A FANTÁSTICA CAMINHADA DO HOMEM
Uma Reflexão Teórico-Metodológica
Capítulo 1
CONSTRUÇÃO E APREENSÃO DO SER SOCIAL
Antes de começar a refletir sobre o processo de construção do homem enquanto ser social é preciso analisar como é que se dão as condições para que se conheça esse ser social. É preciso entender, inicialmente, a própria moral do ser social na sociedade capitalista, na ordem burguesa, para depois procurar ver se é possível e se existe uma especificidade deste ser. E, mais exatamente, como é que ele pode ser apreendido.
Ao se contemplar, ainda que de maneira esquemática, o universo geral em que os homens se inserem, percebe-se que o ente, o ser, aquilo que existe, não é indiferenciável. Doravante tratar-se-á do ser social. Assim, tudo que existe pode, de maneira muito esquemática, ser agrupado de acordo com três níveis, a saber: no primeiro nível se agrupa o ser inorgânico, como por exemplo os minerais. Mas, o ser não se esgota no inorgânico. Tem-se a partir daí um segundo nível, o do ser orgânico, a exemplo dos vegetais e animais. Porém, tem-se um outro tipo de ser, que se agrupa num terceiro nível, o ser social que, não se reduz ao ser inorgânico nem ao ser orgânico, mas, tem aí o seu ponto de partida. Então, pode-se pensar, universalmente, que o todo existente é constituído dos níveis: inorgânico, orgânico e social.
Observam-se, de imediato, duas características fundamentais para o entendimento desse processo, considerando que a distinção de níveis no ser como um todo não deve ser encarada como uma elisão, mas, ao contrário, como um complemento: primeiro, a sua unidade, porque este ser é um ser unitário. O ponto de partida para o que se propõe é: pensar cada indivíduo. Evidentemente que salta à vista que os seres são orgânicos, pois o homem é uma espécie de animal, embora frequentemente se esqueça de sua condição orgânica. Mas, enquanto ser orgânico, este ser se produz e reproduz num constante metabolismo com o ser inorgânico. Isto porque a existência do ser social, enquanto ser orgânico, só está garantida se ele se encontra em constante metabolismo com os seres inorgânicos. Daí a necessidade de pensar a relação entre a sociedade e a natureza.
O ser social, enquanto ser orgânico, desenvolve, necessariamente, um metabolismo com os seres inorgânicos. Vejamos, por exemplo, o que aconteceria se fosse cortado, de repente, o suprimento de sais minerais ao organismo do ser social, o seu metabolismo entraria em colapso, não num curto prazo, mas a prazo curtíssimo e ele morreria. Além do fato de que há seres que transitam de um nível a outro. Pensemos, agora, na moderna pesquisa biológica, a exemplo do caso do petróleo, que hoje é tido como um mineral, embora geneticamente tenha sido comprovado que sua gênese é o resultado de um processo histórico de fossilização orgânica. É o que todas as pesquisas indicam.
Então, a primeira observação a ser feita é que os níveis nos quais se divide o ser não têm necessariamente existência autônoma, uma vez que estão imbricados numa constante interação, num constante metabolismo. Esta primeira observação remete, portanto, à unidade do ser. Logo, o ser é uno, mas ele tem diferenciações, pois unidade não quer dizer identidade. A unidade se constrói sobre a desidentidade, porque a unidade é a unidade de diferenças. O ser é único mas tem níveis de diferenciação e a questão crucial é distinguir um nível do outro.
A distinção está, e esta é a segunda observação, no grau de complexidade dos níveis do ser. Todos os níveis são complexos, no entanto, o grau de complexidade é diferente de um nível para o outro, porque o ser social é muito mais complexo do que o ser inorgânico e é também mais complexo do que o ser orgânico. Portanto, é preciso destacar que a diferenciação é uma diferenciação radical na estrutura interna dos níveis do ser. E, se isto é verdade, não se pode extrapolar os padrões de conhecimento e de pesquisa de um nível para o outro. Isto quer dizer que se a complexidade dos níveis do ser é distinta não se pode transferir de um nível para o outro suas características, legalidades e processos por serem específicos a cada um deles.
Para melhor esclarecer essa questão, é importante verificar o que ocorreu no século XIX, quando, após um árduo processo de elaboração intelectual de pesquisa de investigação, surge a Teoria da Evolução das Espécies, de Charles Darwin. Fundamentalmente, uma das teses que sustenta a Teoria da Evolução das Espécies é aquela segundo a qual as espécies que se mantêm no processo evolutivo apresentam quanto às espécies uma dupla característica: 1a) elas têm uma margem maior de adaptabilidade às mudanças do seu meio ambiente; e 2o) no processo de adaptabilidade as espécies mais resistentes, mais fortes e mais complexas sobrevivem.
A questão que se coloca é que essa afirmativa é, sem nenhuma dúvida, verdade para o mundo animal, de acordo com a teoria de Darwin. Mas, se pensarmos o mundo animal, o mundo orgânico, não apenas como resultado da concorrência entre as espécies que o constituem, veremos que essa relação faz triunfar aqueles que além de serem os mais aptos, revelem uma maior capacidade de adaptação às mudanças do ambiente. No final do século XIX, depois de uma grande polêmica, tornou-se pacífica, consensual do ponto de vista científico, essa concepção sobre a evolução do ser orgânico.
Todavia, ao mesmo tempo surgem daí algumas implicações para o homem, enquanto ser social, no plano da sociedade. Isto porque tenta-se justificar, cientificamente, no nível orgânico, que os mais aptos, os mais fortes, aqueles que revelam uma maior capacidade de adaptação acabam sobrevivendo, e, portanto, sobrepujando os menos aptos. Assim, essa concepção também podia ser aplicada aos seres humanos. Para tanto, se utilizava o exemplo do branco, europeu, ocidental, com a afirmação de sua capacidade de sobrepujar o autóctone americano, justificada, assim, na conquista ibérica, na destruição das civilizações maias, astecas e incas, bem como na dominação africana. Com essa forma de analisar as questões, estaria constituída a teoria racista da superioridade do branco, com ampla “fundamentação biológica”.
Dessa maneira, percebemos que tais inferências pertinentes ao mundo orgânico não correspondem às necessidades do mundo social, embora sejam afirmadas por várias teorias racistas europeias do final do século XIX e do início do século XX, cuja caricatura mais extremada é o nazismo hitleriano. O erro de base dessa proposição é, para além da lógica, também ideológico; e, sobretudo, um problema teórico em decorrência da extrapolação de um nível do ser (o orgânico) para outro nível do ser (o social), com a qual se comete um grave erro. Não vamos aqui discutir se a concepção de Darwin é inteiramente verdadeira, pois, ainda que ela seja verdadeira, extrapolar o âmbito do ser orgânico para o social é ilegítimo, teórica e cientificamente, porque o grau de complexidade, a natureza, a própria estrutura do ser orgânico é diversa da do ser social. Logo, tal extrapolação é ilegítima.
Assim, o que se quer dizer é que os níveis do ser constituem uma unidade diferenciada, posto o seu grau de complexidade. Exigem tratamento específico para o conhecimento de cada um deles. Com isso, ainda que se admita a Teoria Evolucionista explicar o mundo orgânico, é inadmissível conceber que ela explique o mundo social, porque o grau de complexidade, a natureza do mundo social é distinta da natureza do mundo orgânico. Conhecer o ser é conhecê-lo na sua diferenciação imanente, é levar em conta a sua unidade, tratá-lo na sua diferenciação. O que é característico do ser social, o que é próprio do ser social é supor necessariamente o ser orgânico e o ser inorgânico. Ou, como diz Marx categoricamente no Prefácio da Introdução Para a Crítica da Economia Política: “A anatomia do Homem é a chave da anatomia do macaco”. Embora isto não signifique dizer que “as espécies animais inferiores indiquem a forma superior”. Pois, o processo é contrário, “conhecida a forma superior pode ser compreendida a forma inferior”.
O ser social, o homem, tem como uma das características conter nele próprio o ser orgânico e o ser inorgânico, porque sem o ser orgânico e sem o ser inorgânico não há ser social. A sociabilidade depende, para a sua produção e reprodução, do ser orgânico e do ser inorgânico. O ser social tem como condição ineliminável ser natural, orgânico e inorgânico. Cada um dos indivíduos é um ser social, mas só o é na escala ou na medida em que a estrutura orgânica e a estrutura inorgânica suportam esse ser. Isto porque se este circuito for desligado, ou seja, se o circuito metabólico orgânico e inorgânico for retirado do homem, do ser social, ele simplesmente desaparece. O suporte do ser social é este metabolismo entre sociedade/natureza. Sem a estrutura inorgânica e a orgânica da natureza não existe ser social. Portando, não há ser social sem natureza. O inverso não é verdadeiro, porque a natureza não precisa da sociedade para se reproduzir, mas a sociedade não pode prescindir da natureza, porque sem natureza o homem, o ser social sequer teria existido.
Vale destacar que observar a relação entre sociedade e natureza é de fundamental importância para se ter clareza dos graus de complexidade que envolvem o ser, sobretudo o ser social. A afirmativa de que a natureza prescinde da sociedade, mas esta não prescinde da natureza trata-se de uma observação óbvia, que pode parecer até um pouco arcaica, mas é crucial para entender os graus de complexidade mencionados anteriormente, porque o ser social só é pensável numa dupla relação: a primeira é, com o ser orgânico e o ser inorgânico, ou seja, com a natureza. Mas aí não se esgotam as relações constitutivas do ser social, pois o que caracteriza o ser social é ele manter uma relação com a natureza, havendo uma relação mediatizada, uma relação que passa necessariamente pela relação com ele mesmo.
Observa-se que a partir desse momento se está tratando com um grau de complexidade que não existia antes. O ser social se relaciona com o ser natural, mas jamais se relaciona diretamente, ele o faz – aí começa a segunda relação – através de uma mediação, que é a própria sociabilidade. Um exemplo simples: nenhum indivíduo deixa de ter diariamente um intercâmbio qualquer com a natureza. Supõe-se que todo indivíduo coma, se alimente, embora o indivíduo que vive na cidade não tenha contato direto com a natureza, porque a comida que chega às suas mãos é o resultado, o produto de um conjunto extremamente complexo de relações sociais que começa lá na plantação, passa pela comercialização e está permeado de valores. Além do mais, normalmente, não se come com as mãos, porque se usa garfo, faca, mesa, etc; todo um ritual próprio à cultura, todo um conjunto de valores que se materializa nesses objetos. Assim, a característica do ser social é que primeiro supõe um ser orgânico e inorgânico, não existe ser social que não seja orgânico e inorgânico, porque o ser social está em constante metabolismo com a natureza. Mas esse metabolismo tem um caráter diferente do dos outros animais – uma vez que estes também estão em metabolismo com a natureza –, pois o metabolismo do ser social é mediatizado pela sociabilidade, sendo esta a segunda característica.
Aí se coloca a questão: O que é então este ser social? Ele é, na verdade, um conjunto de atributos, de características, de traços que se constituem, que se desenvolvem se construindo e se desenvolvendo historicamente. E quais seriam esses atributos, essa constelação e qual a configuração destes atributos? Como é que eles se engendram, como é que eles se constroem historicamente? Primeiro, é preciso ressaltar que esses atributos não elidem e não suprimem sua base natural. O ser social supõe sempre e necessariamente uma base orgânica e inorgânica. Não existe sociedade sem natureza. É precisamente nesse confronto com a natureza que se constitui o ser social. O confronto começa com uma atividade prática: o trabalho. O ser social se constitui no processo de trabalho. É, portanto, o processo de trabalho o constituinte do ser social.
É preciso ainda que seja feita uma observação importante para a compreensão do processo de construção do ser social: é necessário não perceber o trabalho como uma atividade qualquer do metabolismo entre a sociedade e a natureza, pois o trabalho não é apenas uma atividade mediante a qual o ser social se mantém, se reproduz, não é só isso. Sob essa ótica atividades produtivas e reprodutivas existem no conjunto inteiro de outros seres, por exemplo: pensemos na abelha construindo sua colmeia, e na aranha construindo a sua teia, lembremos também do castor construindo as barragens. Estes seres desenvolvem atividades sem as quais não produzem, nem se reproduzem. Porém, o trabalho humano não é uma atividade dessa espécie. O trabalho humano é uma atividade profundamente complexa. Basta recordar a frase de Benjamim Franklin: “O Homem é um animal que fabrica instrumentos”. Esta é uma definição do homem, a mais exata do ser social, a mais brilhante.
A questão que se coloca a partir daí é: O que caracteriza o trabalho que funda o ser social? E a explicação passa pelo fato de que o trabalho humano é um trabalho mediatizado, porque entre o homem e o objeto da sua atividade existe uma relação mediada, não há uma relação imediata, mas há uma relação mediata. Esta relação mediata é inicialmente posta pelos instrumentos. O homem é o único ser que na sua atividade produtiva introduz mediações entre ele e o objeto dessa atividade, elabora, constrói instrumentos para realização do seu trabalho. Primeiro é o instrumento, depois o conjunto de conhecimentos sobre o instrumento e o objeto com o qual opera, sobre o qual atua e desenvolve sua atividade, num processo contínuo e universal.
Mas falar em objetos é falar em teleologia (*) (telos = longe – finalidade, objetivo, meta, fim). Enquanto o trabalho da abelha, do castor, do pássaro joão-de-barro e da aranha é uma extensão biológica da sua natureza, ou seja, obedece a impulsos de sua matriz genética, o que responde ao conjunto das necessidades do ser social é uma atividade que antevê, que antecipa o resultado final da atividade. Ou seja, antes da atividade se realizar concretamente no real, ela é elaborada, concebida racionalmente. Marx diz o seguinte sobre esse processo: “o que distingue um bom mestre de obras (ou arquiteto) de uma abelha não é o produto final do seu trabalho, a diferença está em que o mestre de obras antes de começar a trabalhar antecipa o tipo de casa que vai fazer”. Uma abelha faz sempre uma colmeia perfeita, um mestre de obras pode fazer umas casas perfeitas, bonitas ou feias, a diferença está em que antes de começar a trabalhar o mestre de obras prefigura, antecipa o tipo de casa que vai fazer.
Falar em teleologia, em antecipação, é falar, necessariamente, em projetos. É porque o homem antecipa, tem uma atividade intencionalmente dirigida, uma atividade teleológica de fazer projetos. Por isso o homem pode escolher entre alternativas, ou seja, entre projetos diferentes. Ele tem alternativas para a realização de suas atividades. Por exemplo: até hoje os homens têm morado em casas ou prédios com formas diferentes, utilizando os materiais da própria natureza e, até mesmo, criando novos materiais. O trabalho humano implica, portanto, em mediações, projetos, antecipações com as quais se põem mais dois traços do ser social: a) um universo simbólico; e b) um sistema de linguagem. Contudo, o universo simbólico não está condicionado nem parametrado nos limites biológicos do ser social.
É importante observar que pesquisas recentes mostram sinais de comunicação desenvolvidos por certas espécies de animais. Algumas experiências, sobretudo com golfinhos, têm mostrado claramente que tais animais são capazes de estabelecer um sistema de comunicação com outros de sua espécie, ou mesmo com espécies diferentes. Esse sistema de sinais, que é necessariamente limitado pelos próprios limites biológicos, é uma extensão da estrutura orgânica desses seres, isto é, de sua matriz genética.
Por outro lado, no ser social o sistema de linguagem não está na direta dependência da sua estrutura orgânica, basta verificar, por exemplo, que na linguagem articulada há todo um conjunto de fonemas. Na língua portuguesa temos mais de trinta fonemas, e este elenco limitado de fonemas permite uma carga comunicativa infinita. Isso porque projetar, antecipar, no âmbito da atividade humana implica em linguagem. A atividade do trabalho é necessariamente coletiva, por isso que as pesquisas antropológicas mais dignas relacionam o aparecimento da música à objetivação dos homens. Esse processo está diretamente ligado à necessidade de estabelecer ritmos coletivos para o trabalho. O coletivo humano não é um coletivo puramente gregário ou plural porque isso também é encontrado em outros seres orgânicos. É um coletivo que implica antes de tudo numa instauração simbólica, que não é encontrada em outros seres do mundo orgânico.
Esse conjunto é acrescido de mais três traços que formam a face do ser social, porque ele possui, necessariamente, uma dimensão de valor no processo de escolha entre alternativas, porque quem escolhe valoriza. Quando se fala em escolhas, fala-se em valorização, o que supõe sempre a possibilidade de escolher entre mais de uma alternativa. Só se pode valorizar uma alternativa quando se têm mais de uma para que se possa estabelecer comparações. Mas a valorização pode não implicar na efetivação de uma escolha, pode-se valorizar uma alternativa mais do que outra, mas a escolha desta alternativa pode não ser a mais racional. Daí porque o ser social põe não só a categoria valor, como também a categoria liberdade.
No domínio da natureza, ou seja, no nível orgânico e no nível inorgânico, pode-se indagar sobre as causas, mas não se pode indagar sobre as finalidades; vejamos o exemplo de uma pedra atirada – é possível indagar apenas por que ela caiu. Aliás, Newton já explicou isso há alguns séculos. Mas não se pode indagar para quê ela caiu. Somente com a concepção finalista do mundo, rigorosamente finalista, é que se imagina que existem laranjeiras que dão laranjas, mas para quê elas dão, é outra coisa. Por que elas dão frutos ou por que deixam de florescer são questões que podem ser respondidas, mas para quê elas dão frutos, não se tem como responder pelo menos até o momento.
A diferença entre tais questões é que no mundo social a teleologia existe, ou seja, existe um para quê. Enquanto que no mundo orgânico e inorgânico não existe teleologia, não existe espaço para quê. Logo, é só no mundo social que existe a possibilidade de escolha, de alternativas. Observemos que quando um objeto é jogado ele, necessariamente, cai, e cairá sempre. Não se trata de perguntar a ele se ele quer cair ou não. Ele vai cair uma vez que é determinado pelas leis naturais. Entretanto, com o ser social não acontece a mesma coisa, porque não se pode dizer qual é o comportamento de cada um dos indivíduos numa situação determinada. Tem-se evidentemente uma margem de previsibilidade, mas é uma margem muito limitada porque o ser social escolhe entre alternativas. Escolher entre alternativas é valorizar. E realizar esse ato é exercer o fenômeno da escolha, é colocar em prática a sua liberdade, o seu livre arbítrio.
A resultante desse processo é a configuração do elenco de atributos que constituem a sociedade. E isto é o que é o ser social. Ele é uma configuração de linguagem, de valores, de projetos, de escolhas que supõem, necessariamente, a capacidade de reflexão, e de uma reflexão que tende a universalizar-se. Ou seja, o exercício da sociabilidade do ser social não implica tão somente num acúmulo de experiências referidas às vivências de cada um, mas supõe que a representação dessas vivências possa ser pertinente ao conjunto do seu igual.
Assim, o ser humano opera em dois níveis: o do “eu”, daquilo que ele é, com as suas limitações orgânicas, biológicas e materiais, operando também pensando no conjunto da humanidade, no “nós”. Essa universalidade caracteriza uma dupla, embora imbricada, dimensão do ser social. O ser humano sempre se singulariza, mas ele tem uma remissão ao universal. Cada ser social tem características pessoais que nenhum outro tem no mundo, mas tais características, absolutamente pessoais, aparecem ou comparecem num outro desenho em todas as outras pessoas do mundo.
Os homens são absolutamente singulares, no entanto, esta sua singularidade se nutre, se alimenta de uma igualdade básica. Isso parece paradoxal, os homens serem absolutamente iguais nos traços constitutivos do ser e absolutamente irrepetíveis na articulação desses traços, mas ninguém tem algo que o outro não tenha, em termos de caracteres fundantes do ser. No entanto, a organização, os traços que constituem cada um, traços que estão presentes em todos, fazem que os homens constituam um gênero: de brancos, pretos, amarelos, quer seja dos trópicos ou dos polos formando a humanidade.
Isso ocorre porque os traços comuns são os mesmos, o que diferencia os seres, e o que faz não haver nenhuma espécie igual a outra neste gênero, é a distinta combinação desses traços em cada um, definindo assim a singularidade, onde há também uma universalidade. Podemos partir da experiência pessoal, transcender os limites dessa experiência e fazer remissão ao conjunto do gênero do qual se é um exemplar. O ser social é este conjunto de traços que só existem na medida em que os seus portadores seguem um metabolismo enquanto ser natural. Cada um é linguagem, projeto, sociabilidade, toda uma carga produzida pelas gerações precedentes. E esta carga se mantém quando cada um se reproduz enquanto animal, ou enquanto desenvolve suas atividades sexuais. Se esse circuito for cortado, esse processo desaparece em cada ser social.
Assim, fica claro que o suporte natural do ser social tem um peso no ser social, um peso fundamental. Por exemplo: quem já viveu uma experiência de pânico coletivo, um incêndio, um desastre, sabe que cada um procura garantir a sua sobrevivência em função da relação animal de necessidade de sobreviver, mas é claro que aparece também uma relação de solidariedade. Todos devem conhecer vários exemplos, mesmo nos momentos de pânico a relação de solidariedade surge, isso é referente ao processo de humanidade do ser, que mesmo sendo orgânico é também social. A humanidade é riquíssima, extremamente nobre, mas é também frágil e por isso o ser social pode sofrer processos de regressão, como também fenômenos que gerem um processo de progressão.
Na realidade, cada indivíduo é um ser social, e cada parte deste ser social é parte do todo, ou seja, é parte da humanidade. Cada indivíduo realiza o ser social na vida social através da sociabilidade, mas este processo não se esgota no ser social, porque este é também natureza. O ser social através do processo de trabalho transforma a natureza e a si próprio, se humanizando. Tal processo, que ainda não está concluso, não elimina a base natural do ser social. A sociedade supõe, necessariamente, a natureza e vai continuar supondo-a porque o ser social é impensável sem o seu natural, sem a relação com a natureza.
Por outro lado, porém, tanto mais ele se socializa tanto menos está preso aos limites naturais. Vejamos, em termos de comparação, a diferença entre o homem de hoje e o homem das cavernas, que dependia mais da natureza do que o homem moderno. Imaginem o que aconteceria se hoje fosse eliminado o trabalho noturno, porque acabou a luminosidade natural e ninguém trabalha no escuro. A sociedade moderna seria impensável sem a energia artificial, sem o desenvolvimento tecnológico. É interessante saber quando é que começa, como fenômeno significativo, o trabalho noturno. Parece que é uma coisa antiga, mas não é. A energia artificial é de 1805, só a partir daí é que se têm condições técnicas de produzir uma iluminação artificial capaz de garantir o trabalho noturno. É, então, a partir do início do século XIX que as condições materiais para o trabalho noturno estão garantidas. Portanto, faz menos de 200 anos, isso é muito pouco em termos de história. Antes disso o trabalho noturno era absolutamente excepcional.
O que caracteriza o ser social é que ele se torna cada vez mais independente da natureza, mas tem sempre de manter um metabolismo com ela. O que caracteriza o desenvolvimento do ser social é que cada vez mais ele depende menos da natureza. Ele sempre dependerá, mas dependerá na sua evolução cada vez menos. Há uma expressão de Marx, no Manifesto de 48, perfeita sobre esse processo: “a socialização, a sociabilidade, implica cada vez mais num afastamento das barreiras naturais”. O ser social encontra barreiras naturais, mas sempre está tentando ultrapassá-las. Vejamos um exemplo da concretude dessa afirmação: na época de Napoleão, no seu processo de expansão, a distância entre Paris e Roma não podia ser coberta em menos de três dias, hoje essa distância é percorrida em 85 minutos. A distância continua sendo a mesma, porque ambas as cidades seguem no mesmo lugar, então, o que mudou nesse processo? O que mudou foi que um conjunto de massa crítica permitiu ao homem deixar de fazer essa distância em três dias para fazê-la em uma hora e meia. Esse fenômeno é uma verdadeira revolução.
No processo de desenvolvimento do ser social é muito claro o afastamento das barreiras naturais, mas isto não significa, paradoxalmente, que essas barreiras deixarão de existir, porque o condicionalismo jamais será suprimido, mas será cada vez menor o processo de condicionamento. A questão que se coloca é: Como se processou a construção do ser social na ordem burguesa, onde se produziu e desenvolveu um alto grau de complexidade nas forças produtivas? Vale a pena pensar um pouco este ser social que emerge com o advento do capitalismo.
Ao analisar o ser social que emerge na ordem burguesa verifica-se que é produto e resultado de um longo processo de transformação. E, de acordo com pesquisas antropológicas, o homem emergiu no Planeta Terra há cerca de 40.000 anos, e foi se transformando ao longo de um processo acumulativo, sem nenhuma garantia de que esse processo evolutivo siga em frente, porque ele pode sofrer regressões.
O capitalismo, como se sabe, é produto de quatro a cinco séculos, tomando como ponto de partida a decomposição da ordem feudal na baixa Idade Média até hoje. É a partir do século XVI que se formula historicamente a possibilidade de individuação, característica determinante da ordem burguesa, da sociedade do capital, porque antes disso não havia o que pensar em termos de indivíduo. Não existia indivíduo antes do século XVI, ele surge a partir daí. Antes o homem nada mais era do que uma singularidade como uma planta, um coqueiro, uma ave, um cão, etc. São fundamentais as características que o capitalismo imprime ao ser social. Há dois movimentos, ou elementos, típicos na constituição do ser social no marco do capitalismo: o 1o movimento é que o capitalismo engendra em termos históricos a máxima socialização das relações sociais; o 2o movimento é que essas relações sociais aparecem como relações sociais.
Dessa maneira é que ao tentarmos distinguir qual é o dado social característico do ser social sobre o capitalismo, dir-se-á que é sob o capitalismo que o ser social se satura de sociabilidade. Por exemplo, remetendo à concretude: ao se apanhar o camponês na Idade Média, na Gália (França), o poder para ele não aparecia como relação entre os homens. É por isso que a diferença da vida social sob o capitalismo para a de outras formas de organização social anteriores é que, no capitalismo, o conteúdo das relações sociais é saturado de sociabilidade e aparece como tal. Na Idade Média o camponês não podia se locomover livremente, não podia pegar seu instrumento de trabalho e procurar melhores condições em outro lugar, porque para ele era natural nascer, viver e morrer no mesmo lugar. Ele era uma extensão da manifestação de vida daquela terra. Ele era como uma árvore, um boi, um arado, etc, marcado pela fronteira do feudo. Violar isso era violar um pacto de lealdade estabelecido entre ele e o senhor feudal, porque na hora da guerra este o protegia.
Essa relação hoje em dia é colocada diferentemente, pois o trabalhador que sai em busca de trabalho, caso arranje emprego onde é brutalmente explorado, no dia seguinte pode simplesmente ir em busca de outro emprego, porque não tem um pacto de lealdade com o empregador, sabe que a sua relação com o patrão ou empresário é uma relação dessacralizada, isto é, não é uma relação natural, é muitas vezes uma relação contratual. Não é que antes do capitalismo as relações não fossem sociais, elas eram, só que não apareciam como tal, porque a forma de organização social impedia que isso ficasse claro, ou seja, que essas relações fossem visíveis. Vejamos outro exemplo concreto na estrutura da família. Esta, até antes do advento do capitalismo, era unida pelos laços de sangue, daí a célebre expressão “sangue do meu sangue, carne da minha carne”. Hoje, não se pode pensar a família dessa maneira porque a sociabilidade da família aparece com toda clareza. Assim, tanto a paternidade como a maternidade tende a se reduzir no plano biológico e a crescer no plano social.
Este é um processo característico de determinada ordem social matrizada pelo capitalismo, onde as relações sociais tendem a ficar saturadas de sociabilidade, porque tudo passa pela socialização, é o momento em que essas relações podem aparecer como relações sociais. Assim, a diferença fundamental do ser social sob o capitalismo se apresenta da seguinte maneira: 1o) as barreiras naturais são cada vez mais empurradas pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas que são características à ordem burguesa; 2o) consequentemente, essas relações sociais podem aparecer como relações sociais. É importante observar que não se afirma se elas aparecem ou não, o que se diz é que elas podem aparecer. Este ponto vale a pena ser esclarecido, mas antes daremos um exemplo concreto para melhor compreensão das transformações que ocorrem nas relações sociais. Chamamos a atenção para um fenômeno interessante no processo histórico de formação do ser social, em suas relações: o surgimento do amor individual, que é o amor socializado, momento no qual entram em jogo as mediações sociais em face das necessidades sociais e orgânicas. Assim, o prazer sexual é muito recente, em termos de fenômeno massivo, na história da humanidade, porque só muito recentemente é que foi socializado.
Aliás, esse fenômeno Max Weber descreve numa ótica diferente do pensamento marxiano, denominando-o de profanação do mundo. Para Weber o mundo perde a sua magia, o mundo perde o seu mistério, quando passamos a compreender as relações sociais enquanto resultante de um jogo de relações entre os homens. As relações que se estabelecem entre os homens não são vistas como coerções, como imposição da ordem natural ou de uma ordem divina. Elas são analisadas como resultantes da interação dos próprios homens. Isto só pode ocorrer no capitalismo, não podia ocorrer antes porque os outros ordenamentos sociais anteriores ao capitalismo ocultavam a sua natureza. A sua natureza social não aparecia enquanto tal. O poder na sociedade feudal não aparecia enquanto relação entre os homens, pois se expressava como algo sagrado pelo direito divino, colocando-se, portanto, além da intervenção dos homens.
No momento histórico atual é possível escolher o governante da Nação votando, e o poder tem uma transparência distinta, uma vez que os homens podem interferir nele. Assim, ao socializar as relações sociais, o capitalismo não apenas leva o ser social ao seu mais alto grau historicamente conhecido, como também cria a possibilidade do ser social se reconhecer como tal. Ou seja, cria a possibilidade de a sociabilidade elementar aparecer enquanto sociabilidade e não enquanto outra coisa. Esta é a primeira característica da ordem social que se articula no marco do capitalismo, ela socializa as relações sociais e, portanto, põe como possibilidade o seu conhecimento.
É claro que um homem que vivia num marco societário em que as relações sociais apareciam como relações naturais não podia identificar as relações sociais, porque as relações sociais não apareciam na sua especificidade, vinham misturadas, contaminadas, mescladas com as relações naturais. Na ordem capitalista as relações sociais aparecem como relações sociais. Na sociedade burguesa o ser social aparece como ser social, porque nesta forma de organização a saturação da sociabilidade permite que esta seja reconhecida como tal. É apenas sob o capitalismo que se pode visualizar o ser social como distinto do ser orgânico e do ser inorgânico. É sob a égide do capitalismo que as fronteiras entre a sociedade e a natureza se explicitam. Em decorrência desse processo é que se pode conhecer o ser social.
Como resultado disso é que as Ciências Sociais nascem no século XIX, e não por um acaso cronológico. Somente sob a ordem social articulada no capitalismo que o ser social pode aparecer na sua pureza. E, portanto, só então ele pode ser objeto de um conhecimento específico, momento em que há um corte nas suas relações com o ser orgânico e o inorgânico, embora não se elimine essa relação.
É sob o terreno do capitalismo que os fenômenos sociais podem se tornar realidade para o conhecimento dos homens. E só no marco da ordem burguesa que os homens podem pensar a sociedade como algo específico, diferente da natureza. O capitalismo põe isso como condição estrutural do ser social. O ser social sob o capitalismo pode aparecer como ser social e não como extensão da natureza ou de divindades. É na sociedade capitalista que o ser social tem sua estrutura íntima dinamizada, polarizada. Para ser mais preciso, a natureza do ser social aparece com clareza na sociedade capitalista, mas essa natureza não deve ser confundida com a natureza orgânica e inorgânica deste ser social, porque ele tem uma especificidade particularizada.
Assim, o ser social se desenvolve, se explicita, se expressa e se objetiva na ordem capitalista e é nessa ordem que aparece, ou melhor, pode aparecer tal como realmente é, como processualidade. Isto porque a processualidade constitui o modo de ser do ser social. No entanto, ela só pode aparecer como tal, só emerge como tal no marco da sociedade capitalista, porque é nesta forma de organização social que as barreiras naturais são cada vez mais empurradas, superadas. Não restam dúvidas de que os limites naturais do ser social não deixam de existir, mas esses limites são cada vez menos condicionadores do desenvolvimento social deste ser. Esse movimento de empurrar as barreiras naturais é um requisito essencial para que a processualidade do ser social possa ser apreendida. Assim, é a sociedade burguesa que eleva ao grau máximo, historicamente verificável, a socialização das relações sociais.
No processo de construção do ser social, a tese central é a de que a natureza social, ou seja, o caráter íntimo, o caráter mais profundo do ser social – que é a sua sociabilidade, a sua processualidade – é posto pelo trabalho. É o trabalho que põe a teleologia, a consciência, a universalidade, a linguagem, etc. No entanto, a processualidade do ser social, que é constitutiva dele porque o ser social é processualidade, só pode aparecer como tal na ordem burguesa. Isso porque embora o ser social se constitua sempre como processualidade ao longo da sua evolução histórica, ele só aparece dessa forma, em termos de visibilidade, quando é alcançado um determinado patamar histórico em que a complexidade dessa processualidade já é muito alta. E este momento preponderante emerge com a ordem burguesa.
No entanto, é preciso destacar um aspecto importante desse mesmo fenômeno, o fato de que este quadro societário que eleva ao grau máximo, historicamente modificando a sociabilidade das relações sociais, explicita o caráter social deste ser, esse mesmo processo faz que essa sociabilidade, essa processualidade se mistifique. Isto é, faz que essa processualidade não apareça como tal, mas que se mostre negando a si mesma. Ou seja, há um processo de reificação, de mistificação, negando essa processualidade. Assim, estamos diante de uma efetiva contradição, porque é criado não apenas um paradoxo expositivo, mas uma dinâmica que é, ela mesma, na sua essência, extremamente contraditória. Essa contradição consiste no fato de que as relações sociais se saturam de sociabilidade – destacando as relações sociais como algo distinto da natureza, que se especifica e particulariza as relações sociais – ao mesmo tempo em que a sociedade burguesa lhe atribui uma objetividade peculiar, um padrão de emergência, uma forma de aparecimento que acaba por negá-las e que é contrária à sua essência profunda. Esta é a grande contradição da ordem burguesa.
Para melhor compreensão desse fenômeno é importante remeter à realidade concreta: pensemos, por exemplo, em uma das características da ordem burguesa – a economia mercantil. A sociedade burguesa supõe uma economia mercantil, mas o contrário não é verdadeiro, porque é possível ter uma economia mercantil fora da sociedade burguesa. Com isso, é característica da sociedade burguesa supor uma economia mercantil, ou seja, uma troca universal, um intercâmbio que, por sua vez, para se realizar, supõe um equivalente geral que é o dinheiro. Este equivalente geral aparece em outras formas de organização, mas é na sociedade capitalista, burguesa, onde tudo se transforma em mercadoria, que o dinheiro é a base de todas as relações. Além do mais é próprio da economia mercantil no estágio em que se encontra na ordem burguesa apresentar o máximo de socialização possível, e esse equivalente geral é um símbolo, um signo de um processo de socialização profundamente intenso das relações econômicas nessa sociedade. O dinheiro é, então, um instrumento, uma mediação, um equivalente que permite a essa economia mercantil se desenvolver enquanto circuito universal. Esse instrumento, essa mediação, não é apenas meio de troca, o dinheiro é muito mais do que isso, é a própria realização dessa sociedade, sua síntese mais completa e poderosa.
Marx, nos seus estudos, faz uma análise do dinheiro demonstrando que ele é mais do que um meio de troca, porque enquanto meio de troca ele é um mediador de várias relações e uma delas é a relação que indica a parte de cada um dos indivíduos no conjunto da produção social, ou seja, do produto socialmente gerado. O dinheiro é o indicador disso, embora funcione e apareça na vida dos indivíduos de forma mistificada. As pessoas operam com dinheiro, trabalham com essa representação, mas não sabem como funciona, porque o dinheiro se impõe como uma coisa. Na realidade, o dinheiro é resultado de determinada relação social. Ele é, antes de tudo, síntese de vários processos sociais, mas aparece não enquanto síntese de processos sociais, de relações sociais entre as pessoas, e sim enquanto algo atomisado, enquanto elemento da realidade social que, ou é intransitivo, ou tem uma única dimensionalidade.
Para compreendermos esse processo tomemos como exemplo uma máquina de costura utilizada apenas para fazer a roupa usada para o consumo de uma pessoa, essa máquina é apenas um instrumento, ela não é capital. Mas, se essa mesma máquina de costura for utilizada para produzir várias peças com uma costureira a quem se paga por semana, por quinzena ou no fim do mês, ou ainda por cada peça posta no mercado, essa máquina se transforma em capital. Assim, a qualidade de capital, essa qualificação social não depende da máquina de costura, não depende do modelo de máquina, não depende de onde ela está, se no quarto, na sala, ou na oficina, depende, isso sim, do circuito de relações sociais onde ela se inscreve.
Dessa maneira, o que é característico da sociedade burguesa é que essa processualidade efetiva se oculta, é mistificada, é velada pela forma como aparece na superfície da vida social. Esse fenômeno configura uma constelação de problemas, tais como: alienação, reificação, fetichização, etc, ou seja, passa para o domínio das posições ideológicas. Mas esse processo de reificação não é uma conspiração, nem apenas um ato de vontade, mas é sim algo intrínseco a própria lógica da sociedade, pois tanto a processualidade das relações sociais quanto a reificação do dinheiro é algo que lhe é imanente e faz com que as relações sociais tenham essa aparência que inverte a processualidade. Mas é também um mecanismo necessário da ordem burguesa em todas as suas manifestações porque é uma das garantias de sua reprodução.
É preciso insistir nessa questão porque, frequentemente, pensamos que certos fenômenos sociais, decorrentes da lógica necessária de uma determinada dinâmica social, são apenas atos de vontade, como se a mistificação das relações sociais fosse conspiração de meia dúzia de intelectuais, de empresários ou de burgueses que querem enganar a sociedade. Não se trata disso. O desvendamento desse processo foi realizado por Marx n’O Capital (capítulo 1, Livro 1, item 4), onde discute o fetichismo da mercadoria. É aí nessa célula econômica elementar da ordem burguesa, ou seja, da sociedade capitalista, que se oculta, que se segrega a dupla dimensionalidade das relações sociais, aliás contraditória, dos fenômenos nas relações sociais.
Por outro lado, vale destacar que é a objetividade que permite apanhar os processos sociais, mas é uma objetividade peculiar da ordem burguesa. É apenas pela sua objetividade que os fenômenos se põem e que esses fenômenos podem ser tratados, tematizados e superados racionalmente. Porém, os fenômenos sociais aparecem na ordem burguesa com uma objetividade especial. Essa objetividade é o que se chama de positividade. Esta forma pela qual a ordem burguesa envolve a objetividade dos processos sociais é algo que está na raiz da observação, do estudo, da análise e da reflexão das Ciências Sociais.
Assim, somente quando a estrutura específica do ser social puder ser apreendida enquanto especificidade em si mesma, haverá compreensão do que seja o social. Logo, só pode surgir uma ciência do social no momento em que o ser social se põe como objeto de reflexão. O ser social só se põe como objeto de reflexão quando a sociedade atinge um alto grau de processualidade, considerado seu momento preponderante. E isto ocorre sobretudo no século XIX com a reflexão de pensadores como Saint Simon, Comte, Durkheim, dentre outros. Mas poder-se-ia dizer que há tempos a sociedade já é objeto de reflexão, basta lembrarmos de Platão, Aristóteles, São Tomás, etc, no entanto, é correto afirmar que nenhum destes pensadores citou a sociedade como objeto de reflexão, porque o social ainda não havia se posto como objeto específico.
Dessa maneira, é apenas na ordem burguesa, no desenvolvimento da sociedade capitalista, que se pode operar um inteiro corte com a natureza; sem, contudo, ocorrer a ultrapassagem total. Com isto, o ser social, dada a sua saturação de sociabilidade, pode se pôr como objeto de reflexão, pois só se tem uma compreensão do social em seu processo de desenvolvimento, em sua totalidade, a partir da instauração da ordem burguesa. Desse modo, não é por acaso que no século XIX começam a surgir as teorias e disciplinas sociais específicas. Isto ocorre porque só então o ser social se explicita enquanto ser específico, enquanto algo distinto da natureza, enquanto algo que tem uma legalidade irredutível.
Fica claro que a socialização das relações sociais – quando o social pode aparecer como objeto de uma reflexão que lhe diz respeito especificamente, e que não é estudo da natureza nem estudo de divindades, mas algo que procura apanhar, especificamente, o processo dinâmico desse ser social que é o homem – só foi possível no momento preponderante de emergência das relações mercantis no marco da ordem burguesa.
Entretanto, no mesmo processo em que isso ocorre, põe-se um obstáculo – que consiste em um conjunto de elementos que impede a percepção do homem quanto a esse processo –, pois ainda que essa forma de aparecimento traga consigo o desvelamento do ser social, em face da sua própria natureza, ela ganha uma aparência, uma pretensa objetividade, uma falsa objetividade, uma positividade que oculta, que mistifica a sua própria natureza. Dessa maneira, estamos diante de uma efetiva contradição do processo sócio histórico porque no marco societário onde o ser social pode aparecer como realmente é, ou seja, como pura processualidade, como pura sociabilidade, desenvolvem-se mecanismos, desenvolvem-se lógicas sociais que encobrem essa verdadeira objetividade como uma pseudo-objetividade, mistificando toda a realidade e aquilo que é e não aparece como tal.
Portanto, é a ordem burguesa a única propícia, em termos genéticos, a uma reflexão específica sobre o ser social. No entanto, é essa mesma sociedade capitalista que coloca tal possibilidade simultaneamente a mecanismos que a velam, ocultando-a, mistificando o próprio ser social. Assim sendo, o conhecimento do ser social é uma possibilidade, na medida em que o impossível é um domínio muito mais amplo do real do que o possível. O real é sempre um domínio mais estreito, uma vez que nem todas as possibilidades se convertem em efetividades. De fato, na ordem burguesa é possível pensar o ser social na sua especificidade, mas essa possibilidade não deriva imediatamente em realidade porque ela ocorre em função de duas variáveis, a saber: primeiramente, se dispor de um arsenal heurístico, de um aparato teórico, de instrumentos analíticos e críticos que permitam desvendar a realidade social. Isto quer dizer, que permitam ir além da aparência dos fenômenos sociais, ou seja, além de sua imediaticidade, que permitam passar desses fenômenos aos processos essenciais que eles sinalizam. Para isso, evidentemente, é preciso dispor de um arsenal heurístico, ou seja, tem-se que dispor de categorias lógicas e ontológicas para orientar esse processo de apreensão do real.
Em suma, tem-se que dispor de uma qualificação teórico-científica. E para isso é preciso recorrer a uma massa crítica que já foi produzida, porque os processos analíticos não começam com o pesquisador, uma vez que já existe um acúmulo, um patrimônio de conhecimento que pertence à humanidade. Pois, como afirma Marx: “cada geração recebe da anterior um legado de cultura, conhecimento, valores, etc. Esse conjunto de processos configura um acervo que é preciso dominar para aperfeiçoá-lo, mantê-lo ou até mesmo negá-lo e assim avançar ou retroagir o desenvolvimento dos processos sociais”. Esta é uma das condições para pensar os processos sociais específicos dos tempos atuais. É preciso uma bagagem teórica que não permita fazer tábula rasa de todo um desenvolvimento no mínimo secular de análise, de mediações e de compreensão do real. Ou seja, a cultura teórica é um elemento fundamental para converter essa possibilidade em efetividade.
Mas o desvendamento, a ultrapassagem dessa positividade, dessa efetividade, é determinada não apenas por essa qualificação teórica, mas por uma determinada posição diante da história. Esta é a segunda possibilidade, na medida em que exige uma posição que supõe a apreensão da dimensão, ou das dimensões da historicidade como elas mesmas são, ou seja, inerentes aos fenômenos sociais. Vejamos um exemplo: suponhamos que nessa sociedade em que se vive hoje, a sociedade burguesa que está mudando, haverá sempre os proprietários dos meios de produção e os vendedores de força-de-trabalho, ou, como entendido vulgarmente, terá sempre ricos e pobres como se fosse uma relação “natural”, porque sempre foi assim. Ao se trabalhar com essa concepção tem-se uma noção cronológica e superficial da história, porque o suposto é que as sociedades burguesas, que a ordem social do capital, são a paragem terminal da história, ou seja, que a ordem burguesa é a realização máxima da humanidade do homem. Neste caso, supõe-se que, na verdade, o futuro, o devir, é uma reprodução ampliada do presente. E assim se raciocina igual àquele pensador para o qual houve história, mas já não há mais. Logo, a Revolução Francesa foi ótima e já se comemorou dois séculos, mas a Revolução Bolchevique foi uma coisa horrorosa, e a queda do muro de Berlim comprovou essa noção.
Assim, houve história com o processo que instaurou e legitimou a ordem burguesa através da Declaração dos Direitos do Homem, em 1793; com a fundação da pátria norte-americana, onde a democracia se realizou, etc, mas já em 1917 a situação foi diferente. Em 1949, na China, pior ainda. Em 1959, em Cuba, nem se fala. Em 1979, na Nicarágua, mais grave ainda. Logo se percebe que a dimensão de historicidade não é posta pelo conjunto de mudanças sócioculturais que inevitavelmente se dá em qualquer marco societário. Pensar a dimensão de historicidade é pensar, não é aderir, mas é pensar a possibilidade de revolução como possibilidade legítima e viável para a ultrapassagem dessa ordem burguesa. É apenas desse ponto de vista, sob essa perspectiva, que essa ordem social pode ser subvertida, ou seja, ultrapassada, a fim de que o processo de construção da humanidade do Homem possa prosseguir.
É preciso destacar que aderir a essa proposta não é apenas uma questão de colocação, de angulação do pesquisador, mas de permitir-se pensar que esta ordem social é transitória, efêmera, e rigorosamente histórica. Isto é, é uma das tantas formas de interação entre os homens que articulou, que teve um momento de emergência, um momento de consolidação, um momento de estabilidade, mas teve e tem também um momento de crise e um momento de perecimento. Essa forma de apreensão do real é aceita em relação ao passado, a exemplo da sociedade feudal que, com sua articulação determinada, se constituiu, se desenvolveu, e a partir de um determinado momento começou a experimentar seus mecanismos de crise, se desestruturando e consequentemente sendo substituída por uma outra ordem – a ordem burguesa. Esta forma de organização social também teve o seu período de gestação, desenvolvimento, consolidação, mas agora experimenta seu período de desestruturação, através da profunda crise mundial que está vivendo, que é uma crise estrutural.
Logo, se esse objeto que é a ordem burguesa não for tratado rigorosamente como um objeto histórico – como um objeto que tem um período de vigência histórica, ao fim do qual ele se exaure, se esgota, ao fim do qual vai ceder, vai ser compelido a dar espaço a uma nova forma de organização social – não será possível usar o arsenal heurístico estruturado pelo pensamento marxiano, pois Marx é o único pensador capaz de apanhar a lógica da ordem burguesa em sua totalidade, e apontar as perspectivas de sua ultrapassagem pelo viés do trabalho.
Assim, esses dois elementos – arsenal heurístico e visão de historicidade do real – são fundamentais enquanto elementos concorrentes, confluentes para a compreensão do processo real, a ultrapassagem de seus resultados, e a apreensão da processualidade da sociedade. Isto porque ao observarmos um pouco a história da cultura na ordem burguesa veremos que na transição do século XVIII ao século XIX surge, articulada a primeira percepção da processualidade do ser social, o que se pode chamar de primeira teoria social moderna. Para entender essa apreensão dos fenômenos sociais basta apanhar o pensamento de Adam Smith e David Ricardo, que são os criadores da nova concepção de realidade do seu tempo. Estes pensadores são os que desenvolvem a moderna economia política, entendida não apenas enquanto rentabilidade, ou lucratividade, mas como explica Smith em seu livro “Riqueza das Nações”, como movimento completamente diferente de 100 ou 150 anos antes. Isto porque o mundo pós-revolução industrial gerava a riqueza das nações que já era naquela época uma riqueza mobiliária e não mais imobiliária, pois não era mais apenas a terra que produzia a riqueza, e sim o comércio que atingia um processo muito dinâmico.
Esses pensadores foram os primeiros a pensar a processualidade da história, no entanto, eram defensores rigorosos da ordem burguesa, não tinham nada a ver com o movimento operário, nada a ver com a tradição socialista; mesmo que David Ricardo, já no fim da vida, tenha se “inclinado um pouco à esquerda”, e alguns dos seus discípulos tenham feito parte das fileiras do movimento socialista. Porém, eles, Smith e Ricardo, não tinham em si nenhuma tradição, nenhuma relação com o movimento operário, eram destacados pensadores burgueses, mas que reconheciam as características bárbaras do desenvolvimento capitalista, analisavam essas características, pensavam essas características e afirmavam que a ordem burguesa era um momento do processo histórico. Depois deles quem apanhou a lógica da ordem burguesa e sua perspectiva de ultrapassagem foi Marx.
A questão que se coloca é se é preciso estar na oposição para desenvolver o caminho apontado por Marx. O que, necessariamente, não é verdade. É preciso sim levar em conta a possibilidade de mudança estrutural, porque se essa possibilidade não for considerada a forma de emergência dos fenômenos sociais, dos processos sociais, vão ser eternizados. Assim, considerando a possibilidade de apanhar Marx enquanto pensador que, depois de Smith e Ricardo e ao longo do século XIX e XX, apontou o caminho para a possibilidade de ultrapassagem da ordem burguesa, se essa angulação não se perder com a identificação entre positividade e objetividade, é possível produzir certo conhecimento do ser social, embora seja ainda um conhecimento que não agarra a estrutura interna do pensamento de Marx, a sua essência. É preciso considerar, portanto, essa forma de emergência, essa forma de organização social, como uma falsa objetividade, porque se ela não for posta em questão, se não for posta pela perspectiva de superação pelo trabalho, acabará se identificando objetividade com positividade, o que contribui para a visão de que a ordem burguesa é eterna, e nega, assim, a sua processualidade, a sua historicidade.
Daí a necessidade de serem desmontados os mecanismos que se põem como positividade na emergência dessa ordem social e que supõem apanhar a sua objetividade processual. É necessário distinguir a objetividade dos processos sociais da ordem burguesa de sua positividade. E isto só é possível, primeiro, se dispormos de categorias analíticas, de instrumentos críticos que permitam fazer isso; segundo, tivermos uma angulação de análise que permita apreender a dimensão de historicidade que percorre os processos sociais. Somente assim é possível compreender sua estrutura interna e a possibilidade de sua superação, de sua ultrapassagem para uma outra forma de organização social.
Logo, fica claro que o conhecimento da profunda dinâmica do ser social, o conhecimento de sua processualidade só pode ser obtido quando a análise apanha o seu núcleo interno, sua estrutura interna, para que seja compreendida a possibilidade de sua superação, de sua ultrapassagem. Negar essa processualidade é pensar na eternidade dessa forma de organização social. É preciso apanhar o fenômeno pela sua aparência, pela sua manifestação, mergulhar na sua estrutura interna e apanhar a sua processualidade, para se compreender a possibilidade de sua ultrapassagem.
Assim, a questão que se coloca não é apenas se é possível ou não conhecer o ser social na ordem burguesa, uma vez que se faz necessário direcionar esse conhecimento para duas grandes vertentes: primeiro, a que identifica positividade com objetividade; e segundo, a que supõe que é preciso superar a positividade para apanhar, para encontrar a objetividade. E esta é aquela dimensão que supõe precisamente o dimensionamento da historicidade do ser social. Logo, apanhar a processualidade do ser social é compreender a sua objetividade que é ocultada na ordem burguesa pela sua positividade.
Dessa maneira, esses dois tipos de conhecimento são diferentes, porque um apanha a questão do ser social pelo viés gnosiológico e o outro pelo viés ontológico. O primeiro é um conhecimento que procura fundamentalmente estabelecer relações de causalidade, nexos de causalidade visando evidentemente direcionar intervenções, seja na natureza seja na sociedade, para obter determinados fins; enquanto o segundo, o ontológico, é um tipo de conhecimento que procura resgatar a estrutura do ser sobre o qual atua, sobre o qual se debruça, tal como ele existe, tal como ele realmente é, porque ontologia é o estudo do ser, é a coisa em si; isto é, apanhar a coisa em si, apanhar a estrutura do ser, ou seja, apanhar, apreender o modo de ser do ser social. E na medida em que se apreende a estrutura interna de cada fenômeno, apreende-se a localização dos processos a que esses fenômenos sinalizam para sua superação.
As duas matrizes para pensar a sociedade, ou seja, para pensar o ser social, se caracterizam da seguinte forma: a primeira pensa a positividade do ser social e às vezes articula um sofisticado arsenal heurístico, mas aceita a tese de que a ordem burguesa é o ponto terminal de construção da humanidade do homem. É o que se traduz da perspectiva adotada por Comte, Durkheim, Weber, Parsons, Lewis Strauss, dentre outros. O que diferencia esses pensadores é a sofisticação do referencial heurístico, e certas concepções globais sobre a sociedade. Esta é a chamada tradição positivista. O positivismo é a auto-representação ideal da sociedade burguesa. Essa corrente responde não a um atraso das Ciências Sociais, mas às demandas objetivadas dessa mesma sociedade, porque expressa precisamente as características de automatismo, de manipulação, de bloqueio da processualidade do ser social. Assim, a tradição positivista tem o seu “chão” na ordem burguesa.
Na verdade, o combate ao positivismo e à tradição positivista terá de ser sempre renovado enquanto a sociabilidade se mover nos marcos da ordem burguesa. E para pensar na superação, na ultrapassagem da ordem burguesa, é preciso apanhar o arsenal heurístico marxiano, porque Marx foi o pensador que compreendeu totalmente a positividade da ordem burguesa e demonstrou que essa ordem avançou no processo de construção da humanidade do homem, nos meados do século XIX, quando a burguesia assumiu totalmente o poder, mas através do uso da força e dos aparelhos do Estado começou a impedir esse processo de construção. E para que o homem possa continuar construindo sua humanidade essa ordem precisa ser superada, ultrapassada pelo viés do trabalho, na busca da construção da VERDADEIRA SOCIEDADE HUMANA.
Assim é que Marx afirma: “O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade civil; o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade social”. Nesta afirmativa tem-se a contraposição entre sociedade burguesa e sociedade humana. A sociedade humana não é, para Marx, a sociedade burguesa, que é a sociedade onde predomina a economia, onde a produção econômica determina o homem, ou seja, é ainda o reino da necessidade. Marx afirma na Ideologia Alemã (que é do mesmo período das teses) que “a sociedade civil abrange todo intercâmbio material dos indivíduos, no interior de uma fase determinada de desenvolvimento das forças produtivas (…). A expressão “sociedade civil” (pode significar tanto “sociedade burguesa” como “sociedade civil”) aparece no século XVIII, quando as relações de propriedade já haviam se desprendido da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, só se desenvolve com a burguesia.
Para Marx, diferentemente se coloca a sociedade humana que é a sociedade onde predomina o homem, não como único no seu isolamento natural, mas enquanto feixe de relações sociais; consequentemente, é a sociedade onde o homem, na sua alma social, determina a redução econômica, ou seja, é a sociedade do reino da liberdade ou da humanidade social.
Para finalizar essa reflexão vale a pena apanhar uma citação feita pelo professor J. Chasin, a saber:
Marx teve um destino póstumo espantoso, que nenhum teórico antes dele conheceu. Existiram profetas, Moisés, Maomé, o Cristo, que centenas de milhões de homens acreditaram ser filho de Deus, mas o caso de Marx é excepcional, porque ele jamais pretendeu ser nem uma coisa nem outra. Simplesmente um homem na história dos homens. Nem Platão, nem Aristóteles, nem Voltaire, nem Kant, nem Maquiavel, nem Espinosa conheceram uma tal celebridade, ou deram nascimento a uma doutrina cujo papel histórico foi e é de tamanha amplitude. *