamente as afecções físicas, não têm, porém, parece o mesmo direito às afecções morais.
Veja-se, uma mulher feia tem quarenta anos, sua pessoa não tem a menor graça, não tem um só traço regular, um único atrativo: mas ela mesma tem espírito, um caráter delicioso, um milhão de coisas que se encadeiam como os sentimento do outro e seus gostos; este não tem nenhum desejo de se deitar com essa mulher, – Mas nem por isso ele a amará menos loucamente; desejará fortemente aquela outra, mas ele a destetará cordialmente tão logo a febre do desejo houver passado…”.
A consequência inevitável, implicitamente colocada com a divisão cartesiana do homem na substância pensante e na substância externa, é proferida com toda clareza como a destruição do amor romântico. Este é considerado como um disfarce, racionalização do instinto físico, “uma falsa e perigosa metafísica…”.
Apesar de toda libertinagem, é atribuída à sexualidade em oposição à ternura, ao amor terreno em oposição ao celestial, não apenas um poder um pouquinho inócuo.
A beleza do colo e o torneado dos quadris agem sobre a sexualidade não como fatos a-históricos, puramente naturais, mas como imagens que encerram toda a experiência social.
Nesta experiência está viva a intenção de algo diverso da natureza, o amor não limitado ao sexo. Mas a ternura, até mesmo a mais incorpórea, à sexualidade metamorfoseada.
A mão acariciando os cabelos e o beijo na fronte, que exprimem o desvario do amor espiritual, são formas apaziguadas de golpes e mordidas que acompanham o ato sexual selvagem.
A separação é abstrata.
A metafísica falsifica os fatos, ela impede que se veja a pessoa amada como ela é, ela nasce da magia, ela é um véu.
O próprio amor é um conceito não-científico, as definições erróneas nos induzem sempre em erro. O que é verdadeiro é o discernimento da dissociação do amor, obra do progresso.
Através dessa dissociação, que mecaniza o prazer e distorce o anseio em trapaça, o amor é atacado em seu núcleo.
Quando a burguesia faz do louvor da sexualidade genital e perversa uma crítica não-natural, do imaterial, do ilusório, a libertinagem já passou, ela própria para o lado dessa normalidade que deprecia não somente o arrebatamento utópico do amor, mas também o gozo físico, não somente a felicidade mais celestial, mas também a mais terrena.
O devasso sem ilusões que se defende transforma-se, graças à pedagogia sexual, à psicanálise e a terapêutica hormonal, no homem prático e aberto que estende à vida sexual sua fé nos desportos e na higiene.
A crítica é dividida com o próprio esclarecimento.
Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos. É na violência, por mais que ela se esconda sob os véus da legalidade, que repousa afinal a hierarquia social.
A dominação da natureza se reproduz no interior da humanidade.
A família – cuja coesão é assegurada não pelo amor romântico entre os sexos, mas pelo amor materno, que constitui a base de toda ternura e dos sentimentos sociais, entra em conflito com a própria sociedade, porque se é extremamente nocivo permitir que as crianças absorvam em sua família interesses que divergem muitas vezes profundamente dos da pátria, é por isso mesmo extremamente vantajoso separá-las dela.
Os laços maternos devem ser destruídos por razões sociais, o conhecimento dos pais deve ser absolutamente interditado aos filhos, eles não “unicamente as crianças da pátria”, e a anarquia, o individualismo proclamado contra as leis, desemboca no domínio absoluto do universal, a república.
Do mesmo modo que o Deus derrubado ressurge em um ídolo mais duro, assim também o velho Estado-forte burguês ressurge na violência da coletividade fascista.
Se a burguesia enviou os líderes da revolução à guilhotina, ela também baniu o mais franco escritor – Sade – para o inferno da prisão. Pois as crônicas escandalosas que escreveu que, produzida em série, prefigurou no estilo do século dezoito o boletim no século dezanove e a literatura de massas do século vinte, é a epopeia homérica liberada do último invólucro mitológico:
a história do pensamento como órgão de dominação.
Assustado com a própria imagem refletida no espelho, o pensamento abre a perspectiva para o que está situado além dele. Não é o ideal de uma sociedade harmoniosa, a dealbar no futuro: “guardem suas fronteiras e fiquem em casa”, diz o filósofo e nem mesmo a utopia socialista desenvolvida na história, mas é, sim, o fato de não deixar a cargos dos adversários – reacionários -, a tarefa de levar o esclarecimento a se horrorizar consigo mesmo, que faz de sua obra uma alavanca para salvar o esclarecimento.
Ao contrário de seus apologetas, os escritores sombrios da burguesia não tentaram distorcer as consequências do esclarecimento recorrendo a doutrinas harmonizadoras.
Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação mais intima com a moral do que com a imoralidade.
Enquanto os escritores luminosos protegiam pela negação a união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação, aqueles proferiram brutalmente a verdade chocante, afirmavam:
“… É nas mãos sujas pelo assassinato das esposas e dos filhos, pela sodomia, pelos homicídios, pelabprostituição e pelas infâmias que o céu coloca essas riquezas; e para recompensar por essas abominações, ele as põe à disposição”.
Pode ser exagero. A justiça da má dominação não é consequente a ponto de recompensar apenas as atrocidades.
Mas só o exagero é verdadeiro.
A essência da pré-história é o aparecimento do horror supremo no detalhe.
Por trás do cômputo estatístico das vívítimas dos progrom, que inclui os fuzilados por misericórdia, oculta-se a essência que somente vem à luz na descrição exata da exceção, ou seja, a mais terrível tortura.
Uma vida feliz num mundo de horror é refutada como algo infame pela mera existência desse mundo.
Este torna-se a essência, aquele algo nulo.
Certamente o assassinato dos próprios filhos e esposas, a prostituição e a sodomia, são muito mais raros entre os governantes durante a era burguesa do que dos governados, que adotaram os costumes dos senhores de épocas anteriores. Em compensação quando estava em jogo o poder, estes ergueram montanhas de cadáveres mesmo nos séculos mais recentes. Compara à mentalidade aos atos dos senhores no fascismo, onde a dominação realizou sua essência, a descrição entusiasta da vida, cai ao nível de uma barbaridade inofensiva.
Os vícios privados são a historiografia antecipada das virtudes públicas da era totalitária. O fato de não ter encoberto, mas bradado ao mundo inteiro a impossibilidade de apresentar um argumento de princípio contra o assassinato, ateou o ódio com que os progressistas ainda hoje perseguem os escritores que denunciaram essa realidade.
Diferentemente do positivismo lógico, ambos tomaram a ciência ao pé-da-letra. O fato de que insistem na razão de uma maneira ainda mais decidida do que no positivismo tem o sentido secreto de liberar de seu invólucro a utopia contida, como no conceito de razão, em toda grande filosofia: a utopia de uma humanidade que, não sendo mais desfigurada, não precisa mais desfigurar o que quer que seja.
Proclamando a identidade da dominação e da razão, as doutrinas sem compaixão são mais misericordiosas do que as doutrinas dos lacaios morais da burguesia.
No período em que os fascistas, que dominaram o mundo, traduziram o horror pela compaixão no horror pela indulgência política e o recurso à lei marcial, Daí porque, indagou o filósofo:
“Onde estão os piores perigos para o humano?”
Ele mesmo respondeu:
“Na compaixão”.
E ao negar a compaixão, salvou a confiança inabalável no homem – humano – traída cada vez mais que se faz uma afirmação consoladora.
Este é o perigo que ronda o humano! 2
1 ADORNO & HORKHEINER – Dialética do Esclarecimento – RJ – SAZHAR.
2 Organizado a partir de fragmentos da obra Dialética do Esclarecimento – Adorno & Horkheimer, por Ivanilde Morais de Gusmão nos estudos para o Grupo de Ativismo Literário, coordenado por Jaqueline Ferreira. 2024.