Reflexões, Decisões e Caminhos – Uma Jornada de Vida e Escrita
Sentada diante da tela do meu computador procuro as palavras para falar de tua ausência e dizer da minha dor e da minha decisão. Há tempos queria te escrever, somente agora percebi que o momento havia chegado. Ao meu lado, uma foto tua esmaecida pelo tempo. O olhar é profundo e distante, atravessa o universo e retorna a mim com muita ternura. Diferentemente de ti que partiste jovem, muito jovem, o meu caminho foi longo. Com os recentes acontecimentos tive necessidade de expor meus 93 sentimentos e tomar essa decisão. Conclui que a vida perdeu o significado, a importância e, antes do silêncio da memória que se aproxima, preciso dizer-te como foi a minha caminhada, o que resultou, o que plantei, o que colhi. Pergunto-me, tudo isso serviu para quê? Olho a janela e sinto que me é indiferente se o mundo continua ou não a existir. Cheguei à conclusão de que a vida não mais tem significado, porque tudo decorre agora em função das aparências e isso já não me interessa. Sinto-me só, mesmo arrodeada de pessoas, mas nada significam.
A família, dissolvida em um mundo tumultuado, presa ao cotidiano num redemoinho sem significado, nada percebe. Um vulcão em ebulição tem origem em meu pensamento, então começo a pensar…, pensar é a grande atividade que me faz sobreviver. Nunca tive sonhos, apenas perspectivas, por isso caminhava, lutando com as adversidades. Avisaste que não seria fácil. Agora me pergunto, como cheguei até aqui? Como? Tenho medo de lembrar, a orfandade, o abandono… as noites escuras e o silêncio…, mais ainda, dos ruídos, da réstia da lamparina se aproximando… Fechava os olhos apertados, toda encolhida na cama molhada…, até quase moça feita, vez por outra acontecia isso.
Foi um caminho longo, difícil e árduo que percorri para chegar aqui e compreender que tudo se torna vazio e sem sentido…, mas agora não preciso mais pensar, nem me aborrecer, apenas fechar o computador e não mais escrever sobre os homens, a humanidade. Doar de uma única vez todos os meus livros. Os filmes, tantos… todos de arte! A coleção de discos de vinil e os CDs de Piazzolla, Maria Callas, Chopin, Bach, Ravel, e tantos, tantos outros… Ah, o preferido, Vivaldi! Perdi o interesse por todas as coisas da vida quando soube o que estava acontecendo. Não quis mais receber jornal, muito menos notícias do mundo. Não me interesso mais por nada. O mundo, não me caibo nele e cansei do seu barulho. Não encontro silêncio em lugar algum, nem mesmo dentro de mim! Quero e preciso ficar só com o meu esvaziamento, em busca do silêncio absoluto para chegar a ti! Decidido que nada mais tem importância, posso diminuir a caminhada e partir o mais breve possível, em silêncio… para te encontrar.
Preciso tomar algumas providências.
Apanhar a velha caixinha de música – nunca mostrei a ninguém. Era tua, Mãe. Lembras? Entregaste a minha irmã dizendo: quando partires, deixas com ela. Dissestes isso olhando para mim. A lembrança que tenho de ti é que estavas sempre deitada naquela cama imensa. Havia sempre um sorriso nos teus lábios e um brilho em teus olhos que nos atravessava, alcançando nossa alma. Todas as tardes, nós, os teus filhos, ficávamos ao redor da cama para contar as peripécias do dia. Tinha apenas seis anos, minha história era a última. Chamava-me para ti, abraçavas-me, alisavas os meus poucos cabelos e dizias, cuida-te, terás uma grande caminhada, mas sempre estarei por perto. Não compreendia o que dizias. Olhava-te Mãe, teus longos cabelos vermelhos e cacheados, os olhos, duas esmeraldas que brilhavam e sorriam… Como te amava!
Durante todo esse tempo, carreguei a dor de quando partiste, deixando-me só, abandonada… Ainda lembro: Foi num final de tarde, a casa encheu-se de gente estranha e não me deixaram entrar no quarto. Levaram-me, quando voltei, a cama estava vazia. Minha irmã tomou-me nos braços e disse, mostrando tu com os olhos fechados coberta de flores: ela está dormindo…, quis deitar-me junto, mas fui impedida. Gritei, gritei. Depois de certo tempo silenciei. Aquietei-me num canto. Ninguém me via. Senti sono, deitei-me debaixo do caixão e adormeci.
Não sei quanto tempo fiquei assim. Vi o clarão do dia entrar pela fresta da porta e lembrei que me disseste que tinhas atravessado uma noite inteira de luta, de dor para trazer-me ao mundo com os primeiros raios de sol. Senti o cheiro de café. Alguém começou uma reza, depois disse: precisamos ir, já está na hora. Minha irmã me levantou e, com minha mão presa a dela, acompanhamos o cortejo que, entre silêncio e soluços, atravessou a pequena vila. Antes de desceres ao teu leito final, todos os filhos se reuniram ao redor e te olharam… para dizer-te adeus!
Hoje, tranquila com a decisão e ansiosa para a partida, resgato essas lembranças. Ao meu lado está a caixinha de música que há muito não toca, recebi de minha irmã antes de ela partir. Não tem mais música, apenas algo que guardei a um certo tempo. Abro-a, verifico com espanto que tem um fundo falso, nele, um pequeno papel amarelado: Espero-te! Que alegria! Mãe, preciso te explicar a minha decisão. Simplesmente conclui que nessa idade as coisas pouco nos interessam. Exige-se que sejamos alegres com a beleza do mundo, das coisas, dos gestos nem sempre espontâneos e que é preciso nos sentirmos vivos. Mas quando se percebe que o caminho em frente é do esquecimento e que as coisas ao redor se derretem e estão perdendo o significado, porque estão se afastando como nuvens errantes num universo que se paralisa… sente-se a necessidade urgente de partir. Estou muito feliz com a minha decisão e sei que aprovas. Apenas uma coisa me perturba e não sei com tratar, quando nos encontrarmos, terei a imagem de mãe e tu de filha. Como será que lidaremos com isso? Não importa. O que importa mesmo é estarmos juntas. Te falarei das coisas, dos livros que li e escrevi.
Sabias que meu primeiro livro foi dedicado a ti, na epígrafe escrevi: “À minha mãe, que morreu aos 38 anos, rodeada pelos filhos, despedindo-se de cada um com carinho e dignidade, nos deixando como legado o espírito de coragem para lutar pela vida e pela liberdade, sem jamais deixar de acreditar na humanidade”. Estavas sempre ao meu lado. Sorrias para mim quando tentava ler para ti, soletrando, as palavras que tinha aprendido. Não se apresse, dizias. Eras uma grande incentivadora dos estudos. Sempre a exigir dos filhos que estudassem. Mas fui a única que teve a oportunidade de escolher esse caminho, trilhando todas as etapas. O mais importante e significativo foi quando, de repente, percebi que podia escrever; não apenas relatórios, provas para os alunos.
Sabias que escolhi ser professora? Quando tive que me aposentar, cumprindo as exigências, pensei, Mãe, agora posso realizar meu projeto: escrever. Já estava com setenta anos quando iniciei essa caminhada. Nesse instante que te escrevo, lembro de algo que me dissestes: “Presta atenção filha, tua vida vai ser longa e terás muitos desencantos, mas chegará o momento que desabrocharás e a escrita será tua realização e ela caminhará pelo mundo”. Agora que essas recordações me vêm à tona, lembro que esses últimos anos têm sido de realizações e a maior alegria é ver minha escrita viajando pelo mundo, levando o sentimento de humanidade. Até então, a vida sempre se apresentara como um grande desencanto, mesmo tendo procurado algo para além do viver, buscando no cotidiano um lenitivo para superar a dor de órfã e de estar num mundo desalmado, onde a clareza e a dureza desse universo de ruínas, de sonhos mortos e de naufrágios me levam a um caminho sem volta… do esquecimento; por isso preciso do teu aconchego.
É chegado o momento.
Espera-me!
Amanhã, nos primeiros raios de sol, como quando cheguei, partirei, e, quando encontrarem esta carta, Mãe, estaremos juntas infinitamente… Beijos afetuosos de tua filha.
Recife, dezembro de 2018.