Capítulo 5
UNO E MÚLTIPLO NA PROCESSUALIDADE HISTÓRICA
A questão do uno e do múltiplo é central quando o propósito é pensar a objetividade, a ontologia. Na experiência diária, cotidiana, insuperavelmente, sempre nos defrontamos com elementos que são singulares, e com uma multiplicidade de coisas fechadas, isoladas em si na visão imediata delas; coisas que aparecem como uma multidão incoerente de presenças: árvores, carros, pessoas, bancos ao fundo, o céu, edifícios, casas, etc, uma multidão de coisas, elementos que mesmo separados se intercruzam sem se ligar na aparência imediata. A multidão dispersa que se pode chamar de poeira dos objetos finitos, o multiverso em caos e em sua incongruência imediatamente dada. O importante a destacar é que neste contexto vivencial, experimental, existencial que na imediaticidade se sofre e que insuperavelmente sempre sofrerá; mas além dessa multiplicidade, dessa poeira, dos próprios objetos singulares um grande número deles não está diverso em relação aos outros. Isto porque eles se modificam enquanto eles próprios, na medida em que são duplamente diversos: a) em relação aos seus distintos; e b) em relação a si próprios no curso dos momentos de si mesmos. Por exemplo, a folha nasce de um verde brilhante que cresce, desenvolve e chega a fase adulta; de verde escuro de repente começa a amarelar até o instante que morre. É a mesma folha sob aspectos diferentes, sob momentos distintos de sua vida. É isso que se chama de diversidade em relação a si mesmo.
A questão que se coloca é como sintetizar o diverso na unidade de um ente que é ele próprio, que tem facetas múltiplas.
Esta questão na tradição greco-medieval era muito bem visualizada e havia uma resposta otimista e sadia. E isto era anunciado claramente: o homem no mundo vive em seu lar; o mundo é o lar do homem, por consequência, este mundo lá está para que nele viva da melhor maneira possível. E assim o homem tem condições de entendê-lo e sobre ele atuar. A escolástica tem uma tradição extremamente positiva neste sentido: o mundo é o lugar de vida do homem que, pelo seu trabalho, compatibiliza-se plenamente humano. Isto é o equivalente do mundo grego em que o cosmos, o universo é um todo ordenado, onde um espaço pertence ao homem e pela ordem geral do universo, é explicar o próprio homem. Os dois momentos desse mesmo processo e quem garante que seja assim, na solução escolástica, particularmente, é Deus. De Deus é a responsabilidade dessa harmonia porque é o agente desta existência. A amarra final da harmonia é dada externamente ao mundo e ao homem. E aí todo problema começa, isto é, a resposta no seu resultado é válida, mas na sua justificativa ela é estranhante, ou seja, conduz o homem a um processo de estranhamento.
Os gregos quando iniciaram a reflexão filosófica imediatamente se indagaram de que eram feitas as coisas. Assim compreender e explicar racionalmente quaisquer coisas desconhecidas é o que se assimila a algo já conhecido. O problema do método analógico é insuperavelmente o primeiro instante de qualquer tentativa de saber. No mundo grego os epicuristas são inteiramente esquecidos e são absolutamente decisivos. São muito mais importantes que os estóicos e, no entanto, são os estóicos que são examinados, pois eles predominaram no mundo romano. Os epicuristas têm até hoje a pecha de gozadores da carne, da vida. Mas não é isto, porque Epicuro e sua escola são a única manifestação de materialismo coerente que não abriu mão de nada no mundo grego. É exatamente por isso que receberam a pecha demolidora e desqualificadora.
No caso de Marx houve desqualificação do materialismo como posição ontológica contemporânea, mas a história não contada é o outro lado da história contada ao qual se contrapõe ela mesma. Numa história onde a escola dialética seja enfatizada, o pensador Goethe seria fundamental. Platão seria mostrado sob outro ângulo, Aristóteles teria mostrado seu lado muito mais verdadeiro do que a história atual mostra. E os marxistas teriam que aprender muito com Platão, muitíssimo com Aristóteles e não simplesmente colocar: “somos contra a metafísica”.
Os pré-socráticos levados pela convicção de que os homens são os deuses de si próprios, avançando mais que os outros numa linha ascendente de abstração, acabam por declarar que esse elemento primordial, esse estofo primitivo do qual são talhadas todas coisas, é Ser; isto é, o substrato de todas as coisas é um Ser. Se todo elemento do real genericamente concebido é um Ser, isso faz com que todas as propriedades essenciais de um ser pertençam a tudo aquilo que é. E, se tudo é Ser, as propriedades essenciais desses entes pertencem a tudo aquilo que for, a tudo aquilo que é.
Parmênides é o pré-socrático que coloca estas questões. Ele não fala de um ser abstrato em geral, de uma abstração em geral, mas fala de tudo que é, das coisas que ele vê imediatamente. Fala do conjunto de elementos que forma o multiverso e sua visualização. Parmênides quando indica a solução de que o Ser era o estofo primitivo de tudo, está dizendo que este estofo é uma das coisas mais concretas que compõe a realidade. Muitas vezes Parmênides aparece como um especulador no ponto de partida do seu poema. Esse poema parte de uma abstração, de uma reflexão já no território das abstrações. É como se simplesmente dissesse: água, terra, ar; mas a diferença é que ele agora põe o abstrato dos abstratos como o responsável fundamental de tudo o que é.
Vale destacar que o passo inicial de Parmênides é um caminho puro e simples que se faz todos os dias. Não é o filósofo que instaura a abstração ou a generalização. Os homens praticam abstrações nos atos mais elementares da vida. Pensar analogicamente, que é a forma mais elementar do pensamento, é produzir abstrações. Isto porque ao dizer “este copo”, diz-se imediatamente uma abstração, ou seja, para este ato tão elementar do pensamento, tão primário de prática da cotidianidade lança-se mão de uma abstração. E o mais infeliz e obscuro analfabeto dirá “este copo”. A abstração decorre da necessidade vital da existência imediata, mas ela é simultaneamente uma generalização, porque quando se diz “este copo”, para pensar nele lança-se mão de todo um universo de copos possíveis e imagináveis do passado, presente ou futuro simplesmente para indicar “este”.
Assim, é impossível designar a singularidade sem, em primeira análise, lançar mão da abstração, isto é, da equiparação que liga esta individualidade (copo) ao conjunto das individualidades do seu gênero. Ou ainda, é impossível apanhar uma singularidade e desvinculá-la do uno primário que a caracteriza na relação com as outras singularidades do mesmo tipo. Assim, o diverso e o uno aparecem postos na prática imediata.
Logo, as abstrações são imprescindíveis, por exemplo: quando se arranca uma banana do cacho, abstraiu-se a banana para si, separa-se a banana das outras. Para ter o momento concreto da banana foi preciso passar por uma abstração concreta. Ou ainda, quando se tira o peixe do rio, abstrai-se o peixe do rio; quando se torna o peixe alimento concreto é preciso submetê-lo a uma operação de abstração. Assim, antes de se ter consciência das abstrações, pratica-se abstrações. Neste sentido até os animais abstraem. A abstração é algo com o qual o mais bruto dos analfabetos convive permanentemente, só ele não sabe disso. Essa é a grande, radical e fundamental diferença; ou seja, a consciência ou não do processo de abstração.
Dessa maneira, usa-se abstração na prática e na teoria. Que teoria? Da cotidianidade. Que é a teoria da consciência da cotidianidade? É a ideação colocada à prática. É uma consciência limitada à experiência imediata, circunscrita, portanto, mesquinha pela sua extensão muito restrita. Por outro lado, tem uma força muito grande, principalmente nos atos laborativos em que o erro é rapidamente corrigido. Ela tem essa vantagem, mas tem também uma imensa desvantagem porque, se de um lado ela dá uma certeza, mas dá certeza de uma coisa muito mesquinha, muito estreita e não facultada para nada que seja mais amplo. Logo, é uma consciência limitada e restrita. As abstrações fazem parte da cotidianidade no seu duplo sentido: de ato concretizante e de ato abstrativante.
Em suma, Parmênides faz uma abstração, pois diante de tudo o que existe ele saca deste conjunto algo que é, e este algo está em todas as existências. Ele não fez uma operação mirabolante, mas ele olhou e indagou: “que é que tudo isso tem em comum? ”. Analogicamente juntando todos os elementos reais do cosmos, colocando todos eles um ao lado do outro e olhando para eles realisticamente, na diferença imensa de um para o outro, o que é que eles têm comum; aquilo que faz com que cada um seja o que é. O que eles têm comum é este é; ou seja, Ser.
A primeira questão que se coloca é como Parmênides descreve o Ser. No seu primeiro poema consta exatamente a descrição dos atributos do Ser. Os atributos do que é, independentemente daquilo que seja, todos os atributos do Ser pertencem à noção de identidade. Os atributos do Ser são os atributos da identidade. O que é identidade? É A = a A (A=A). Parmênides, transfere os atributos da identidade de A igual A, ao Ser; ou seja, o Ser de Parmênides ganha características de identidade. Para Parmênides é da essência do Ser, que tudo o que participa da natureza do Ser, seja. E ele enfatiza o outro lado da questão; ou seja, na medida em que tudo que participa da natureza é, tudo que não participa não é. Assim, todo Ser é, e todo não ser não é.
O ponto de partida de Parmênides é que ao olhar o mundo, imediatamente abandonasse mundo. O seu ponto de partida é o mundo, mas analogicamente começa a atribuir predicados de um campo a outro. Ele começa a atribuir ao mundo aquilo que, em última instância, são relações de identidade, relações de subjetividade. Parmênides é rigorosíssimo nisso. Para que do multiverso infinitamente diversificado, se chegue ao uno do Ser, ele esvazia todos os entes em todas as suas características.
Aristóteles terá um lance do mesmo tipo. Ele esvazia os entes de suas especificidades e o que resta é o Ser. Logo, se é da essência do Ser que tudo o que participa da sua natureza seja, e o que tudo que não participa não-seja. Se tudo o que é Ser, é, então, o Ser é único e universal. Aristóteles esvaziou tudo de tal modo que as coisas, agora não apenas tem como estofo primitivo o Ser, mas todos os seres são um Ser. Toda diversidade não é uma diversidade, mas uma uniformidade. A aparência empírica é ilusória, o que se mostra como o diverso é uno. Assim, a questão parmenidiana é mostrar este embaralhamento, responsabilidade pela solução talentosa, porém absolutamente ineficiente, ou seja, a ontologia é instaurada de forma cognitiva, no caso específico de Parmênides, de forma lógica.
Apanhando novamente a questão do uno e do múltiplo é importante verificar que algumas correntes filosóficas vão dizer que é o pensamento que cria o uno. Este é um dos fenômenos, por exemplo, do universo inintelegível em Platão, para quem a ideia una é que existe. Aí não é mais um pensamento que unifica, mas é uma ideia que preexiste, quando a questão é: como é que o pensamento unifica o diverso? Nesse momento a questão é viciada porque a pergunta convida a entender a unicidade é produto da intelecção e não do próprio objeto.
A questão do uno e do múltiplo no universo da política se coloca da seguinte maneira: como é que se leva a cabo a construção da unidade do Estado, diante da multiplicidade das categorias sociais e dos problemas? Como é possível a unidade do Estado face à clivagem social efetiva, que puxa e repuxa em direções totalmente diversas? Como a multiplicidade de aspectos sucessíveis pode manifestar a unidade permanente?
Reencontrando agora o problema ontológico, o problema do Ser, do devenir e do Ser, o uno e o múltiplo estão presentes. Ora, se se tomar esses diferentes campos e se fizer uma tematização isolada de cada um deles é muito provável que, o estabelecimento da unidade vá ser entregue ou à cognição ou à avaliação; isto é, a unidade será sempre o resultado de um ordenamento do subjetivo. Assim, a questão que se coloca é: como é que o enfoque precisa ser feito, de modo que não escape aquilo que é em sua unidade e multiplicidade, no próprio real?
Nesta linha de raciocínio é que a solução parmediana acabou por fazer que o Ser, aquilo que é não existe, e aquilo que existe não é Ser; quando na realidade nota-se definitivamente que, se o uno e o múltiplo constituem um problema é porque o uno é o Ser e que, não obstante, o uno sendo o Ser, ele é numeroso e diferente, ou seja, múltiplo. Como é que isso se coloca? Parmênides acabou por fazer que o Ser fosse exclusivamente uno, por isso o existir é contraposto a Ser. Assim, a ontologia que deve dizer aquilo que realmente é, acaba por produzir uma reflexão pela qual o que de fato existe se dissolve. É este fenômeno que se indica como resultado de um embaralhamento entre Ser e conhecer e, na imediaticidade entre o Ser e o saber.
Vale esclarecer que, se o poema de Parmênides é o primeiro instante de uma tematização desta natureza; ainda que os outros pré-socráticos tenham abordado a questão, mas de fato um tratamento bem mais consciente do Ser só vai aparecer com Platão e se desenvolver com Aristóteles. E os textos efetivamente responsáveis pelo surgimento da ontologia tomada classicamente são: “O Sofista”, de Platão e o livro “Metafísica”, de Aristóteles. É aí que se tem um mapa-múndi da ontologia clássica.
Em Platão e Aristóteles esse embaralhamento da questão Ser/conhecer, entre Ser/saber aparece de forma completa. Em geral, os intérpretes dizem que o problema do uno e do múltiplo em Platão e em Aristóteles, com uma consciente tematização ontológica, ganha seu significado máximo no plano da inteligibilidade. Neste instante, o viés gnosiológico de toda a interpretação se manifesta.
Chama-se atenção para o fato de que o embaralhamento entre ontologia e gnosiologia (Ser/saber) em Platão e em Aristóteles aparece como fundamentalmente configurada em termos de que ela é aquilo que se põe para que a cognição se torne fundada. Isto retira da questão ontológica seu aspecto fundamental. A ontologia em Aristóteles, sem dúvida, é pensada como uma “Ciência Primeira” e a partir qual ciência de modo geral se torna possível.
Nesse quadro a questão que se coloca é: Será que a ontologia só pode servir como base para efeito da ciência? Que ela venha cumprir este papel tudo bem, mas há uma dimensão que tende a escapar: a ontologia é base porque ela já é uma apreensão fundamental porque se põe como apreensão de um real. A ontologia não é simplesmente uma condição de possibilidade do saber, ela já é um saber. Um saber constituído pelo em-si das coisas. A ontologia é importante porque ela é um reconhecimento do real, e o produto deste reconhecimento pode exercer as funções de base do conhecimento. Esse saber é antes de tudo ontológico, prático enquanto base da atividade, para depois ser ontológico-crítico, como base da ciência. Essa forma de colocar a questão, transgride fortemente toda a linha de interpretação da história da filosofia, porque a ontologia tem sempre aparecido como a base para o saber, ou seja, uma ciência primeira que é base para as ciências particulares. Isto é uma forma de colocar o problema pelo viés gnosiológico. Esta forma de colocar o problema não foi introduzida por Kant, porque em graus distintos está presente desde de Parmênides.
As críticas colocadas por Platão e Aristóteles têm que a questão do uno e do múltiplo alcança plenamente o território da inteligibilidade, do conhecimento, do saber, da cognição. Mas, a questão da inteligibilidade assim entendida é a questão primeira. Porém, na ontologia a inteligibilidade não pode ser a questão primeira, mais do que isso, à inteligibilidade é facultado ontologicamente pela identificação da unidade de um sujeito que também seja cognitivo. Mas não que seja cognitivo antes de ser a sua unidade.
E de acordo com o prisma gnosiológico quando a questão ontológica é predominantemente gnosiológica houve uma evolução, um avanço. Porém, isto é uma acentuação do embaralhamento que, sem dúvida, existe em Platão e em Aristóteles. Porque não é a prevalência ou o predomínio da questão gnosiológica na ontologia, que é o seu ponto de ascensão, mas ao contrário é seu ponto de confusão. A separação dos dois momentos é que é a evolução; isto porque, o homem enquanto homem preexiste ao sujeito cognitivo. E para que possa haver o sujeito cognitivo há necessariamente que existir, anteriormente, o indivíduo homem.
É no “Sofista” que Platão lança as bases da ontologia como ciência e recupera a posição parmenidiana onde, no fundo, aparece uma unidade indissolúvel que é Ser e Saber; ou seja, Ser e Pensar. Esta unidade redunda em características extremamente problemáticas, porque o uno do ser é formal e estático e se revela, consequentemente, impotente como razão diante da diversidade, ou seja, diante do múltiplo do mundo. Este é o território dos idealistas, mas Platão adotando a posição parmenidiana da unidade do Ser e do Pensar faz, no entanto, a crítica a Parmênides dizendo do formalismo, da estaticidade desta forma de apanhar a questão. O que é uma racionalidade impotente diante do mundo, dos fenômenos, da experiência imediata. Com relação a esta crítica Platão é antecedido pelos sofistas.
É a partir da crítica que Platão faz a Permênides, com relação a questão do Ser e Saber que nele se instaura a ontologia; porque mais uma vez, como em Parmênides, de uma forma muito mais desenvolvida, vai aparecer no “Sofista” aquilo que se pode chamar de primeiro argumento objetivo, isto é, que “a ontologia é determinação do real”. No caso de Platão, o real é igual a ideia; portanto, Ideia não é algo subjetivo. Para Platão a verdade é, fundamentalmente, ontológica. Isto é, a verdade pertence ao real, só que o real é a ideia, consequentemente, o Ser da unidade do Ser em Parmênides o qual transforma o pensamento de Platão numa tríade: Ser = Ideia = Verdade. Se há uma ciência do verdadeiro é da ideia.
No Ser de Platão não há uma unidade homogênea e indiferenciada como em Parmênides, mas há uma pluralidade ordenada. Em vez de um Ser inigendrável e incorruptível, o que ocorre em Platão é um plural articulado. Parmênides expulsou a diversidade e Platão faz a crítica dele pelo fato de sua concepção ser imóvel, estática e o esforço platônico é de encontrar uma pluralidade ordenada, articulando consequentemente, a unidade da diversidade.
O grande dilema entre os gregos é a oposição entre movimento e repouso. Este problema é enformado pela ambivalência do logos, e pela inspiração parmenidiana do ser racional que leva Platão a facultar os elementos para uma afirmação dinâmica do Ser. Se se tem agora uma afirmação dinâmica deste Ser, ele é mo vimento e repouso. Esta é uma solução novamente da lógica da linguagem. Porque se o Ser é movimento e repouso, o que é que se tem como predicado? Tem-se movimento e repouso que são pluralidades. No sujeito tem-se o Ser que não se decompõe e aparece como a unidade dos elementos mais simples: movimento e repouso. Portanto, o uno está no sujeito e o diverso no predicado. É com esta figura que Platão ultrapassa claramente Parmênides.
Porém, se a oposição movimento e repouso está dentro do Ser, ao contrário do Ser, é impossível porque ele compreende o todo plural. Isto não quer dizer que essa dialética seja semelhante à defendida por Marx, mas ascende da opinião à episteme, do empírico ao conceito, é um movimento dialético. Hegel também era dialético, mas nem por isso impediu de ser idealista. É preciso ter muito cuidado com relação a ser dialético ou idealista.
Esta questão é importante porque houve mais de meio século em que formulações de responsabilidade do marxismo levaram a uma visão esclerosada, do ponto de vista do pensamento, que só serviu para empobrecer o marxismo. É através da oposição relativa dos integrantes do Ser, que nele participa, e que cada ideia revelada pelo logos, é um entrelaçamento de relações fundamentais. No pensamento de Marx as relações têm uma dimensão fundamental, e a própria definição de ser idealista de Platão tem, nas relações fundamentais, um papel decisivo.
Assim, o Ser para Platão é um conjunto de relações fundamentais enquanto ideia. Cada ideia implica sua identidade, não mais no sentido estreito de Parmênides, mas como uma perfectibilidade inteligível. Como ela, a ideia, é uma perfeição da razão e uma identidade, ela implica uma alteridade, isto é, um conjunto de outras ideais de modo que, cada Ser é um Ser entre seres. A perfectibilidade do ser revelado pelo logos não depende da inteligência para ser, para existir.
E na medida que cada ideia é uma perfeição na identidade, e como Platão está rompendo com a concepção de que o Ser é uno e universal, esta perfeição implica em outras perfeições em sua identidade, ou seja, cada ideia implica o seu outro: a ideia perfeita do bem e a ideia perfeita do mal, da beleza e do feio, da justiça e da injustiça etc. Assim, identidade e alteridade são as primeiras relações de todas as concepções que participam. As relações de identidade e alteridade são hipostasiadas em Platão, isto é, levadas ao máximo como idênticas. Todas as ideias são investigadas na identidade e no seu contrário.
O caminho da constituição ontológica procede, grosso modo, dos seguintes passos: diante do múltiplo sensível, a cabeça seleciona as coisas que pertencem ao mesmo grupo, ao mesmo gênero e abstraindo os atributos essenciais desses entes, fixa as características fundamentais. Essas características estão configuradas com a abstração. Assim, se se tem diante de si ene (n) cadeiras ou ene (n) cavalos, retêm-se para efeito da construção dessa operação, os atributos que fazem com que os cavalos sejam cavalos e as cadeiras sejam cadeiras. Não se despreza, intelectualmente, nem os atributos acidentais, mas entende-se que são acidentais. Têm-se diferentes gêneros e se se levar adiante a abstração, se destes grupos assim abstraídos continuar a abstrair elementos que se tornaram acidentais para esta nova investigação vai-se, paulatinamente, construindo abstrações cada vez mais elevadas até o ponto em que se forem eliminadas características que diferenciam um peixe de um vulcão e retiver delas aquilo que resta após toda eliminação o que vai sobrar desses elementos? O que resta deles é o fato de ser o que é ele, um ser. Assim, a ontologia é o estudo do ser, dos seus atributos, aquilo que o define enquanto tal.
Por outro lado, é importante esclarecer que a abstração é um processo de construção mental, mas não é algo que está situado por conta própria em algum lugar do universo. A abstração não sobrevoa o mundo, ela é um produto da subjetividade, mas não é a subjetividade que cria os atributos do Ser, ela os reconhece.
Enquanto Parmênides, uma vez estabelecida a palavra Ser, equipara analogicamente ser a identidade e raciocina sobre a identidade conferindo ao Ser os atributos da identidade, Aristóteles não está fazendo isso, mas o caminho especulativo começa a se gerar com ele, só que é uma especulatividade que tem grande parcela de abstratividade; abstração é uma coisa imprescindível. A questão da abstração se embaraça nos três: Parmênides, Platão e Aristóteles, mas com ênfase em Aristóteles para quem o mundo é o mundo real que está sendo pensado. Para Aristóteles, quando o ser humano cria uma abstração não está produzindo o sentido do mundo, mas está reconhecendo o seu sentido. Porém, a abstração se complica extremamente, pois de um lado é nitidamente empirista e de outro, leva a articulação racional a níveis muito elevados.
Estes dois momentos, de partir do empírico e de enveredar pela reflexão abstrativamente são duas coisas fortemente presentes em Marx.