Capítulo 7
CAMINHO GNOSIOLÓGICO NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
A partir do século XVIII, na teoria do conhecimento, dentro do qual é gerado o saber e dentro da qual a verdade é o buscado, o processo tem sido o da relação sujeito/objeto. Em Platão, o objeto já é o nome da coisa na relação cognitiva. Objeto é a coisa formada na relação cognitiva. Fala-se o tempo todo em objeto e, na maioria das cabeças, o objeto é aquela coisa na relação cognitiva; portanto, não é mais nem ele, o objeto, nem a subjetividade do sujeito, mas o resultado dessa relação. Assim, a relação cognitiva dissolve o objeto. Então, a partir de um princípio gnosiológico, é dissolver o princípio da realidade. Essa é a forma de produzir conhecimento desde o século XVIII. Neste sentido a questão é mais grave do que fez Platão, para quem a realidade está na ideia; e se a ideia é o ser em objeto de cognição, nem a ideia para o sujeito é. Isto é muito difícil de compreender porque a ideia é sempre o que está dentro da cabeça, mas para Platão a ideia está fora da cabeça. Por isso não é preciso indagar onde é que fica o mundo das ideias no sentido de estabelecer um espaço geográfico sublunar. Mas essas alusões que estão na República de Platão, são metáforas. O mundo das ideias de Platão é o universo inteligível; só que o inteligível não é concebido como subjetividade cognitiva. O problema é que se vive num movimento cognitivo há mais de duzentos anos, porque tudo é relação cognitiva. E isso é uma distorção monumental a partir de Kant. É a liquidação da coisa no sentido do objeto; ou seja, ganha-se o objeto e perde-se a coisa. Porque o problema kantiano, por vias diversas de Platão, configura o que pode ser chamado de idealismo subjetivo; se para Platão a verdade é uma exterioridade do homem, idêntica ao ente, em Kant, a verdade é uma mera construção da subjetividade. O que se tem na concepção kantiana como ponto de chegada e que surgiu com Descarte é o seguinte: a verdade é uma organização da subjetividade.
Em Kant, chega-se ao ponto máximo, na medida em que o elemento fundamental, essencial, decisivo da coisa, o seu fenômeno, aquilo que faz dela ela própria é inacessível cientificamente. A coisa em si é uma abstração. É algo que habita as coisas e que, no entanto, cientificamente, é inabordável porque na teoria do conhecimento de Kant, faz com que só se possa conhecer alguma coisa a partir da organização, ou seja, através das faculdades mentais do sujeito, dos dados empíricos. Assim, são as formas a priori do entendimento que organizam as experiências.
Em Kant o fenômeno não é aquilo que acontece na objetividade, mas já é aquilo que resulta da relação do sujeito com o objeto na experiência. O fenômeno é um pedaço que pertence a um mundo externo e a um mundo interno na subjetividade. Nasce o dia, surge o sol, a claridade se faz; desce o sol, a noite se faz e a claridade desaparece. Estes fenômenos não são coisas da natureza. Assim descritos já são o produto da relação de um observador com acontecimentos que se põem; porque a subjetividade em Kant é aquela que torna possível a experiência. Isso é uma coisa que já ocorria com Descartes e será um eu desta natureza que Kant chamará transcendental porque, para ele, a experiência não é possível.
Em suma, no idealismo que vem de Descartes e culmina com Kant, o sujeito é o organizador do mundo. Portanto, o conhecimento não apanha o mundo, mas é a ordenação subjetiva do mundo. Isto é a negação total, do ponto de vista ontológico. O mundo objetivo, enquanto tal, é sob esse aspecto inabordável. Enquanto contrariamente há uma elevação extrema da importância da subjetividade, recusando-se aos chamados estatutos da cientificidade, que não passam de tematizações sobre a subjetividade. Além do que, se a reflexão principia pela investigação das possibilidades do saber, ela investiga exatamente o que não pode resolver naquele momento. Ela distorce todo o aparato científico porque parte da subjetividade e não da objetividade, da coisa em-si.
Outra questão importante que se coloca é que ninguém pode se dirigir a Marx esperando encontrar um conjunto elaborado onde a questão ontológica, gnosiológica e infinitas outras estejam ali já prontas. Aliás, Aristóteles talvez seja ainda mais lacunar, porque essa ideia de que existe um corpus aristotélicum é uma pura aberração gerada na Idade Média. Em Aristóteles não existe um conjunto de obras prontas, desenhadas, acabadas; o que existe é um conjunto de anotações, fragmentos, isto é, uma cesta de pedaços que os organizadores articulam de modos diversos, colocando este ou aquele pedaço onde as lacunas são numerosas predominantemente, em relação às partes efetivamente elaboradas. O que em nada diminui o pensamento dele.
Este quadro está vinculado ao fato de que se tem a concepção de que o pensamento tem que ser como uma bola, onde cada segmento vai colar um no outro, de tal forma que a esfera apareça em sua integridade. Não há nenhum grande autor assim. Passa-se a ideia de um corpo com braços, pernas, nariz, orelhas tudo no lugarzinho, quando nos grandes autores a coisa é um todo uno, mas como aflorações, pedaços, penosamente colocados. Enfim, a busca disso é muito mais áspera do que se imagina.
É a partir do século XVI que se formula historicamente a possibilidade da individuação, porque antes não há o que pensar em termos de indivíduo; isto porque o indivíduo nada mais é do que uma singularidade como uma planta, um coqueiro, um boi, um cão etc. Quando a individuação surge, ela aparece com um florescimento real de possibilidades, e a ênfase sobre o sujeito cresce e é uma das componentes da ciência da Antropologia, mas com o risco de tornar a individualidade o centro organizador do mundo. Ora, é bem verdade que são os homens por suas ações que constroem o mundo dos homens. Isso não nega, de modo nenhum, a ideia de classes sociais, porque a classe não é outra coisa senão o conjunto dos indivíduos. Não existe uma classe antes dos indivíduos, o que marca o nascimento de uma classe é, efetivamente, a aquisição da consciência. A subjetividade é o que torna uma classe, classe. Agora, não resta dúvida de que seja o indivíduo o produtor de seu mundo; mas é o indivíduo social, em sociedade. É o indivíduo não como centro, mas como topo do mundo.
A Antropologia quando pensa em organizar o mundo sobre o indivíduo comente um grande engano, porque neste caso é a subjetividade que começa a organizar o mundo quando, na realidade, o mundo está organizado independentemente dos indivíduos humanos. Neste sentido é que a ontologia grega e medieval era muito superior, porque como é que é concebida a questão nesses períodos: há um universo que subentende uma determinada ordem e na ordem cósmica há um lugar do homem. Então, conhecer o homem, portanto, é conhecer o seu lugar no cosmos.
Com relação a historicidade, Marx tem uma formulação, não sobre os gregos, mas em geral sobre a possibilidade do saber em que explica perfeitamente essa questão nos gregos; isto é, como os gregos viam a história, e a questão que Marx coloca é: por que é que os gregos não podiam ter uma visão de historicidade? O desprezo de Aristóteles pelos historiadores é algo muito interessante, porque para ele superiores são os poetas porque problematizam o impossível e não meramente o que aconteceu, como fazem os historiadores. O poeta é importante porque ele é reflexão das possibilidades. Neste sentido o poeta é muito mais importante que o historiador; o poeta é aquela subjetividade que se põe. É muito importante a ênfase a essa questão aristotélica, porque há muito disso em Marx, inclusive, ato e potência, conceitos fundamentais no pensamento de Aristóteles. Por outro lado, é importante esclarecer que o nascimento da ontologia, a não ser nos pré-socráticos, logo que começa a abrir um pouco as asas – isso vai acontecer com Parmênides -, imediatamente ela se embaralha, se embaraça e de algum modo tem concepções gnosiológicas.
É na Idade Média que a Igreja se vê forçada a ter uma herança de uma explicação global do mundo, nesse momento é que se põe claramente uma posição dual, ou seja, a ciência faz ciência e a concepção global do mundo fica com a Igreja. A dualidade do mundo é concebida pelo Cardeal Belarmino, que coloca a questão da seguinte maneira: o mundo da ciência e o mundo da tematização da Igreja. Estabelecendo-se um confronto entre explicações parciais e globais que, por uma série de acomodações e reformulações históricas, fazem com que o saber racional, o saber científico, abandone um dos laços fundamentais da ontologia, o que é o uno enquanto uno do mundo e não o uno atribuído. A Igreja cristã fica com a integração ontológica desta unidade pautada, não em fundamento científico, mas em dogmas.
Assim, onde há ciência não há ontologia e onde há ontologia não há ciência. A ciência empírica, dessa maneira, nasce abrindo mão de explicar o mundo. E o ideal Belarmino de conhecimento do mundo continua até hoje e a maioria das pessoas o adota sem saber quem ele foi. Logo, a ciência diz uma coisa e a fé diz outra. São mundos distintos que se articulam sem se acomodar. Se for possível acomodar, tudo bem, se não, mantêm-se as duas (ciência e fé) na dualidade.
Dessa maneira a ciência empírica desde a sua origem vai abrindo mão do mundo, das coisas para ficar com os objetos. Mas isso tem uma grave implicação, porque se se abre mão do mundo, abre-se mão das coisas, porque se fica só com a ciência. Fica-se, então, com os objetos, mas com os objetos particulares. Esta questão vai ganhar seu ponto máximo com Kant. A ciência se afasta dos preconceitos ontológicos medievais, mas junto com os preconceitos ela se afasta por questões, realmente compreensíveis, de toda e qualquer ontologia. Todavia, esta ciência que está nascendo é muito importante; porque a ciência não se caracteriza apenas por abrir mão de uma intelecção global do mundo, este é seu lado frágil, mas perfeitamente compreensível nas circunstâncias do seu nascedouro. A ciência não nasce no laboratório, ela vai ao laboratório, uma vez nascida, pelo impulso social que a demanda.
Então, a ciência emerge e se põe não pela lisura de uma idealidade, mas na rusticidade das possibilidades contraditórias de um momento dado. A ciência não é o campo laboratorial das invenções, para sua isenção ela acarreta o conflito propulsor e redutor dos eixos fundamentais do seu tempo. Isto porque, não se desligar do mundo é carregar o mundo, inclusive, com suas mazelas. Por isso não há que lamentar que a ciência não seja uma tigela de águas transparentes. Ela é o que pode ser a cada momento no conflito dramático dos instantes históricos reais. A ciência não é um ideal a cumprir, mas é um objetivo a construir. O objetivo da ciência é conhecer o ente enquanto ente. É por isso que em longos momentos históricos, como esse em que se está vivendo, em que a verdade não interessa a ninguém, se constrói uma ciência da falsificação e ela passa a ser o padrão de ciência contemporânea. É a ginástica da subjetividade num malabarismo, numa ginga que se afasta inteiramente dos objetos, se distancia da realidade concreta.
Assim, a ciência do Renascimento nasce nesse dilema, com esta subdivisão, com esta rachadura e na medida que nasceu, quando nasceu, e através do que nasceu, não poderia ter sido de outra forma. A ciência nasce em um mundo medieval que finda, no advento de um novo mundo que começa, na hibridade de um confronto onde, por exemplo, um Aristóteles é rejeitado porque ele é, naquele momento, o antiexperimentalismo. Isto está claro nas primeiras passagens d’O Discurso do Método, de Descartes. Em Bacon é ainda muito mais agressivo e em Galileu é explícito. Mas ao se libertarem de Aristóteles para poder fazer ciência de experimentalismo, independentemente se estavam corretos ou não, os cientistas abriram mão também de algo que pudesse, de fato, ser a perspectiva mais rica da própria ciência. Porque naquele momento era impensável, apesar de suas genialidades, reter o que havia de absolutamente fundamental em Aristóteles com a reordenação e o remanejamento do que seria a ciência naquele momento. Isto demonstra que o homem não é uma essência que, no caso do conhecimento, vai linearmente constituindo um saber. E não sendo nada disso, não significa ao mesmo tempo que não seja um ser racional e que a razão não seja um instrumento fundamental da existência.
Dessa forma a ciência empírica nasce independentemente de qualquer leitura ou crítica de Aristóteles, para quem a filosofia é uma atividade do entardecer, pois é quando está começando a escurecer que se vai dizer como foi o dia. Esta expressão de Hegel é sugestiva, mas ela limita um aspecto, não permite dizer também que, de algum modo ela antecipa, ainda que abstratamente, o dia seguinte e que nenhuma ciência pode antecipar e nem lhe compete fazer. Mas a filosofia que antecipa é uma boa filosofia, a má filosofia nada antecipa. O critério para saber se alguma corrente filosófica tem real valor é medir o humor dela e a antecipação que ela oferece. Se ela não tem humor e não antecipa nada é uma corrente ruim, independentemente de outras considerações. Por exemplo, o positivismo é uma filosofia de mau humor. Isso parece brincadeira, mas não é, porque o humor, a ironia, a crítica é crítica, e a filosofia sendo porta voz da técnica se amesquinha numa ciência particular.
É nisso que consiste o conhecimento nesses mais de duzentos anos, é a inclinação predominante das tendências filosóficas de torná-la uma disciplina particular dentre o conjunto das outras. A filosofia não é ciência. E dizer que ela não é ciência não diminui o seu valor, ao contrário, se eleva porque ela não é idêntica à ciência. A partir do Renascimento a passagem foi da pergunta o que é o mundo e o que são as coisas, para a pergunta o que é o homem, ou melhor, o que é a subjetividade. Basta lembrar Descartes “Cogito ergo sum” (penso, logo existo). Assim, a faculdade de manuseamento das ideias, do pensamento, ou seja, o aparato subjetivo passa a ser, a partir daí o grande centro das atenções. É, então, a partir desse momento que a interrogação sobre o estatuto científico do pensamento passa a ser fortemente presente e se torna progressivamente dominante.
E ainda, Descartes, ao tratar a subjetividade, trata do universo gnosiológico e não mais ontológico; porque ontologia subentende um olhar para a coisa e Descartes passa a olhar para subjetividade. E ao eleger o fundamental a ser investigado, ele faz com muito empenho por finalidades cognitivas e não por finalidades ontológicas, ainda que esteja praticando uma ontologia. Isto porque quando afirma: “penso, logo existo”, ele extraiu a existência do pensar e assim inverteu a equação: “pensamos porque existimos”. E essa coisa de Descartes provar que existe porque pensa, é uma inversão ontológica, mas o que fortemente se afirma é o lado gnosiológico. Assim, em lugar do cosmos, o mundo dentro do qual está o homem, agora é a subjetividade que passa a interessar. Tem-se essa subjetividade em linha ascendente e crescente culminando com Kant.
Considera-se o pensamento kantiano uma revolução, ou seja, a referência, a ideia dos dois mundos: um mundo antes e outro depois dele. É exatamente isso, passar do mundo da objetividade para o da subjetividade. Mas é preciso saber que não há qualquer revolução em Kant, porque na realidade ele expressa uma violenta crise, inclusive, não apenas no território da ciência; porque surge uma ciência do tipo newtoniana e que a filosofia não tinha sustentação para ela. Mas, ao mesmo tempo, estava surgindo uma transfiguração das ciências biológicas e Kant fecha os olhos para tudo o que acontece na biologia e fica apenas no território da física. E a partir disso faz uma descrição dos procedimentos de Newton e isto é “Crítica da Razão Pura”. Com isso, gera, involuntariamente, uma ontologia da subjetividade.
Esta ontologia involuntária da subjetividade criada por Kant são formas, a priori, do entendimento. Formas a priori da sensibilidade. Ele está fazendo uma descrição, no seu campo restrito, do universo da sensibilidade e da intelecção. Portanto, está dizendo como é que as coisas são. Simultaneamente, tudo isto vai na direção de mostrar que a ontologia é impossível. Então, é uma descrição de procedimentos científicos e a “Crítica da Razão Pura” é uma ontologia involuntária que entra inúmeras vezes em contradição com as outras críticas. Kant é bombardeado muito fortemente por seus discípulos imediatos e pelas outras críticas que o sucedem na imediaticidade. E a ideia de reverência a Kant que existe hoje em dia não existiu na época da publicação da “Crítica da Razão Pura”.
Na sequência da obra kantiana, as outras críticas enveredam pelo caminho da prática. Nos filósofos alemães, a prática é o território da prática. E a ação, a atividade humana subentende parâmetros para o bom procedimento. A questão é o que fazer e o que legitima uma ação. Neste momento toda tematização kantiana gnosiológica cede lugar a uma tematização do procedimento humano real, não científico, particularmente, na crítica da faculdade de julgar que é muito mais interessante do que a “Crítica da Razão Pura”. E as figuras imediatamente posteriores a Kant mostram, realmente, desde logo uma inclinação mais favorável a essas outras obras.
Não se está referindo aos grandes filósofos como, por exemplo, Fichte, porque ele é uma radicalização de Kant no sentido ético e de responsabilidade subjetiva extrema. Fichte tinha grandes aversões a certos elementos do pensamento kantiano porque, em primeiro lugar, lhe era desconfortável ver certo tipo de desdobramento; não queria que as coisas cursionassem nessa direção; e, segundo ele, não desejava ver a obra kantiana como alguma coisa que fosse um desdobramento, não de tanta exacerbação desta abolição individual. Assim, se Fichte é uma radicalização, Schelling já é a abertura do irracionalismo diretamente ao conservadorismo. É o reacionarismo mais desbragado, e o que vai acontecer com Hegel é que há nele uma recusa muito intensa em relação a Kant. E isto não tem sido acentuado adequadamente. Há um verdadeiro escárnio de Hegel em relação a Kant. Muito mais agressivo e mal-educado do que houve de Aristóteles em relação a Platão, mas o teor da questão tem forte parentesco; porque enquanto Aristóteles dizia a Platão que ele duplicava o mundo com o mundo das ideias, Hegel ironiza Kant dizendo que se a verdade é pura e simplesmente um acordo da comunidade no plano da subjetividade, isto não resolveu nada porque a subjetividade desfigurou a verdade.
Em suma, a verdade para Kant é um acordo subjetivo da comunidade. É o critério que hoje está em vigor e rege todos os órgãos administrativos da universidade do mundo. Mas, é preciso saber que a intersubjetividade jamais pode ser sinônimo de objetividade, no entanto, é tomada como tal. Intersubjetividade é formulação sob critério gnosiológico, e objetividade é algo do território da ontologia. Então, qualquer tipo de comunidade, para estabelecer o seu consenso, dá o modelo do que é verdade científica contemporânea. Os congressos, encontros, seminários ocorrem para reunir os tais para que em um consenso se forme e a verdade científica seja colocada, e ela é uma questão de consenso das subjetividades presentes. Mas é preciso destacar que, quem estabelece o que é verdadeiro ou falso é o ente e não os estudiosos do ente. A verdade importa à história e à sociedade como um conjunto, isto é, como vida humana em marcha, e todo consenso da verdade científica, isto é, os critérios de avaliação sobre a verdade científica são rigorosamente articulados sob o idealismo subjetivo.
Não se encontra em Hegel uma gnosiologia que antecede a ontologia. Ele cria a Fenomenologia do Espírito que não é uma Crítica da Razão Pura, mas é uma narrativa histórica de como a razão se autoconstitui na marcha de sua plenitude, descrevendo historicamente como a razão se forma. Então, é uma ontologia da razão, porque configura a reafirmação plena de uma ontologia, reconvertendo a Teoria do Conhecimento de Kant a uma Fenomenologia do Espírito; isto é, a uma história da razão autoconstituinte.
Depois de Hegel, tem-se Marx que instaura sua ontologia a partir de críticas ontológicas: da crítica ontológica da filosofia especulativa; ou seja, da razão especulativa; da crítica ontológica à ciência do seu tempo, na forma à Crítica da Economia Política; e, da crítica ontologia da prática ou razão política. E a morte de Marx significa automaticamente a morte de toda preocupação do caráter ontológico do seu pensamento. Diante disso o caudal neo-kantiano e neopositivista é que está em curso, e a partir da segunda metade do século XIX estende o seu domínio e a ontologia é uma figura desprezada, rejeitada e negada pela nova prática filosófica, com exceção do pensamento tradicional da Igreja.
Então, diante desse quadro, o começo do século XX tem o perfil filosófico de um domínio absoluto do critério gnosiológico. E o século foi atravessado sob este domínio, pois a maciça dominação gnosiológica da segunda metade do século XIX e princípio do século XX é uma verdadeira realização deste ângulo e cujo clima é o que se respira.
Assim, até a linguagem é toda corrompida pelo critério gnosiológico. Este critério vem do ângulo de um sujeito que quer conhecer o objeto e para tanto justifica a possibilidade desta apreensão. Logo, tudo deriva de uma preliminar que é o estabelecimento do chamado estatuto científico do discurso. A gnosiologia tal como é praticada, tal como dominante há mais de duzentos anos. É uma gnosiologia da organização da subjetividade no sentido de um ordenamento do mundo. É preciso destacar que a questão gnosiológica não é uma questão instauradora, mas derivada.
O discurso dos últimos tempos, para além dos duzentos anos, é uma inversão, independentemente das modalidades metodológicas porque de algum modo é o sujeito que sempre organiza a realidade, seja um empirista, seja uma racionalista desta ou daquela natureza. Isto porque, se se colhe dados empíricos e depois se tem o equipamento teórico conceitual com a qual se organiza os dados, o que está acontecendo é a subjetividade que está dando a ordem do mundo, ou seja, a ordem da realidade. A realidade estudada e apresentada não é mais a realidade, porque o produto obtido é um ordenamento subjetivo de dados empíricos.
O resultado desse processo, ou seja, o resultado desse tipo de ciência não é a realidade, mas é a subjetivação desta realidade. Toda coleta de dado empírico sob um equipamento conceitual é a ordenação da realidade subjetivamente efetuada. Ao conhecer o real se conhece a lógica do seu ser, portanto, do seu devir. A superação do capital não é uma propositura da subjetividade, mas uma constatação subjetiva de uma possibilidade objetiva.
Em suma, gnosiologicamente os critérios de verdade são sempre subjetivos, ao passo que, ontologicamente falando, os critérios de verdade são objetivos.
A ciência contemporânea em todas as faixas vai tendendo a não possuir nenhum critério objetivo de verdade, por exemplo, o neopositivismo. A ordem do discurso, a lógica do discurso é sempre subjetiva; é sempre a lógica de um indivíduo que ordena, ou seja, que coloca ordem à realidade. A realidade não é apanhada em sua ordem própria, na sua imanência. A falsa sensação de colher dados empíricos faz com que o sujeito se jogue no real. E é a ilusão mais fantástica e generalizada que existe na ciência contemporânea. Essa maneira de proceder é menor nas ciências da natureza do que nas ciências sociais, a fantástica ilusão de que fazer um inquérito de opinião da realidade. E se questiona pessoas e eles oferecem respostas; elas dão o que, os elementos da subjetividade, e o sujeito transfigura isso com o nome de objetividade. Isto é, um dos aspectos mais elementares. E, em seguida, montam-se quadros estatísticos a partir da coleta de material e aplica-se a ele; mas o conceito nada mais é do que um construto subjetivo e ele é identificado como realidade. A sofisticação da ciência contemporânea já reconhece que essa concepção não corresponde ao real, gerando a partir daí uma concepção de que o real é inabordável, intransponível; o que se conhece é aquilo que parece ser e não aquilo que a coisa é, ou seja, o que a coisa é sem que para o sujeito ela possa ser reconvertida em saber dele ou sobre ela.
A “Crítica da Razão Pura” principia dizendo que, nada há no intelecto que não tenha passado pela experiência. Esta é uma afirmação empírica, a mais radical e isto é articulado com a concepção de que a sensibilidade e o entendimento humano possuem formas a priori que possibilitam inclusive a experiência. A própria experiência é subjetivamente possibilitada. É a concepção de uma razão que é assim e enquanto tal procede. As formas de entendimento são naturais, e sendo a priori, elas são anteriores a experiência; portanto, são possibilidades, faculdades. São funções que se cumprem face à estimulação dos dados empíricos. E isto continua sendo a posição fundamental dominante.
Em suma, o critério gnosiológico parte do seguinte fundamento: quem dá unidade é o sujeito. E a ciência passou a ser, especialmente a ciência da natureza, um discurso do que parece ser pragmaticamente. O que não quer dizer que ela não alcance certas dimensões de verdade, ela alcança e na aplicação prática a coisa funciona; por isso, não há nada mais mistificante no território filosófico contemporâneo do que a “Filosofia das Ciências”. É um desembocadouro fundamental de toda uma diluição ontológica. E ontologia que vem pela Filosofia da Linguagem, tem um outro crivo, na medida em que é uma ontologia resultado da aglutinação mistificada onde o ente é produto do discurso; isto é, dispor e afirmar que é o discurso gera o ente. E isto é outra mistificação porque, na realidade, é o mundo que gera o discurso e não o discurso que gera o mundo; isto não quer dizer que a linguagem não deva ser um objeto de intensa reflexão, mas não como vem sendo feito. As grandes teorias da linguagem dominante não dizem que ela reflete o mundo, mas o contrário, que ela gera o mundo. A linguagem não gera o mundo, embora ela seja um universal como a consciência, como o trabalho espontâneo. A linguagem é uma das formas espontânea da generalização, porque o homem é o que é; não é que a linguagem torna um certo ente, humano, ou seja, não é o mundo simbólico que cria o homem, mas é o homem que cria o mundo simbólico.
Além do mais, a questão de saber o que o mundo é, converte-se sem querer até os pré-socráticos numa questão do saber. Porque ao invés de ir olhar o mundo, que é uma questão de examiná-lo, estudá-lo, eles imediatamente converteram uma questão ontológica numa questão gnosiológica. É claro que não colocam a questão nestes termos, mas a natureza da operação transfigura imediatamente porque o sujeito que conhece o jogo compara todo o restante e estabelece que este ou aquele sistema é o primordial. Assim, a ignorância converte uma questão ontológica numa questão gnosiológica. O criticismo é produto de uma deficiência e todo mundo o apresenta como o resultado de um avanço. Não se nega que houve avanço, mas este avanço é, na profunda deficiência kantiana, seu lugar histórico. Não apenas quanto à Alemanha, mas à Europa e ao mundo burguês do seu tempo. O criticismo na sua dimensão tópica é um avanço, mas é um avanço por deficiência, e ele nunca se livrou da deficiência profunda porque procede analogicamente. E Kant procedeu como um pré-socrático, analogicamente. Não resta dúvida que é um lapso inaceitável para um pensador como de Kant, pois não levou em conta ao que estava acontecendo na biologia. No seu tempo não só era preciso atentar para isto, como houve o fizesse, quem prestasse atenção, e esse pensador foi Goethe. Ele jamais aceitou a solução de Kant. Toda obra dele é de refutação do pensamento Kant-Newton. O desenvolvimento da biologia da época kantiana põe em cheque o padrão científico newtoniano, ou seja, põe em cheque a concepção racionalista-mecanicista. Isto porque a biologia mostrava que a explicação racional do tipo mecanista-formal porque não explicava os fenômenos, inclusive, em termos anatômicos, em certas descobertas. E se sabe que o mecanismo newtoniano não tem condições mínimas de atuar no território biológico.
A reação de Goethe a esta questão é, de um modo geral, o seguinte: que a proposta e a prática newtoniana de inspiração kantiana, despreza o em-si das coisas. E que este tipo de ciência não captura o caráter objetivo das coisas. A crítica que se faz a Goethe é que ele procura recuperar a filosofia da natureza e termina num finalismo. O que acontece com ele como resposta não interessa, a não ser como fenômeno para examinar o porquê desse caminho. Goethe volta e tenta com os elementos da biologia recompor uma atualização da filosofia da natureza de épocas passadas. Ele envereda por um caminho que é estranho aos gregos, mas tem inspiração neles. É um dos expoentes, em termos de filosofia da natureza, do vitalismo e é o primeiro formulador dialético do mundo moderno. Nos erros e nas soluções equivocadas de Goethe há no seu interior alguma coisa de positivo.
A proposta Kant-Newton não foi incontestada na época em que ela se formou, mas ao contrário, ela sofreu a hostilização e o antagonismo de vários pensadores importantes, mesmo de Fichte e mesmo Kant, não foi acolhido como dizem as histórias da filosofia, como solução porque ele mexe numa porção de coisas e tenta falsificar de todos os lados. Essa ideia de Kant oráculo é coisa do século XX. O que ele pretendia é muito mais generoso do que se faz em nome dele. Kant é muito maior do que os kantianos contemporâneos porque estes são muito mais neo-kantianos. O neo-kantianismo é o esvaziamento do que há de melhor em Kant. E, assim, transformaram Kant numa equação de pensamento formalista, e ele não era formalista. É um pensador que tem pontos altamente significativos e pontos problemáticos. Enquanto Goethe é o primeiro formulador no “Fausto” de uma reflexão de caráter dialético moderno. O “Fausto” é a primeira grande tematização da questão tecnológica: o mundo moderno e o homem, e uma das teses fundamentais do Fausto é a aliança com Deus para, necessariamente, passar pela aliança com o diabo. A metáfora literária significa que o problema da relação do homem e da técnica no mundo moderno, e da integridade humana que tem que ser reordenada. É de certa forma, a modernidade no desmantelar pela tecnologia do mundo tradicional; isto é, pelo mundo do capital; e é simultaneamente aquilo que é necessário para levar à frente o processo de humanização do homem e é, ao mesmo tempo, o demônio que o arruína. Arruinar e construir são dois momentos de um único processo. É a formulação dialética fundamental. Além do que, Goethe é a resposta inclusive para o paradoxo que os franceses não conseguiram entender. E ele dá a explicação por essa via: como é que a legenda da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade redunda na ditadura jacobina e napoleônica. Todos os pensadores franceses estancam diante disso, pense-se, por exemplo, em Destut de Tracy, ideólogo da preparação da Revolução Francesa que não reconhece no que está ocorrendo a materialização desta propositura e, simultaneamente, não reconhecendo que Napoleão Bonaparte é o homem que materializa de fato a revolução burguesa; mas Goethe entende isso: Napoleão é o demônio com o qual é preciso se aliar para se chegar ao deus modernidade.
Goethe é um pensador que jamais é referido em qualquer história da filosofia. É o sujeito que vai gerar possibilidades a Hegel de ser professor e que dizia dele: “Hegel é um homem de talento, mas não sabe escrever”. Nisto não se precisa concordar com Goethe, que é um sujeito do saber e do poder, do qual não abria mão. Tem carreira política do demônio. Ele é, em última instância, o deus e o demônio na carnação de uma vida, ou seja, de uma individualidade. É como se ele tivesse falando de si próprio. A sua própria tematização é vivida por ele. É uma figura gigantesca e muito mal conhecida. Assim a origem da dialética contemporânea não é Hegel, é Goethe. Hegel é apenas a expressão filosófica levada às últimas consequências de uma instauração goetheneana, que é pensada contra Kant, contra Newton. Marx, de algum modo, é ou deve alguma coisa a Goethe.
Diante desse quadro observa-se que é toda uma tradição que a história da filosofia deixa na obscuridade. A história da filosofia é o alfarrábio de mentiras. Não é isto que se lê num Brehier, num Chatelet, por melhores que sejam. É preciso escrever uma nova história da filosofia, porque todos os materialistas franceses não são referidos, a não ser acidentalmente.
Em suma, a história da filosofia é escrita como a maneira de mostrar a imanência de elo a elo até chegar ao momento do qual é uma falsificação. Ela não é uma história imanente das ideias, das concepções do mundo dos homens. É claro que ela tem um certo momento nesse plano, mas a filosofia, é antes de tudo e acima de tudo, uma guerra teórica. E essa é uma questão que é importante, ou seja, determinante na discussão ontologia/ gnosiologia. Isto porque o homem, enquanto homem, pré-existe ao sujeito cognitivo. E para que possa haver o sujeito cognitivo há que, necessariamente, existir anteriormente o homem.
Assim, quando o critério gnosiológico predomina o que ocorre é que o sujeito cognoscente é aquele que funda a possibilidade do sujeito efetivo. Isto é uma inversão da realidade, uma inversão ontológica. Isto porque a ciência é um momento de ideação. Este momento científico de ideação não se confunde com o momento da consciência cotidiana. Ter consciência no plano do sujeito efetivo é uma coisa, e ser o sujeito cognitivo cientificamente posto, é outra coisa.
Na “História da Filosofia” de Hegel, logo nos primeiros parágrafos, coloca-se Aristóteles como insuperável. O conceito que ele tem de Aristóteles é o mais elevado possível. Desde a Idade Média que Aristóteles é chamado de “o filósofo”, e Hegel, que é o ponto mais alto da filosofia idealista-ocidental, reproduz este conceito e Aristóteles é inteiramente recuperado. Isto é importante destacar porque desde o começo da filosofia burguesa com Descartes e Galileu, eles são uma contraposição a Aristóteles. Para Hegel, Aristóteles é o cimo do espírito científico.
Tem-se em Aristóteles um pensador que confere à observação empírica uma importância enorme e, simultaneamente um pensador que se entrega à reflexão abstrativante, conceitual com um empenho igualmente grande. Não há nisso nenhuma contradição. Não há explicitamente uma teoria que organize isso em Aristóteles. Na Idade Média tentou-se encontrar organização para isto, distorcendo o seu pensamento, não há o que encontrar, ele não dominou. A hipótese mais provável para esse fato é que, ao seu tempo, esta articulação não seria possível a não ser muito genericamente. E a partir do instante em que se reconhece que Aristóteles entendeu que as abstrações são apanhadas do real, e uma vez apanhadas e absorvidad pelo pensamento é a mente que as elaborava; porém como isso se configura Aristóteles pouco deixou como explicação. O que se tem dele são trabalhos particularmente de lógica; em suma, é a disciplina do discurso, a teoria formal da demonstração.
Porém, é preciso não esquecer que Aristóteles participa da convicção de que o homem e o mundo estão em harmonia, porque o homem é dotado naturalmente de uma faculdade de intelecção. Isto não está posto em jogo, o problema é só garantir a certeza da intelecção. Mas o homem é capaz de ter intelecções com o mundo, e isto passará a estar em jogo com Descartes, porque é a partir dele que o homem está fora do mundo. No mundo grego o homem está harmonicamente no interior do mundo e Descartes é a expressão doentia da perda do mundo pelo homem, é o rompimento do mundo medieval, mais do que isso, é a afirmação do mundo burguês que faz perder todas as ordenações, concepções anteriores que davam sensação de pertencimento. Por exemplo: o camponês não pode ser separado da terra porque é da ordem do mundo que a terra e o homem que a trabalha estejam juntos. Então, o senhor feudal tudo pode menos separar o homem da terra.
Logo, o que ocorre no início do mundo burguês, a expulsão do camponês do campo. O homem perdeu o seu mundo, perdeu a sua terra. Em quem vão se reduzir grandes parcelas das massas camponesas, em vagabundos nas estradas. Neste sentido, a consciência cartesiana de que o homem está fora do mundo e como agarrá-lo de novo, tem essa história a determinar. Porém, é da lógica do processo de expansão histórica do capital a expulsão dos camponeses do campo. O mundo pré-capitalista é, fundamentalmente rural e quando essa multidão é expulsa da terra para se tornar mão de obra nas fábricas, grande parte do mundo, perdeu o mundo. E aquela sensação de que o homem não é mais parte do mundo. O mundo, não é mais sua casa, é uma expressão genérica, generalizada, filosoficamente articulada, de um dado histórico que durou séculos. Essa multidão vai para a cidade, uma parcela consegue trabalho, outra parcela não consegue, outras parcelas acham melhor não fazer nada, a ter que ficar submetida ao trabalho desumano. Decretam silêncio contra a vagabundagem. O mundo burguês criou a monstruosidade e em cima disso vai punir: quem não trabalhar vai preso e pode ser executado. Mas é claro que vai ser executado, porque vai morrer de fome, se se levar isto à ideia universalizante.
É preciso esclarecer que não só Descartes vai nessa direção, mas ele vai ser o principal pensador que desenvolve essa concepção. Assim, a razão não está mais no mundo, porque se houvesse uma lei que mantivesse essa ordenação, essa harmonia, não teria acontecido a expulsão. A questão é, então, saber quem pode ordenar, organizar, a partir daí, a subjetividade, e quando a ontologia parte da subjetividade: penso, logo existo, ela é altamente problemática e não tem reação, não pode ter reação, porque seria simplesmente dizer: “vamos repor todos os camponeses no campo”. Isto é ingênuo, não há como retroceder esse processo.
Em suma, vale destacar que, Descartes é a manifestação da crise, procurando o refúgio na subjetividade que agora se volta para o mundo, no sentido de organizá-lo. É, enfim, a liberdade do espírito, mas não do homem, porque a liberdade do homem será através da superação desse mundo burguês, ou seja, do capital. E é Marx que coloca essa possibilidade pelo viés ontológico.