Capítulo 3
CAMINHO ONTOLÓGICO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
Marx foi o único pensador que realmente fez ontologia até as últimas consequências, foi aquele que estabeleceu o pensamento ontológico desembaraçado da questão gnosiológica, resgatando a disposição dos pré-socráticos, os únicos pensadores que também fizeram uma ontologia desembaraçada da questão gnosiológica.
Diante dessa afirmativa, a questão que se coloca é procurar entender o que foram esses últimos duzentos anos em relação a Marx. Na resposta está o fato de que, no fundo, houve apenas uma bizarra discussão sobre o estatuto científico do pensamento marxiano. Mas, em Marx, não faz sentido indagar sobre o seu estatuto científico, porque levantar essa questão é, na verdade, anular a perspectiva ontológica na qual se põe. Isto porque Marx é a resposta radical à concepção kantiana. É a negação deste pensador. A questão é sempre colocada numa discussão que busca provar que Marx segue ou nega Kant, segue este ou aquele filósofo.
Toda essa discussão, em larga medida constituidora de uma vaga sufocante, conduziu ao longo de todo o século XX, especialmente a partir da década de 60, a uma discussão própria: a de identificar qual a legalidade científica do pensamento de Marx; isto é, o que é que, em Marx, enquanto subjetividade estabelece os padrões de certeza. O que estabelece a certeza no pensamento de Marx é o desvelamento do objeto; ou seja, da objetividade, com uma ênfase monumental à subjetividade enquanto valorização. Marx é o único pensador que eleva radicalmente a subjetividade em termos de valorização. Mas a questão que se coloca é em relação ao problema de como ele trata a subjetividade pelo fato de Marx questionar o critério de subjetividade não significa que rejeite a sua importância. Ao contrário, em Marx, há uma elevação extrema da importância da subjetividade, mas recusando os chamados estatutos de cientificidade, na medida em que estes não passam de tematizações sobre a subjetividade.
A questão fundamental é que, se a reflexão principia pela investigação das possibilidades do saber, o sujeito querendo dizer o que o objeto é, ela principia exatamente naquilo que não pode resolver naquele momento. Dessa forma, a investigação distorce todo o aparato científico. Marx é a negação de todo conjunto de posições existentes dentro do meio acadêmico do ponto de vista “científico”, sejam quais forem as atividades e discrepâncias das várias posições filosóficas, todas elas na medida em que se rearticulam para realçar a gnosiologia, são contrapostas ao pensamento marxiano. A posição determinante em Marx é ontológica e não gnosiológica. Não é este o caminho de Marx, ao contrário, é o caminho rejeitado por ele. Isto não significa que não haja ciência em Marx, a sua reflexão sobre ciência e sobre método é decorrente da questão ontológica. Marx separa a questão ontológica da gnosiológica e não se deixa embaraçar pela questão gnosiológica no ponto de partida. A questão gnosiológica aparece em seu devido lugar mais à frente. Assim, na construção do pensamento marxiano não há definido um conjunto elaborado onde a questão ontológica, gnosiológica e infinitas outras estejam anteriormente prontas, é o objeto que vai dizer o que ele é, mas o sujeito precisa ter um arsenal heurístico capaz de apanhar o ser-em-si do objeto.
O surgimento do indivíduo
É a partir do Século XVI que se formula historicamente a possibilidade de individuação, porque e antes disso não há o que pensar sobre essa questão. Os indivíduos vão surgir a partir daí, porque antes o indivíduo nada mais era do que uma singularidade, tal qual uma planta, um coqueiro, um animal qualquer. Quando a individuação aparece, ela aparece com um florescimento real de possibilidades e a ênfase sobre o sujeito cresce e é uma das componentes da Antropologia, mas com um risco muito sério de tornar a individualidade o centro organizador do mundo.
É preciso ressaltar, se é verdade que são os homens, através de suas ações, que constroem o mundo dos homens, isso não nega de maneira alguma a ideia de classes sociais, porque a classe não é outra coisa senão o conjunto de indivíduos. Não existe uma classe antes dos indivíduos. Efetivamente o que marca o nascimento de uma classe é a aquisição da consciência e essa consciência emerge das relações sociais, num processo de associativismo, no reconhecimento do sentimento de pertença, primeiro no processo de associação e os primeiros ensaios para essa organização foram as coalizões, isto porque a grande indústria aglomerou num mesmo espaço de trabalho uma multidão de trabalhadores que não se conheciam; a concorrência entre eles para serem absorvidos pelo mercado divide seus interesses, mas para manter o salário, que é um interesse comum diante do patrão, os reúne num mesmo pensamento e mesmo ato de resistência contra o patrão, formando assim a coalizão. A coalizão tem um duplo caráter: fazer cessar entre elas as a concorrência, para poder fazer concorrência geral ao capitalista. Enquanto o objetivo da resistência é apenas a manutenção do salário, à medida que os capitalistas, por sua vez, se reúnem num processo de repressão. As coalizões que começam isoladas, agrupam-se e, em face ao capital sempre reunido, a manutenção da associação torna-se para elas mais importante que a manutenção do salário. Nessa luta, uma verdadeira guerra civil, reúnem-se e se desenvolvem os elementos necessários a uma batalha futura e, nesse processo, a associação adquire um caráter político.
E, na medida em que as condições econômicas transformaram a massa do país em trabalhadores, a dominação do capital cria para essa massa uma situação comum, interesses comuns; logo, essa massa se torna, face ao capital, uma classe-em-si e ela vai se tornando uma classe-para-si no processo de luta. No embate contra o capital para manter suas condições mínimas de vida; assim, os interesses que defende se tornam interesses de classe e, nesse embate, nessa luta de classe transforma-se em uma luta política. Primeiramente, os trabalhadores formam concretamente uma classe em si para o capital e no processo de luta, vai desenvolvendo a consciência de sua situação, e nesse processo emerge a subjetividade e o reconhecimento de pertencer a um mesmo universo. Assim, primeiramente, ela é uma classe em-si, em termos de organização da sociedade, e no processo histórico transforma-se em uma classe para-si, com a aquisição da consciência frente ao capital. Portanto, nessa processualidade é possível compreender que o indivíduo é o produtor do seu mundo, mas o indivíduo social, em sociedade; o indivíduo não como centro do mundo, mas como topo do mundo humano.
A ciência quando pensa em organizar o mundo sobre o indivíduo comete um profundo engano porque, neste caso, é a subjetividade que começa a organizar o mundo; quando, na realidade, o mundo está organizado independentemente do indivíduo, isto porque, o mundo é o que é, independentemente dos indivíduos. Porém, somente ao mundo humano, a sociedade é que se organiza a partir dos indivíduos relacionados entre si. Daí porque a ontologia grega e medieval é considerada superior às ontologias, porque a questão ontológica era concebida da seguinte maneira: há um universo que subentende uma determinada ordem e na ordem cósmica há um lugar do homem. Assim, conhecer o homem é conhecer, portanto, o seu lugar no cosmos.
Logo, conhecer a objetividade do mundo, a concretude, é conhecer onde se situa, num dado espaço, o homem, e consequentemente, conhecer o homem e conhecer o seu lugar no cosmos. Objetividade é o limite de intelecção objetiva em cada momento. É um fato mais do que natural em face à uma tematização da história no tempo de Platão e Aristóteles. No máximo há o que se poderia pensar em uma estreita cronologia. É a infância da humanidade e a história mal havia começado; é por isso que Marx afirma (Prefácio da Economia Política) “Com esta organização social (capitalista) termina, assim, a Pré-História da sociedade humana”. É, exatamente na organização social do capital que o homem começa a fazer história. Daí é possível entender porque os gregos não podiam ter uma visão da historicidade, e não valorizavam os historiadores, porque eles só descreviam os acontecimentos; consideravam superiores os poetas porque eles eram capazes de tematizar o impossível e não meramente o que aconteceu. O poeta para Aristóteles é mais importante porque ele é uma reflexão das possibilidades; por isso, o poeta, é muito mais importante do que o historiador, porque é aquele que põe a subjetividade, que põe as possibilidades e a processualidade entre ato e potência. De toda essa compreensão do mundo, Marx será o herdeiro e levará adiante essa reflexão.
Na realidade, é fundamental pensar em ato e potência para entender a construção do pensamento marxiano. E a questão que se coloca é a de que se identifica essa perenidade da tematização grega quando se pensa em Marx. Isto ocorre porque há nos gregos uma visão de universalidade; há um senso de objetividade, ou seja, um senso ontológico, mesmo quando são idealistas. Entretanto, os gregos, se embaraçam com a questão gnosiológica, então, o nascimento da ontologia, logo que começa a se expor para compreender o mundo, imediatamente, se embaralha de algum modo com concepções gnosiológicas, apenas nos pré-socráticos isto não acontece, eles conseguiram, até certo ponto se desembaralhar dessa questão.
Esse embaralhamento vai acontecer em toda a ontologia, mesmo a pós-kantiana, porque apesar de negada por Kant que, século XVIII, veda e interdita a possibilidade de construir uma ontologia a nível de sua “Crítica da razão pura”, onde nenhuma ontologia científica poderia ser constituída, embora reapareça a possibilidade de um verdadeiro acesso ao mundo real, mas que não está vinculado às contradições no interior do pensamento kantiano, mas não é também aquela coisa harmoniosa, clara. Kant é um dos maiores pensadores, mas é também o ápice de uma crise e não a solução dessa crise. E, assim, as ontologias pós-kantianas e pós-marxistas, contemporaneamente vivem embaraçadas na epistemologia, negando as próprias possibilidades do saber.
Há uma corrente predominante que é a corrente heideggeriana. Há um livro de um chileno chamado Victor Farias, intitulado “Heidegger e o Nazismo”, onde comprova Heidegger como militante do partido de Hitler. A militância dele era a da pior ala do nazismo, aquela chefiada por Rohm, o braço forte de Hitler. Tanto que, quando Hitler assume o poder manda exterminar essa ala. O livro de Farias mostra que a teoria heideggeriana fascismo-nazi-espiritual leva as questões de raça às últimas consequências. O pensamento heideggeriano se desdobra em várias linhas dominantes nas academias, como por exemplo a de Foucault, heideggeriano francês.
Heidegger é o formulador da ontologia dominante no século XX; uma ontologia pós-marxiana de maior influência no mundo e que é antípoda à ontologia de Marx. O pensamento de Heidegger é comprometido, radicalmente, com o irracionalismo. E essa questão Lukács, já em fins da década de 40, tinha configurado, mostrando claramente, o seu irracionalismo em questão. O combate, a luta contra o irracionalismo é uma tarefa difícil nos dias de hoje, porque Heidegger é o filósofo de maior penetração na universidade brasileira. A maioria vai dizer, reagindo a essa afirmativa, “não misturemos os universos”. Mas é preciso ficar claro que, para alguém poder estabelecer rigorosamente as conexões entre pensamento político e pensamento filosófico vai atingir aquilo que é a determinação social do pensamento; isto porque, as coisas são colocadas como se a filosofia fosse alguma coisa sem raiz, algo que plana em céu azul. Isto está ligado ao fato de que, sem dúvida alguma, a segunda metade do século foi o caminho da desrazão e, é por isto que Nietzsche nunca esteve tão forte quanto atualmente. E Heidegger é a expressão nietzschiana às últimas consequências e com maior explicitação.
O antídoto a isso tudo é a ontologia marxiana. O grande inimigo teórico do marxismo é Heidegger, porque vem dele este confronto, historicamente desfavorável no momento onde a razão, agora tematizada sem mistificação, a que chega Marx, está subjacente a este caudal. Esta é uma crise, não apenas intelectual, mas universal em todos os planos. O mundo em crise faz com que Heidegger seja o crítico espiritual dos tempos atuais. Respira-se hoje, lamentavelmente, desgraçadamente, o clima dominante do nazismo. Isso tudo leva a se pensar que o futuro próximo se aproxima de uma nova idade média, muito mais do que do mundo da racionalidade, da liberdade, da felicidade e do homem se tornar agente da própria história. A nova Idade Média e o novo Nazismo não precisam ser a perseguição clássica, mas um novo obscurantismo, e Heidegger é um filósofo anunciador do obscurantismo, é a batalha pelo retorno ao obscurantismo, pois é a recusa em ver a verdade. Na verdade, é a criação de uma ontologia mistificadora. Vive-se num mundo deletério, num mundo da antiverdade, da anticiência, da destruição, da produção do falso socialmente necessário para garantir a reprodução da sociedade capitalista, independentemente da consciência desses autores: de Nietzsche a Heidegger, passando por Foucault, Castoriadis dentre outros.
Além de se viver num mundo filosoficamente apodrecido é preciso ainda romper também com a concepção que vem dos gregos e que eles não praticaram, que é pensar a filosofia como contemplação intensa, pura e de ficar revisionando tudo. Na realidade, a filosofia é um campo de guerra. É intelectualmente o campo mais agudo da guerra. Assim, a alternativa a Heidegger é Marx. Por isso, não é fácil derrubar o poder de Heidegger e fazer com que a maioria das academias o superem; porque no lugar dele cabe Marx, pois tirar alguém do lugar, ou superá-lo, não significa deixar o espaço vazio, aberto, mas repor alguma coisa porque filosofia é teleologia, é propor.
O aparecimento do que se chama filosofia ocorreu de fato na Grécia, não nasceu no vazio, de repente, como uma gênese do nada; porque nada deriva do nada, e o que se observa no nascimento do pensamento filosófico é uma mutação no emprego da racionalidade; isto é, o surgimento da filosofia é o início da racionalidade; ou seja, a racionalidade em sua constituição – 600 anos antes de Cristo -, apresenta uma contribuição altamente significativa. É a passagem de uma prática cosmogônica – ciência afim da astronomia e que trata da origem e evolução do universo -, para uma prática cosmológica – ciência afim da astronomia e que trata da estrutura do universo. E até esse momento a reflexão grega está fortemente consubstanciada nos produtos mitológicos que caracterizam a sua ideação.
Na questão do mito passa uma discussão muito grande entre o lógico e o racional. Basta dizer que, o mito é algo não racionalmente sustentado. O que não quer dizer que ele seja privado de toda e qualquer racionalidade; ou seja, o mito para simplesmente ser mito tem que ter uma lógica. Ele não está privado de uma logicidade. Entende-se aqui a distinção entre racional e lógico enquanto graus, onde o lógico é um grau inferior ao racional, e o mito tem que ter uma articulação explicável, compreensível. Para ser mito, ele precisa ser capaz de ser dito e compreendido. Se ele não tivesse racionalidade, nem logicidade, seria inexplicável e impensável. De modo que, o mito tem um dado grau de racionalidade que é a logicidade. Mas, ao se explicitar logicamente o mito, no entanto, não satisfaz exigências de comprovação racional, ele não se fundamenta. Uma das sustentações nítidas do mito está, precisamente, na repetição, ou seja, na tradição.
Na passagem do cosmológico não são os materiais que substancialmente se modificam, mas a forma de tratamento desses materiais; ou seja, é a forma de ideação e não os conteúdos do ideário. Na fase cosmogônica há toda uma influência, inclusive, no oriente onde está posta uma tentativa de explicar o mundo pelo seu elemento fundamental, a de saber de que coisa o mundo é feito. As respostas são conhecidas: terra, água, ar, fogo, apeíron…¹⁵. Coisas equivalentes, semelhantes, paralelas, próximas a tudo isso existem em todas as cosmogonias, inclusive orientais.
Esse fato mostra, em primeiro lugar, que entre a cosmogonia e a cosmologia não existe um fosso, como se é levado a crer; ou seja, que entre mito e razão existe um buraco, um vazio, de tal modo que um não pode transitar na direção do outro. As coisas são perfeitamente discerníveis, mas o que se quer mostrar é que o mito não é algo inteiramente despossuído de articulação, nem que a racionalidade não possa trabalhar matérias, objetos, temas que já estivessem presentes no outro campo. Há esta passagem em graus, ela é em si uma mutação fortemente de natureza; isto é, enquanto discurso mítico é oco e simplesmente categórico, afirmativo. A demonstração cosmológica, a lógica de alguma coisa é um discurso probante.
No chamado saber popular, o mito é uma presença forte. Às vezes o mito contém de fato uma verdade, mas não é sustentado por alguma coisa. A passagem da cosmogonia para a cosmologia é que, exatamente neste ponto se altera: afirmar, ainda que dentro de um universo razoavelmente lógico, não é o bastante, é preciso racionalmente demonstrar por mais simples, reduzida e estreita que seja aquilo que é afirmado. E a afirmação acompanhada dessa demonstração obedece às exigências da racionalidade, ou seja, o afirmar, ao ser demonstrado, só pode tolerar que, na demonstração tomem parte elementos que se sustentem racionalmente, ou seja, por si, que não dependa da vontade, da inclinação e nem do desejo de ninguém. É algo que se põe na coerência de si mesmo. O racional não é alguma coisa que se põe porque determinadas regras do discurso estabelecem. Mas é o próprio discurso que, para se desdobrar, se apoia em algo; se apoiou no ontológico, no ser em si.
Os pré-socráticos diante da diversidade do mundo se colocam uma única questão: explicar, encontrar a razão, isto é, o fator imanente que põe o mundo, que faz o mundo. Esta é uma questão ontológica, porque está preocupada com o que é feita a objetividade, ou seja, como são os seres. Diante da nuvem gigantesca, da poeira empírica, é preciso identificar o que une isto. As respostas não são originais em si, porque provenientes inclusive de mitologia orientais: terra, água, ar, fogo. Mas o importante é o modo pelo qual essas respostas são sustentadas, ou seja; é a sustentação identificadora de relações na objetividade que possam ser desvelamento do multiverso, agora então reunificado, compreendido no universo, da explicação encontrada. Todos os pré-socráticos desde Tales de Mileto caminharam nessa direção.
O Uno e o Múltiplo
O que importa ressaltar é saber como os pré-socráticos diante do multiverso buscavam o ponto unitário de explicação; ou seja, foram os pré-socráticos que colocaram essa questão que predomina até hoje, que é o uno e o múltiplo. Na realidade, se não houver nenhum uno não há ciência possível; porque se o mundo é um universo sem qualquer correlação a ciência é absolutamente inútil. Mais grave ainda, a ciência não tem condição de possibilidade. Isto porque, se cada coisa não tem qualquer relação com qualquer outra não há ciência, no sentido de que seja um pensamento que abranja um conjunto dado de fenômenos. Cada coisa só vai ter explicação em si, por ela própria, e, naquele momento. Isto é, dois dias e duas noites, dois relâmpagos e dois trovões não se explicam com a mesma teoria. Então, não há teoria possível e, se fosse possível, ela seria inútil porque não ia se repetir, na medida em que não haveria conexão com aquele saber.
Por isso a questão do uno e do múltiplo não é apenas de erudição filosófica, refletida no fazer totalmente inútil do universo filosófico. É uma questão vital, e que não nasce da reflexão dos filósofos, mas na imediaticidade da vida cotidiana. Isto porque, se a relação do uno e do múltiplo não existisse a vida não seria possível, porque não haveria aprendizado; então, cada dia se nasceria virgem de experiências e se reduziria a retomar, sem nenhuma vantagem, ter vivido mais do que vinte e quatro horas. Logo, não existiria a ideia de desenvolvimento, de progressão humana e o homem seria aos setenta, oitenta, noventa, cem anos o mesmo que a criança que já seja capaz de falar. Assim, se o homem existe é porque existe o uno e porque existe o múltiplo e porque eles possuem relações entre si. Por exemplo: o camponês, a planta, a terra; o que é a terra, o que é a água, o gado, o que é o gado; ou seja, coisas totalmente diferentes entre si. E mais, cada planta é distinta da outra, não se confunde oliveira com um arbusto qualquer, a vaca malhada com a vaca preta, cada uma delas é uma vaca. Mas é preciso relacionar para poder existir, isto é, o múltiplo, o multiverso a poeira empírica que aparece através das manchas empíricas, rigorosamente isoladas se unem na vida cotidiana, na realidade, no concreto. Por exemplo, se se quer uma oliveira, para obtê-la é preciso plantar uma semente, mas para que a oliveira possa brotar é preciso calor e água; se se quer que a oliveira e não uma planta qualquer, toda grama que nascer ao seu redor tem que ser tirada, porque prejudica a oliveira; mas o que não serve ou é prejudicial para a oliveira, no entanto, é bom para o gado que come a grama. Assim, sem a terra, sem água não se tem oliveira, não se tem gado. Dessa maneira, as coisas se interligam. O que era o elemento pulverizado agora se mostra em suas interligações; e mais, na vida cotidiana, a questão do uno e do múltiplo é fundamental; é estabelecer as relações do multiverso e descobrir articulações objetivas; porque não é o sujeito que está atribuindo sentindo de que a água é importante para a planta. Ao contrário, é a planta que diz ao sujeito que sem água ela não cresce, não vive.
A um nível mais elevado de abstração pode-se começar a raciocinar em termos de uma integração, que seja muito maior do que essa relação, mas que não seja visível na imediaticidade. Assim, se as coisas se relacionam entre si, e esta é uma constatação que a vida cotidiana faz constantemente, esta multiplicidade naturalmente faz antever que, no seu conjunto, apesar das diferenças entre si, procedem de relações causais que são comuns.
É daí que vem a ideia de que a terra, a água ou o fogo possam ser o elemento primordial. A concepção é a seguinte: partindo da coisa imediata, o processo vai tornando a resposta cada vez mais geral e abstrata. Se a pergunta é: por que o fogo e não a terra? Porque ele, o fogo, é mais versátil. Quem estabelece isso é Heráclito, e não é uma coisa ingênua. Pode até ser ingênua enquanto resposta, mas não enquanto sustentação. O que é que se tem de mais movimento que o fogo? O ar? Não! No sentido de um em si, do movimento, o fogo é mais turbulento e tem vários graus. O fogo é mais descritível enquanto massa em movimento porque, ao mesmo tempo, que o fogo é alguma coisa, ele é um evanescente.
A identificação do ser
Os pré-socráticos vão num caminho de abstração progressiva, porque são cada vez mais gerais. E, naturalmente, uma resposta ontológica para a pergunta: do que é feito o mundo, tem que ser uma coisa muito geral, algo abstrato porque tem que ser algo que possa ser comum a uma infinidade de diferentes. Até que um pensador chamado Parmênides colocou uma abstração máxima ao afirmar que tudo é ser. E esta ideia é fundamental e vai se manter tanto em Platão, que é superador e complexificador de Parmênides, como em Aristóteles.
É nesta direção que a filosofia grega vai avançar. Platão identifica este ser na ideia, e em Aristóteles o ser será substancialmente substância; isto é, substrato, aquilo que é, aquilo que se sustenta por si. Para Aristóteles só é ser aquilo que vive por si. E a palavra substância, sobre a qual há uma infinidade de polêmicas, não significa outra coisa do que a identidade do ser, aquilo que se sustenta por si. As outras coisas podem existir, mas não são seres. Começa a aparecer a partir daí um dilema entre o que existe e o que é.
Há um ponto que a ontologia ao se desdobrar, já entre os gregos, mas com ênfase muito especial na Idade Média, chega ao seguinte dilema: tudo que é não existe, tudo que existe não é; ou seja, tudo que a ontologia explica, não se refere ao existente. Isto mostra as grandes dificuldades na gênese histórica da ontologia, na intelecção da objetividade. Para compreender essa questão é preciso fazer uma referência a Santo Tomás de Aquino que tenta uma viragem na questão ontológica, partindo de uma ontologia das essências para uma ontologia da existência. É a primeira vez, na história do pensamento filosófico, que ocorre esta tentativa, e isso é uma questão fundamental. Para Santo Tomás o fundamental a ser compreendido é que a existência passa a ter um relevo na reflexão. Este ponto é importante destacar porque, ao se levar a sério a questão ontológica, a partir da tematização marxiana, é preciso estabelecer uma conexão, e uma certa aquisição de Santo Tomás que dá as bases para os pensadores existencialistas na medida em que foram eles que estabeleceram a prevalência da existência sobre a essência; isto é, a concepção de que a essência é constituída pela existência; no caso do humano, a essência é um produto do existir e não uma decorrência da essencialidade humana. Esta é uma ideia importante, mas se esvazia na medida em que os existencialistas perdem a noção de essência e acabam ficando com uma existência que não tem tematização apropriada. No entanto, Santo Tomás, muito antes dos existencialistas, faz sobrelevar a noção de existência a ponto do ser supremo, da existência suprema ser pura existência. Mas, Santo Tomás ao sobrelevar a existência a esse ponto, não rejeita a ideia de essência, mas, ao contrário, tem uma importância fundamental, isto porque, uma explicação puramente pela essência se, não elimina, pelo menos, torna extremamente limitada a ideia de movimento e de desenvolvimento; a ideia de evolução, progresso e modificação. Isto porque, se uma essência é, ela é no campo de possíveis para que se realize ou não. Consequentemente, se se pensa somente por essências o novo é impossível de se por. E a questão vai ser a de como gerar uma nova essência. Isso vai ser impossível. É uma explicação limitadora e não é suficiente para englobar a multiplicidade da transfiguração que o mundo do multiverso apresenta.
É muito importante a aquisição do pensamento de Santo Tomás de Aquino, porque a sua concepção foi a de estabelecer uma ontologia da existência em contraposição ao que seria uma ontologia das essências. Esta seria a grande diferença de Santo Tomás em relação à ontologia grega. Mas é preciso verificar como Santo Tomás articula fundamentalmente Aristóteles. O problema é verificar exatamente como é que isto se dá e o elemento importante a destacar é que na Idade Média, Santo Tomás de Aquino procura gerar uma modificação no tratamento ontológico.
Aristóteles é, claramente, uma ontologia das essências. Tudo em Aristóteles termina por ser uma descoberta da essência, porque para ele, ciência é descobrir a essência das coisas. Em Platão, como o ente é uma idealidade existente num dado momento, então, a essência e a existência são identificáveis. Em Platão, o grande problema é a existência empírica.
É preciso destacar que todo esse torneio que Platão faz não é para fugir da realidade, mas, ao contrário, ele é extraordinariamente um pensador interessado no seu mundo e na intervenção no mundo. Ele não é um contemplador no sentido de um imobilista, ao contrário, toda preocupação de Platão é encontrar a fórmula precisa da Ciência Política. Isto é o máximo para Platão, e todo arcabouço da vida grega explica que a perfeição humana é atuar devidamente no universo da Ciência Política, e todo o arcabouço da vida grega explica que, a perfeição humana é atuar devidamente no universo da política. Então, é preciso pensar Platão como um prático. Tanto assim que se expôs e foi encarcerado e vendido como escravo. Em síntese, Platão é uma ontologia das idealidades. Aristóteles é uma ontologia das essências e Santo Tomás de Aquino é uma ontologia da existência. Tudo isto são explicações de como o mundo é.
No período do Renascimento aparecem as chamadas ciências autônomas, é quando começa a florescer uma linha de investigação em que Aristóteles, por exemplo, se converte em um grande inimigo do saber; isto porque, da perspectiva de Galileu, de Bacon e de Descartes, Aristóteles é a negação da ciência. A questão é saber porque isto ocorre. Ocorre porque Aristóteles é, simultaneamente, um investigador enquanto observador sistemático da realidade, e é, inclusive, um colecionador de objetos da natureza com os quais formou um grande museu. E é, ainda, um elaborador reflexivo.
Há em Aristóteles duas coisas que se articulam: a visualização empírica e a reflexão. É possível até dizer que, em Aristóteles, existe uma teoria do conhecimento empirista e uma ontologia reflexiva. Mas essas coisas não estão harmonizadas são, inclusive, contraditórias ao limite e aos níveis de formulação do próprio Aristóteles; discussão que é feita até hoje. A questão é saber como se articula essa questão. O problema não é querer encontrar nisto nenhum sistema, porque Aristóteles não deu resposta a essa articulação. É como se debatesse nesses dois pontos o tempo todo e, ainda no pensamento de Aristóteles não existe uma solução unitária como no pensamento de Platão e ele demonstrou que não era a solução para entender o mundo.
A pergunta que se coloca é saber quem herda, afinal de contas, ou se vê reforçada a ter uma herança de explicação global do mundo; e essa é a Igreja, porque ela fica com o monopólio ontológico. Num dado momento, um cardeal de nome Belarmino orientou as coisas na seguinte direção: a ciência faz ciência e a concepção global do mundo fica por conta da Igreja. Um não entra no universo do outro. Ele propôs, em síntese, uma dualidade de interpretação do mundo. O ideal de Belarmino é o mundo dual: o mundo da ciência e o mundo da tematização da Igreja, da fé. Portanto, o confronto entre explicações parciais e globais por uma série de acomodações e reformulações históricas, faz com que o saber racional, o saber científico, isto é, a ciência, abandone um dos lados fundamentais da ontologia que é, exatamente, o uno enquanto uno do mundo e não o uno atribuído; enquanto a Igreja Cristã fica com a integração ontológica dessa unidade, pautada em fundamentos científicos, racionais. O resultado dessa dualidade é então: onde há ciência não há ontologia e onde há ontologia não há ciência. Separa-se a ciência da crença; só que essa crença não é pura e simplesmente crença, porque a ela fica entregue a identificação ontológica do mundo. Assim, a ciência empírica nasce abrindo mão de explicar o mundo, e ao abrir mão do mundo, das coisas, fica apenas com os objetos.
A ciência empírica que emerge desse processo, nasce independentemente de qualquer leitura crítica de Aristóteles, para quem a filosofia é uma atividade do entardecer. Por isso para Hegel: “É quando está começando a escurecer que se vai dizer como foi o dia”. Esta expressão hegeliana é sugestiva, mas limita um aspecto importante, não permite dizer também que de algum modo a filosofia antecipa, ainda que abstrativamente, o dia seguinte e que nenhuma ciência pode antecipar e nem lhe compete, porque cabe a filosofia fazer isso. Mas, só a boa filosofia, a filosofia racional, porque a especulativa nada antecipa.
Será exatamente no século XVI que se vai registrar uma gigantesca mutação ontológica, pelo menos a nível dos estudos realizados. Este é o grande momento, século XVI, da mutação, porque a ontologia greco-medieval é cosmológica; ou seja, ela é uma ontologia do mundo, da objetividade, independentemente do fato de que as soluções sejam idealistas. Porém, o idealismo antes de ser um caminho gnosiológico, é um caminho ontológico; isto porque, o idealismo identifica, em primeiro lugar, não gnosiologia, mas ontologia na posição do autor, do sujeito. E, independentemente de ser idealista ou não, a tradição grego-medieval é intelecção do cosmos e no interior dele (cosmo) há um lugar do homem; portanto, nesse sentido é uma ontologia realista, ou seja, do real. A grande questão é saber o que é o real, se ele é o mundo concreto ou o mundo idealizado.
É no princípio da modernidade que se dá a grande virada, e o responsável por ela é Descartes; pois a partir dele gera-se uma ontologia da subjetividade. Pode-se dizer que até Descartes tem-se uma ontologia da objetividade ou da realidade cósmica ou cosmológica, e a partir dele, esta ontologia é substituída por uma ontologia da subjetividade. Não é mais o mundo externo que é apanhado, mas é o mundo interno (“penso, logo existo”) que passa a ser o grande objeto de reflexão. A ontologia a partir desse momento principia o seu caminho de fenecimento. A passagem foi feita da pergunta: O que é o mundo e o que são as coisas, para a pergunta: O que é o homem, ou melhor, o que é a subjetividade?
Para comprovação dessa questão basta lembrar a tese de Descartes: “cogito ergo sum” (penso, logo existo). Assim, a faculdade de manuseamento do pensamento, das ideias, ou seja, o aparato subjetivo passa a ser o grande centro de atenções. É a partir desse momento histórico que a interrogação sobre o estatuto científico de um pensamento passa a estar fortemente presente e se torna progressivamente dominante. Contudo, ocorre que não é a corrente cartesiana a única que vai existir ao longo dos séculos XVI e XVII; mas nesses dois séculos e parte do século XVIII, continuava a existir uma ontologia de tradição medieval que culminará com um tratado de organização de Cristian Wolf. Tanto assim que a ontologia contra a qual Kant se bate é uma ontologia que sintetiza Wolf e Leibniz, o qual, apesar de ser um pensador brilhante não há, pelo menos até o momento, grandes estudos sobre ele, Leibniz. Lukács já recomendava um estudo cuidadoso de Leibniz, porque ele é um dos primeiros a tratar a questão da particularidade.
Assim, surge uma nova ontologia, não mais com o nome de ontologia, porque quando a questão da subjetividade é posta por Descartes – penso, logo existo –, ele não a coloca como se estivesse fazendo ontologia; mas sim como reflexão de fundamentação do saber. Em Leibniz a questão ontológica é colocada como mônada¹⁶; ou seja, a visão de mônada é uma tentativa ontológica de, em lugar do ar, do apeíron dos pré-socráticos, da ideia platônica e da substância aristotélica em determinar o que é o mundo. Com Kant há a passagem do mundo da objetividade para o da subjetividade. Ele é considerado um revolucionário, porque gera uma ontologia involuntária da subjetividade. Hegel vai ser uma recusa muito intensa com relação a Kant e essa questão da recusa é muito maior em Hegel com relação a Kant do que a de Aristóteles em relação a Platão, mas o teor da questão tem um forte parentesco, isto porque, enquanto Aristóteles dizia a Platão que ele duplicava o mundo real com o mundo da ideias, Hegel ironiza Kant dizendo que, se a verdade é pura e simplesmente um acordo da comunidade científica no plano da subjetividade, isto não resolveu nada, pois a subjetividade desfigurou a verdade; porque quem estabelece o que é verdadeiro ou falso é o ente, o real, e não a subjetividade do sujeito como quer Kant.
Assim, na solução ontológica de Hegel, não se encontra uma gnosiologia que anteceda à ontologia, porque ele cria a Fenomenologia do Espírito; mas não é uma crítica da razão pura, é uma narrativa histórica de como a razão se autoconstitui na marcha de sua plenitude. Hegel descreve historicamente como a razão se forma. Logo, a construção de Hegel é uma ontologia da razão. E há, segundo Lukács, duas ontologias em Hegel: uma falsa e uma verdadeira. A falsa é aquela que força uma formulação pelos rigores da lógica. Hegel exagera a lógica e o mundo acaba constituído por ela. A ontologia hegeliana é uma ontologia lógico-ontológica. Esclareça-se que não é a lógica formal de Aristóteles, nem as lógicas do começo do século XIX, que é uma lógica colada ao ente; isto porque a Ciência da Lógica de Hegel não tem um esquema do tipo “organom” aristotélico; nele a lógica não é a forma, mas, sim, a razão do ente. Só que o ente hegeliano é, por excelência, o ente da racionalidade, da razão.
Em suma, em Hegel há uma ontologia da racionalidade e o mundo dos objetos é dissolvido no mundo da racionalidade. Há, assim, uma mitificação, uma razão constituidora do mundo. Hegel repõe de forma contundente a ontologia porque ela é direcionada ao mundo. Hegel é a recusa da subjetividade como um polo a ser organizado para efeito de estabelecer critério de padrão de cientificidade. A razão absoluta hegeliana é do tipo da idealidade platônica. Em Hegel é a razão absoluta que gera tanto um mundo da subjetividade como da objetividade. A estrutura lógica de Hegel é construída para apanhar o mundo que Platão não foi capaz de montar.
Nesta caracterização traçada atinge-se o momento de Marx. Ele é o centro de toda a compreensão, pois ele foi capaz de apanhar o ente, o ser na sua essência.
₁₅ Apeíron: segundo o filósofo Anaximandro, filósofo grego (século VI AC) a matéria primordial, physis, elemento primeiro – eterno, infinito, indivisível e ilimitado – de que todas as coisas se compõem. ₁₆ Mônada: Segundo Leibniz, substância simples, isto é, sem partes, que, agregada a outras substâncias constitui as coisas de que a natureza se compõe.