Capítulo 6
CONSTRUÇÃO ONTOLÓGICA DO PENSAMENTO DE MARX
Há uma convicção, mais ou menos ampla, de que Marx formulou seu pensamento a partir de três fontes: a) a filosofia alemã (Hegel), b) a economia política clássica (Adam Smith e David Ricardo); e c) a política francesa. Esta forma de dar origem ao pensamento de Marx e esclarecer como é que se constituiu o pensar dele, derivou até mesmo de uma anotação que fez Marx numa certa altura em épocas juvenis em que o socialismo alemão, o socialismo dito científico devia respectivamente, na filosofia, na economia política e política a Alemanha, a Inglaterra e a França uma certa porção daquilo que formava o seu pensamento.
Isso foi interpretado como se Marx estivesse dizendo: “devo aos filósofos alemães especialmente a Hegel, aos políticos socialistas franceses e aos economistas ingleses uma parcela do meu próprio saber”. E isto posteriormente foi desdobrado com uma afirmação categórica, no primeiro momento de Kautsky e mais tarde com Lênin que se baseia em Kautsky de tal forma que acabou se consolidando, se consagrando as três fontes. Isto é falso, mas falso como momento verdadeiro e não simplesmente uma incorreção.
Na verdade, Marx não é tributário nem de Hegel, nem de Smith e Ricardo, nem dos socialistas franceses. A ideia que forma a partir do texto de Lênin e de Kautsky é que o pensamento de Marx é uma espécie de síntese dessas três fontes, ou seja, Marx teria tomado o melhor da filosofia alemã, da economia inglesa, socialismo francês sintetizando estes melhores, formando o seu próprio pensar. Isto não corresponde a verdade, porque o pensamento de Marx não é a junção sintética dessas três componentes. O que houve, na realidade, foi uma simplificação decorrente da incompreensão, fundamentalmente ontológica do problema constitutivo do pensamento de Marx; isto porque, Lênin em sua tematização não comete simplesmente um engano, mas apanha o problema de forma demasiadamente tópica, o mesmo ocorreu com Kautsky, de tal forma que Marx seria um momento sintético e superador desses três pensamentos.
A questão fundamental é que Marx é um pensador visceralmente original, não no sentido de que ele criou um sistema, mas no sentido de que ele é a instauração de um novo saber. Isto porque, Marx não somou partes de Hegel, dos economistas e dos socialistas; manteve com os três um momento genético no seu próprio pensar num dado tipo de relação. Marx não se apropriou de parcela desses três pensamentos. Não é uma apropriação de uma parte retirada do corpo destas concepções e articulada depois sob uma nova forma. Marx não é tributário nem de Hegel, nem dos demais e a sua superação não é pela soma dos três. O que há em Marx é uma relação intelectual com essas três concepções que gera, pela elaboração marxiana, um novo fato teórico. De maneira que, o que vem à tona é um corpo científico pela instauração de uma nova filosofia e pelo enveredamento bem delimitado, ainda que seja a parte maior de sua obra, de dar constituição de certos departamentos científicos, particularmente ligados à elucidação do fenômeno capitalista.
Mas é preciso ressaltar que tudo isso é um processo muito articulado, uma coisa na outra, sem que a explicitação seja articulada. De modo que, falar nas três fontes, tal como faz Kautsky e Lênin, ao apontar o problema numa grave superficialidade. Com isto não se está dizendo que Lênin, em particular, só tenha cometido um equívoco ou um erro brutal. O que há é que, para a época e no contexto em que escreve, é uma afloração que tem seu mérito, porém é um erro pensar como aquele expõe a questão.
A relação de Marx com essas três teorias referidas é de crítica e pela crítica da afirmação de um novo pensamento. Marx critica cada uma delas e esta crítica é do mesmo tipo, e com isto se instaura uma nova ontologia que é uma base de irradiação para o restante; não no sentido que a partir daí reduza, como em formas filosóficas clássicas, um sistema partindo de um princípio, semelhante ao que, por exemplo, Descartes que a partir do “cogito” forma todo um edifício sistemático ou como a busca hegeliana a partir de uma fenomenologia da razão que alcança a razão absoluta e daí uma dedutibilidade para as diferentes áreas.
A natureza filosófica da instauração marxiana é nova e com isto o próprio procedimento é novo, de tal maneira que o sistema é rejeitado. Hegel é o último sistema em filosofia e Marx é a inauguração de um pensamento que não admite o sistema. O sistema de pensamento de algo ou de alguém, da perspectiva de Marx, significaria simplesmente a articulação ao final dos tempos de todo conhecimento do cosmos. Seria a articulação conveniente de um conhecimento conquistado, conhecimento que não pode ser conquistado num momento do tempo e daí para frente manter-se enquanto tal, ou seja, Marx, é entre outras coisas, um pensador contra a ideia de sistema. O que não significa condenar um pensamento sistemático ou sistematizante; isto é, um pensamento que é congruente em suas partes. O que não significa, por outro lado, que o mundo é composto de parcelas autônomas e isoladas do múltiplo, de tal forma que a explicação para um grupo de fenômenos seja estranha por completo à explicação de um outro grupo. No sentido de que não há integração de um saber unitário, porque em Marx o uno e o múltiplo, realmente convivem, mas o uno não é o único, ele se põe em diversidade sem que isto faça com que uma parte seja incongruente em relação às outras.
Vale destacar que o sistema de pensamento é a ideia de que a um momento dado é possível sintetizar um saber que seja a intelecção definitiva. Ao menos isto produz a seguinte concepção: se a um dado momento se tem a noção científica final que produz a intelecção do universo examinado, isto significa que o mundo examinado e adquirido sob a forma de saber, é mundo que estanca, que não tem mais devenir, que não mais se modifica. Assim, a ideia de sistema é, de algum modo, sob alguma forma, subjacentemente a convicção de um fim da processualidade, ou seja, um fim da história.
Marx não busca e nem pode buscar, a partir de sua concepção, nenhum sistema e qualquer retorno à ideia de sistema é um passo para trás. Não há o desvendamento final do mundo, de tal maneira que o sistema possa representá-lo a nível teórico, porque o mundo é permanentemente uma demanda de inquirição, é um desafio permanente à intelecção. Não é a compreensão de que o pensamento de Marx seria dado apenas por determinado momento histórico e daí para frente teria que ser substituído, porque o fato de não ser sistemático não significa que a instauração teórica de Marx não tenha a potência de gerar o itinerário pelo qual os novos e velhos problemas sejam examinados de início ou reexaminados, a fim de que a construção do conhecimento prossiga. É evidente que, para novos problemas, novas realidades, Marx pode trazer à luz um esclarecimento fundamental, mas não trará o conhecimento concreto daquela nova situação na medida em que não a examinou e ainda mais, mesmo naquilo que ele trabalhou, em nenhum dos assuntos tratados ele os esgotou. Talvez muito particularmente no campo filosófico, mas nem no território da crítica da economia política, no exame do capitalismo, a questão é dada por ele como fechada. Esta questão é comprovada pelo fato de que ele morre na expectativa de reescrever o primeiro volume d’O Capital. Tinha reescrito a sua tematização quando da tradução francesa e chegou a dizer que as modificações introduzidas tinham valor intelectual independente da edição alemã. Assim, a crítica que é feita a Marx por aqueles que defendem que seja um pensamento definitivo, é uma criação de monstro para poder combatê-lo. Sem dúvida alguma, em nenhum instante, um marxista sério disse que o pensamento de Marx era algo pronto acabado. O que se diz é que sua aquisição teórica é até nossos dias, o ponto mais avançado da elaboração teórica da humanidade. Isto não significa que esta implique que não há mais nada a descobrir, mas que na base das descobertas das formulações de Marx, deve-se necessariamente progredir ad infinitum, não para chegar a um sistema, mas a uma elaboração que vai esgotando paulatinamente as inquisições do real e que novos problemas vão se pondo.
Diante desse quadro o problema que se coloca é: nunca há uma aquisição definitiva a partir de Marx? E a resposta é: Claro que sim! E, já há nisso uma dialética entre relativo e absoluto, mas já modificados em relação a acepção convencional de relativo e absoluto o relativo é um momento do absoluto e o absoluto de um dado momento é o relativo de um momento subsequente, isto porque, não tem sentido isolar um conceito do outro, mas só tem sentido quando um está em relação com o outro. Assim, simultaneamente, um pensamento é absoluto e relativo. É relativo como um momento de um absoluto em constituição, só que esse absoluto na sua constituição é infinito, isto é, o absoluto é uma linha de tendência, nunca um momento de chegada.
Além do que, relativo e absoluto especialmente no campo teórico, são apenas momentos articulados de um só processo. O relativo é um dado instante ou dado limite de uma construção sem limites e o absoluto não é apenas o fim de algo, o todo, é uma totalidade a cada momento e como tal, é um absoluto relativo. Isso não é só no pensamento, mas ocorre também nas coisas. Basta pensar, por um instante, no indivíduo: sem dúvida os homens são mortais e como tais finitos, mas na intensidade de suas ações, volições, sentimentos, efetivações etc, são infinitos. A sua finitude é uma infinitude intensivamente compreendida, ou seja, a infinitude não é apenas uma extensão sem limites, mas pode ser e é uma multiplicidade na simultaneidade. Basta pensar na tentativa de descrever um indivíduo esgotando as suas características, é impossível. O indivíduo não é finito, mas é um infinito entre limites. Parece um paradoxo, uma contradição, mas é nesse sentido que a questão se coloca.
O pensamento de Marx é simultaneamente um absoluto enquanto base para ir à frente, é um momento que demanda a continuidade e porque o absoluto é relativo. Isto não é um jogo de palavras, ocorre precisamente assim com o pensar, ou seja, o pensamento é lacunar. É impossível um pensamento que não tenha lacunas. É supor um pensamento realizado ao nível dos absolutos, como se a realidade tivesse estancado. É também um relativo porque muita coisa deixou de ser examinada; várias coisas aconteceram depois de Marx e muitas outras coisas na atualidade que é possível de ser agregado àquilo que ele já colocou e não podia ter colocado, por duas razões: ou não tinha elementos para colocar, ou não visualizou.
Por outro lado, é preciso não esquecer que o pensamento de Marx é algo de muito grandioso, mas não é alguma coisa fechada. É um pensamento sistematizante que não se fecha e que não almeja o sistema, porque não almeja o ponto final na construção do saber. Além de considerar que não existe um ponto final na construção do saber, e como não existe ponto final na construção do homem, inclusive, na construção de sua subjetividade, de sua humanidade. O homem é infinito na sua intensidade e como gênero, ou seja, o indivíduo enquanto indivíduo é infinito na sua intensidade, na medida em que é ser genérico, ou seja, o indivíduo é como uma vaca além das vacas, apenas um singular. O indivíduo é ele mesmo enquanto todas as vacas do mundo sintetizado nele próprio. A alma do indivíduo é o conjunto das almas dos outros, porque se é, consequentemente, um absoluto nessa intensidade.
É nesse momento que entra a questão de uma hierarquia do homem, dos indivíduos: tanto mais alto estamos nessa hierarquia, quanto mais somos a síntese e a projeção máximas desse desenvolvimento humano. Por isso é que os homens não são humanamente iguais, há superiores e inferiores. A inferioridade e a superioridade dos homens são reais. Só que não se nasce com uma essência que nos faz inferiores ou superiores, como na concepção das diferenças naturais de Aristóteles. Mas, nós nos fazemos, e nós nos fazemos não em condições que escolhemos, mas em condições que a sociedade põe. Mas podemos enquanto individualidade, até certo ponto, superar a própria sociedade, estar acima dela. Na maioria das vezes estamos abaixo dela e uma certa parcela majoritária fica na média desta sociabilidade, dessa generalidade.
Em suma, Marx não é uma somatória de três contribuições, mas é um passo à frente em relação a elas. A relação de Marx com esses três componentes é da mesma natureza. É precisamente a crítica ontológica a cada uma delas. Não é um novo arranjo de três pedaços já produzidos, mas ele é a crítica de três fatos teóricos da mais alta relevância do seu tempo e, pela crítica, é o encontro de novas verdades que articuladas entre si forma o núcleo de um novo saber, Pois entre uma superação que simplesmente rejeita o morto e fica com o vivo de alguma coisa é um passo, mas isto que é retido não é pura e simplesmente aquilo que está lá, mas sofreu a crítica, ou seja, sofre a mediação de uma crítica que o modifica. Exemplo: primeiro, a grande intenção de Marx ao fazer a crítica da economia política de Smith e Ricardo não é escrever uma nova economia, mas é fazer a crítica da economia política, pois a economia política é a ciência do econômico baseado no trabalho, enquanto aquilo que faz a crítica da economia política que é o que Marx faz, a descoberta no mundo histórico efetivo de que o trabalho faz e desfaz. É descobrir que o uno do trabalho não é o uno, mas é múltiplo. Segundo aspecto é que Smith e Ricardo estão interessados em descobrir como é que as nações desenvolvem suas riquezas, mas a crítica da economia de Marx está interessada em determinar como é que se supera a forma de criação de riqueza, como se anula a riqueza no sentido capitalista. Porque a riqueza pretendida não é mais no sentido de uma apropriação de bens materiais, mas é a riqueza do indivíduo para o qual os bens materiais são absolutamente necessários, mas são apenas instrumentais; enquanto em Smith e Ricardo a riqueza é o objetivo, em Marx é a mediação.
Terceiro aspecto, o socialismo francês é fundamentalmente uma espécie de extensão radicalizadora da ideologia do iluminismo, e o socialismo de Marx não é uma extensão do pensamento burguês, mas a colocação de alguma coisa que anula todo o sentido da política. O socialismo francês é o aperfeiçoamento da política e o socialismo de Marx é a nulificação da política, ou seja, superação da política e do Estado.
É interessante fazer um parênteses para analisar um pouco a questão da superação (aufhebung: supera conservando o que está vivo, rejeita o que está morto e, pela conservação do positivo das partes, articula um novo pensamento). Este conceito foi usado fartamente por Lênin. Sem dúvida, é importante mencionar a ideia de aufhebung, mas não basta porque é uma “aufhebung transfiguradora”, não é apenas a retenção de algo vivo, mas é a transfiguração do próprio elemento vivo e às vezes a sua modificação radical. Como é que Marx opera isto? Não há nenhuma obra integral onde isto se apresente. Tudo isto é feito através de um conjunto de textos que dão os elementos, sintomas e resultados disso, sem que nunca tenha sido escrito alguma coisa nessa direção.
O período formativo de instauração ontológica do pensamento de Marx são os anos que vão de 1843-1847. Na realidade, poder-se-ia encurtar um pouco esse período quando em 1845 ou a uma certa altura de 1846 formulou as Teses Ad Feuerbach. Neste momento, o desenho está configurado. Se diz 1847 para facilitar a fixação cronológica e para fazer coincidir com uma declaração dele quando, em 1859, no Prefácio à “Contribuição a Crítica da Economia Política”, Marx refere o próprio itinerário formativo dizendo que a primeira obra que de modo global o pensamento dele e de Engels foi exposto, ainda que de forma polêmica, foi n’A Miséria da Filosofia. Exposto não quer dizer formulado, pensado. Mas há documentos hoje – As Teses Ad Feuerbach – que mostram que a visão de conjunto já é anterior e que são do mesmo tempo da redação d`A Ideologia Alemã.
É importante ressaltar que os Manuscritos Econômico-Filosóficos que são de 1844 é a obra onde se encontram formulações ontológicas marxianas que estão além de uma ontologia dos objetos sociais, históricos; isto é, elementos de uma ontologia geral dos objetos naturais. Há uma passagem nos Manuscritos que Marx afirma o seguinte: “Todo ente é objetivo. Um ente (wesen) não objetivo é um não-ente (um wesen); ou seja, um absurdo”. É preciso esclarecer que a palavra alemã wesen pode significar não-ser, mas ela tem um sentido pejorativo e também de absurdidade. Basta estas duas pequenas frases para definir por inteiro uma ontologia de ordem universal, porque dão a ideia, ou seja, dão as duas dimensões fundamentais: a ligação e o desvinculamento das ontologias tradicionais. Marx diretamente formula estas asserções sem que faça, em nenhum texto, uma passagem que consubstancie uma antecedência de tratamento no plano gnosiológico. E as afirmações são feitas sem que elas tenham qualquer vínculo com qualquer dimensão gnosiológica, assim, são na realidade o instante, o momento em que no pensamento marxiano, a afirmação ontológica se instaura.
A instauração da ontologia em Marx não é precedida de uma cobertura fundante no plano da gnosiologia e nem se apresenta articulada ou emanharada com algum nível de preocupação gnosiológica. Ela é puramente ontológica, e Marx prossegue na tematização: “Todo o ser objetivo não é auto suficiente, não vive por si só, mas demanda relacionar-se com outros seres objetivos externos a ele”. Isto, para efeito dos seres vivos, é nítido das plantas aos animais superiores como o homem. Porém fica um pouco mais rarefeito quando se pensa nos seres inorgânicos, mas eles próprios têm, visivelmente, também uma dimensão desta natureza. Por exemplo: os rios maiores se alimentam dos rios menores, ou seja, dos afluentes; a chuva alimenta os rios maiores, os menores e os lagos; logo, a terra para ser fértil precisa de calor e umidade e assim por diante. Não se poderia imaginar a terra, a água, o ar, puramente existentes, sem relação com mais nada.
A ontologia marxiana se firma diretamente sobre o real concreto, através de um conjunto de lances comprovado. Por exemplo, o ser social, em especial, tem carências; ele carece de outros que estão fora dele, pois um ser sem carência é inobjetivo, é um deus, mas como Deus é inobjetivo ele não existe. Marx não faz essa afirmativa, mas obviamente essa questão fica configurada. Só um deus seria auto-suficiente, na medida em que toda objetividade não o é. Nessa concepção, Deus é uma inexistência; isto porque um pensamento subjetivo ou místico não pode constituir o Ser. Com isto, Marx esclarece objetivamente, radicalmente as formas de procedimento da ontologia tradicional, retendo, no entanto, o sentido da afirmação da objetividade da ontologia. E isto reaparece na sua obra A Miséria da Filosofia onde está colocado que: “Todo Ser é resultado de um movimento, ou seja, todo ser é histórico”, consequentemente, verifica-se que a ontologia marxiana em geral tem dois princípios básicos: todo ser é objetivo e todo ser é processualístico, ou seja, histórico, no sentido da processualidade dos entes; isto é, no comportamento das categorias fundamentais do ser.
Assim, o mais radical em Marx é o fundante ontológico em relação a Deus; porque para Marx, a ideia não é um ser, mas o produto de um Ser em sua existência ontológica, ou seja, racional. O Ser marxiano não teria ideia se ele não fosse relacional. A relação dos seres produz algo que é próprio de um dado tipo de ser. O pensamento e a subjetividade são próprios do homem e, para Marx, não poderia haver relação se não houvesse pensamento. Para ele os animais não se relacionam, somente os homens o fazem. Isto no sentido de uma relação para si, porque não há relação da montanha com o ar, por exemplo, nem da chuva com a água do rio; isto porque, relação não é mecanicismo, é acima de tudo processualidade.
Logo, a única coisa que fica excluída, já nos primeiros momentos da ontologia marxiana é o transcendental, porque Marx não faz crítica da religião, basta observar o texto da Introdução de 1857, na primeira frase afirma: “Na Alemanha, a crítica da religião chegou no essencial a seu fim. E a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica”, na Alemanha, é claro. Em Marx, a crítica da religião não é uma coisa decisiva, é uma consequência. Para deixar claro, lançando mão dos gregos com relação a questão da contraposição sensível e a inteligível. O inteligível para a ontologia marxiana é impossível; isto não quer dizer que é impossível a inteligibilidade, mas isso é uma outra coisa, porque não é um mundo dos seres.
Em Marx tem-se uma ontologia da história. Os seres na história é o ponto de partida. O que não é história não é ser, porque ele afirma, categoricamente: “Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas. São pressupostos reais dos quais não se pode fazer abstrações a não ser na imaginação. São os indivíduos vivos, sua atividade e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação”. Tal afirmativa está clara na “Ideologia Alemã”. Assim no ponto de partida de Marx não há nenhuma valoração pré-estabelecida; porque o ponto de partida são os indivíduos vivos, dotados de suas características constatáveis; assim, ele não faz disso nenhum pressuposto gerador de alguma consequência necessária, obrigatória. Diferentemente do pressuposto como o mundo das ideias, como em Platão, que é muito inferior e muito mais problemático, porque imediatamente põe diante dos olhos alguma coisa que é extremamente difícil de admitir. Enquanto que, em admitir que existem “homens vivos” não há dificuldade alguma, não contém valoração retórica, porque é possível de provação.
É por isso que, quando Marx vai fazer a crítica de uma daquelas três produções de mesmo nível de sua época no plano teórico, não fica vasculhando como prioridade a base gnosiológica, o método, as consequências políticas etc, pois parte da constatação na história e não como ponto de partida empírico. Não é a manifestação da poeira do multiverso, é sempre de um complexo. Porque quando diz que parte de indivíduos vivos, está afirmando que parte de um complexo onde mil fatores estabelecem a unidade. Assim, não parte de uma ideia, de um abstrato qualquer, nem parte de uma mancha empírica, mas de um complexo que é um pressuposto extraordinariamente legítimo. Marx não clivou, não limitou nada, daí a sua superioridade ontológica; nem ele podia estabelecer de antemão todo um conjunto ontológico, porque seria partir de um abstrato a priori. O que Marx faz é tentar descobrir a ontologia na efetividade, na objetividade, na realidade concreto.
A ontologia nasce sem a possibilidade de se realizar. Ela só pôde se realizar com Marx; não que seja mérito de Marx, no sentido de que inventou, mas, ao contrário, foi preciso que houvesse uma evolução da humanidade, não só na história do pensamento, mas na história da explicação da realidade, porque realizar a ontologia é precisamente dizer o que é. E até Marx, o mundo nunca foi algo como uma totalidade que pudesse mostrar claramente o seu passado, o seu presente e a sua dinâmica; bem como as possibilidades de superação desse presente. É a partir do momento em que a razão se coloca para além do capital que o todo passa a estar circunscrito e que é possível apanhá-lo e compreendê-lo. Isto ocorre porque antes o mundo era parcial, por mais completo que fosse possível de ser observado. É somente quando o real começa a explicitar na prática uma razão superior à razão do capital; portanto, uma razão superior a razão de Hegel, já que Marx entendia que a concepção hegeliana como a razão máxima do capital. É somente aí que o mundo se tornou real, ou seja, se tornou um todo real; isto é, foi quando a objetividade e a efetividade ganharam seu ponto de maturação e onde a ontologia ganhou a possibilidade de ser real e não aquilo que aconteceu no passado quando a ontologia era uma proposta correta, verdadeira que a cada momento se perdia em descaminhos, exatamente, pela incompletude do mundo.
Isso, não quer dizer que o mundo na época de Marx fosse completo, mas era um mundo que desenhou um todo que até então não tinha desenhado; porque só é possível apanhar e compreender a ontologia na medida em que a consciência for uma consciência post festum, inclusive, seguindo Hegel para quem “a filosofia é o fazer do anoitecer, depois que a coisa se deu é que ela aparece”. Neste sentido, então, o caráter noturno da filosofia, que é uma ontologia, poderia ocorrer de fato.
Em Marx o segredo não está no método, está na coisa, no objeto. Não existe, em Marx, um método no sentido de uma receita formal a ser obedecida, mas são os momentos mais abstratos da ontologia. É por isso que a metodologia pode fundamentar o conhecimento, porque se extrai alguns elementos auxiliares; isto porque é na coisa que é que o sujeito é capaz de extrair a coisa fora de si. Por isso há um enorme papel da subjetividade, da ideação, dos conceitos, mas como capacidades, propriedade e categorias da mente. O conhecimento não é gerado pela intelecção, mas é algo objetivo e processual.
Na concepção de Marx, é o real que instaura a crítica, e não é uma subjetividade, nem uma idealidade; por isso quando Marx critica parte de uma factualidade apanhada em seus complexos e contra as quais são esbatidos os textos que são analisados. O real é o ponto de partida, mas é o real historicamente constatado; isto é, o real em sua realidade e não um real valorizado por uma peneira onde se diria: esta história é boa ou esta história é má. É o real enquanto em face do qual não se intervém para seccioná-lo, e um interventor que fica com uma parte e deprime ou expulsa a outra. É o curso dos acontecimentos tomados em sua efetivação.
Quanto ao papel do investigador neste primeiro momento se resume em constatar e em toda constatação já está presente a possibilidade de um viés, porque quem constata tem que tomar o cuidado de constatar ao limite do efetivamente processualístico. Isto é, aquilo que efetivamente decorreu. Não é tomar acriticamente uma factualidade, uma empiricidade e a partir dela contrapor a um discurso de um autor qualquer que está sendo criticado. É uma verificação na generalização, ou seja, essa diversidade já vem ganhando uma articulação a nível do seu efetivo essencial.
Por outro lado, vale esclarecer que cada elemento isolado pode ter a sua importância e seu significado, todavia, este conjunto funciona como o ponto de partida de um dado, mas não é dado empírico, não é mancha tópica de um real, mas um real enquanto apanhado em sua estrutura interior. Não é necessariamente como algo já efetivamente compreendido. No caso de Marx, o ponto de partida é dado pela história. É alguma coisa que é recolhida como em um telão em que minimamente um sujeito investigador interfere. É um historicamente dado como acontecido que funciona como uma espécie de critério objetivo de verdade.
Assim, rigorosamente falando: a constatação histórica é feita a partir de critérios objetivos de verdade e não de critérios subjetivos. E por isso que não há em Marx nenhuma implantação preliminar de qualquer tipo de discussão gnosiológica. Além do que há que admitir que o sujeito investigador face a essa história ele possa recolher, a um dado nível, a realidade tal como ela é, ou tal como ela se apresenta. Isto ocorre no plano lógico, no plano efetivo de como isto atua e milhões de formas ocorrem. E ver como isso ocorreu em Marx é impossível, porque ele não transmitiu. O que logicamente se percebe é que, ele contrapõe o real ao texto que agora é seu objeto. É como se ele colocasse para se contrapor a coisa ao objeto. A coisa, a tematização filosófica ou científica, ou política de uma reflexão que ele está examinando e o objeto aquilo que quer apanhar.
A crítica se instaura a partir da história, ou seja, a crítica é demandada pela realidade do existente. É o momento histórico do investigador que demanda a crítica porque a tematização existe e é o produto teórico posto; não atende às exigências de compreensão e explicação do momento. E não atendendo as explicações do momento, permite perceber que não atende também as explicações para fora desse mesmo momento. Assim, não é um fundamento teórico, mas é um fundamento do real; ou seja, é o real que funda a possibilidade de uma ação teórica contra um produto teórico. Relembrando que o único pressuposto teórico de Marx são os homens vivos em sua ação. Ele não parte do que pensam ou pensaram os homens em sua ação, ou do que pensaram os homens sobre os homens em ação. Parte, sim, do que os homens vivos em ação no presente e no passado fizeram para examinar, por exemplo, a teoria de Smith e Ricardo, Hegel etc. Isto porque o fundamento teórico é, exatamente de algum modo, a posição gnosiológica. Em Marx, os produtos teóricos (a filosofia, a economia, e a prática francesa), foram examinados a partir de um confronto que é a história. Não há pressuposto teórico, mesmo porque para Marx não existirá jamais uma filosofia da história, porque uma filosofia da história subentenderia um construto mental que resultasse num sistema de intelecção da história enquanto história. E a história não existe enquanto história, ela não é um objeto; pode-se ter uma teoria da história dos homens ou uma teoria da história da natureza, mas enquanto expressão de análises científicas que resultou em verdade sobre análises feitas, mas que não geram determinação da lógica ou das leis da historicidade enquanto um sistema conceitual fechado. A história, no caso dos objetos sociais e também dos objetos naturais, é a sequência processualística das categorias dos entes. O que se admite como filosofia da história é uma divisão simplesmente acadêmica.
Marx contrapõe o existente ao representado, como aquilo que realmente verifica isto ou não verifica. Isto porque a ontologia é uma afirmação fundamental, mas ela não esgota o assunto. A partir dela, deixando o campo ontológico é que Marx parte para o exame concreto de situações concretas; isto é já ciência, mas de base ontológica. A crítica ontológica põe em debate, no caso de Marx, a filosofia, a ciência e a prática política do seu tempo. Marx conclui que a melhor prática, o melhor pensamento filosófico e o mais elaborado do pensamento científico não são mais resolutivos para aquele momento, estão esgotados, estão superados. Eles não são mais capazes de permitir a reflexão e a efetivação que o ser social naquele instante demanda; ou seja, a representação e a atividade de melhor qualidade de seu tempo é inadequada, e insuficiente para dizer da realidade do seu tempo.
Logo, para Marx, não será mais com Hegel, com Smith e Ricardo e com os ideólogos socialistas franceses que se pode ir à frente; e se o pensamento é insuficiente, esta prática não é res lutiva. Por isso é que, em Marx, deriva uma nova posição filosófica; uma nova posição original. Um novo pensar. Na realidade a nova posição de Marx surge como originalidade e como crítica. É aí que se configura o chamado novo materialismo, porque o que Marx instaura é um processo novo do materialismo, se colocando contra o idealismo da filosofia alemã, Marx repõe uma posição materialista. Mas o materialismo não é retomado na forma anterior. Este materialismo deve ser pensado, em primeiro lugar, ontologicamente e não gnosiologicamente. A questão que se coloca é: como é que se concebe concretamente o mundo sob um novo materialismo, e o que é o novo? É importante observar que duas coisas Marx ensinou do materialismo: 1) as coisas se explicam por elas próprias, ou seja, a explicação é imanente; e, 2) as coisas não se explicam nunca pela transcendência; não é transcendente em função de uma subjetividade transcendente; nem é transcendente a partir de uma ontologia que culmina na garantia da possibilidade do saber, pela harmonia que existe entre o homem e o mundo, assegurada pelo transcendente, isto é, Deus.
Esta é uma explicação que também não é a explicação no plano empírico, na medida em que Marx afirma que o materialismo antigo era demasiadamente abstrato; porque aborda, apanha a questão, fica apenas no tópico do fenômeno, porque apanha apenas as relações mais elementares; enquanto o novo materialismo não é um empirismo, mas ao contrário, ele é marcado por explicação da estrutura global do objeto, da coisa. E como a coisa não fala, o pesquisador, o filósofo fala pela coisa, mas é a coisa que dá o conteúdo da fala. Então, o materialismo tem duas características: a) a explicação imanente, e b) a subjetividade ativa que estão presentes na concepção; isto é, em termos sintéticos articulando as duas partes: as coisas se explicam por elas e se transformam pela atividade do homem.
Assim, se a base é ontológica, de que natureza é a ontologia de Marx? eis a questão. Ela não é especulativa, nem sob a forma do racionalismo clássico de Hegel; não é um construto da racionalidade, ao mesmo tempo não é empirista e não é o sensível imediato de Feuerbach; mas se a natureza dessa ontologia é em-pírico-histórico, o empírico não é mais fenomênico, mas significa o concreto existente historicamente.
Finalmente, a base ontológica sendo histórico-concreta, a filosofia instaurada por Marx, é baseada na história do pensamento e que a filosofia nasce baseada, exatamente, na gênese efetiva do ser social. A ontologia nasce na base daquilo que a atividade do homem é, antes de mais nada, ou seja, a produção e reprodução material de si próprio. Uma filosofia baseada na história é, portanto, baseada não em conceitos sobre uma concepção global de história, mas é uma filosofia baseada na atividade auto fundante do homem se autoconstituindo. É este, em suma, a instauração ontológica do pensamento de Marx.