A consciência é considerada um produto tardio na fantástica viagem do homem da animalidade ao ser social, mas tem uma grande importância nesse processo histórico porque é, desde o início, um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. É, antes de qualquer coisa, consciência do meio sensível mais próximo, ou seja, de sua realidade concreta imediata; e consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo que se torna consciente. Ela é entendida como um pro- duto tardio do processo de humanização, porém é seu aspecto mais importante; porque, é ao mesmo tempo consciência da natureza que, a princípio, aparece aos homens como um poder completamente estranho, onipotente, inexpugnável que o domina, mas que, gradativa- mente, no processo histórico de construção da humanidade do homem cujo poder vai sendo cada vez mais reconhecido e dominado.
Porém, esta relação determinada com a natureza é condicionada pela forma de organização da sociedade e vice-versa. É por isso que a identidade entre o homem e a natureza aparece de modo a indicar que a relação limitada entre os mesmos condiciona a relação limitada dos homens entre si, e, por conseguinte, a relação limitada dos homens entre si condiciona a relação dos homens com a natureza, exatamente porque a natureza, num primeiro momento da processualidade do homem, ainda está pouco modificada pela história, ou seja, pela ação do homem sobre ela.
A consciência da necessidade de estabelecer relações com os indivíduos que a circundam é o começo da consciência de que o homem vive em sociedade. Trata-se, na realidade de simples consciência gregária, porque o homem é por natureza um ser que vive em bando, em grupo e só existe homem, humano, em sociedade.
Porém, ao longo do processo histórico, esta consciência animal ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se ulteriormente em razão do crescimento da produtividade, do aumento das necessidades e da população. É exatamente o aumento da população que gera o aumento da produtividade e o aumento das necessidades e, nesse pro- cesso, o homem vai construindo e aperfeiçoando o seu mundo; mas, essa processualidade histórica só pode ocorrer após atendimento das carências primárias. Os homens desenvolvem a consciência no interior do desenvolvimento histórico real, quer dizer, a sua consciência vai sendo gerada no seu processo histórico.
E, com o crescimento da população, aumento da produtividade e aumento das necessidades (…) desenvolve-se a divisão do trabalho que, originalmente, nada mais era do que a divisão do trabalho no ato sexual e, mais tarde, divisão do trabalho que se desenvolve por si própria “naturalmente”, em virtude de disposições naturais (vigor físico, por exemplo), necessidades, acasos, etc… Porém, a divisão do trabalho torna-se realmente divisão, apenas, a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. Esse processo é exemplificado no caso do surgimento dos “sacerdotes”,“primeira forma de ideólogos”, materializando essa divisão”.
É a partir desse momento que a consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da praxis existente, representar realmente algo sem representar algo real. Assim é que, desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, etc., “puras”, sem vinculação com a realidade, podendo ser utilizada como forma de manipulação ideológica. Entretanto, ainda que a teoria, a teologia, a filosofia, a moral, etc., entrem em contradição com as relações existentes, isso só pode acontecer porque “as relações sociais existentes se encontram em contradição com as forças de produção existentes” (Marx). Porém, é inteiramente indiferente o que a consciência sozinha empreenda isto porque, sendo a consciência uma determinação social, ela não pode “empreender nada sozinha”.
Daí, a afirmação de que esses três momentos – a força de produção, o estado social e a consciência – podem e devem entrar em contradição entre si porque, com a divisão do trabalho, fica dada a possibilidade, mais ainda, a realidade de que a atividade espiritual e a material, ou seja, (a atividade e o pensamento, isto é, atividade sem pensamento e pensamento sem atividade) – a fruição e o trabalho, a produção e o consumo – caibam a indivíduos diferentes. E que a possibilidade de não entrarem esses elementos em contradição reside unicamente no fato de que a divisão do trabalho seja nova- mente superada e com ela todas as consequências geradas a partir daí: Estado, poder, dentre outras.
Com a divisão do trabalho, na qual todas estas contradições estão dadas e que repousa, por sua vez, na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas umas às outras; dá-se, ao mesmo tempo “a distribuição, e, com efeito, a distribuição desigual, tanto de forma quantitativa como qualitativamente do trabalho e dos seus produtos; quer dizer, a propriedade, que já tem seu núcleo, sua primeira forma na família onde a mulher e os filhos são propriedade do marido. Assim, essa relação na família, embora ainda tosca e latente, é a primeira forma de propriedade, o que aqui, aliás, já corresponde perfeitamente à definição dos economistas modernos, segundo a qual, a propriedade é o poder de dispor da força de trabalho de outros (grifo nosso). É por isso que a divisão do trabalho e a propriedade privada são expressões idênticas. Sendo que a divisão do trabalho manifesta, em relação à atividade, aquilo que se expressa na propriedade privada ao produ- to da atividade. Isto é, a primeira enuncia em relação à atividade, aquilo que a segunda enuncia com relação ao produto da atividade.
Não verdade, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imagina- dos e representados para, a partir de então, chegar aos homens de carne e osso, mas, contraditoriamente, parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. É por isso que as formações nebulosas no cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. Logo, a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia (no caso também a política), assim como as formas de consciência que a elas correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. Isto porque estas formas “não têm história, nem desenvolvimento” autonomamente, uma vez que os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar.
Assim é que não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No caso de se considerar que a consciência determina a vida, parte-se da consciência como se fosse do próprio indivíduo vivo; mas, deve-se partir da afirmativa de que é a vida que determina a consciência, porque é a que corres- ponde à vida real; parte-se dos próprios indivíduos reais e vivos, e se considera a consciência unicamente como sua consciência. Ou seja: unicamente como a consciência destes indivíduos que têm uma atividade prática. Parte-se de pressupostos reais que são os homens, não em qualquer fixação ou isolamento fantástico, mas em seu pro- cesso de desenvolvimento real, em condições determinadas, empiricamente visíveis, constatáveis.
Assim, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas. Passa a ser, então, os homens reais produzindo e reproduzindo seu mundo, sua história. Isto porque onde termina a especulação, na vida real, começa também a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens, na medida em que: “conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história” (Marx). História que pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis, pois, enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente.
A história não é um ente, não é uma coisa, não é uma existência. A história não existe enquanto uma coisa que é ela mesma; logo, o homem não atua na história. A história, na realidade, nada mais é do que o percurso das modificações das categorias fundamentais do homem. É o percurso das mudanças das formas de ser do homem. Portanto, o homem não está na história, o homem, enquanto individualidade, é o momento das modificações das categorias que se processualizam.
É por isso que a história não é um rio, a não ser como metáfora, mas ela é o andamento das modificações categoriais de um ser, o ser social que vai desenvolvendo historicamente a sua consciência.
(Revista Novo Horizonte nº 20)