Capítulo 8
PERSPECTIVA DE SUPERAÇÃO DA SOCIEDADE CAPITALISTA
Construção da Humanidade Social
É importante fazer algumas reflexões sobre a perspectiva da construção da sociedade humana ou humanidade social no pensamento marxiano. Trata-se, na realidade, de uma tentativa de apreensão da superação da sociedade burguesa, ou seja, da sociedade organizada pelo capital, para a sociedade regida pelo trabalho, onde os indivíduos têm a possibilidade de realizar as suas potencialidades humanas. Essas questões foram abordadas por Marx em vários dos seus textos, notadamente na Ideologia Alemã, nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos, em O Capital. Inicia-se a reflexão sobre a perspectiva de construção da humanidade social, ou sociedade humana, citando de Marx a décima tese ad Feuerbach¹⁷, onde ele afirma que: “O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade civil, o ponto de vista do novo (materialismo) é a sociedade humana ou humanidade social”. Tem-se nessa tese a contraposição entre sociedade burguesa (civil) e sociedade humana, ou humanidade social. A sociedade humana não é a sociedade burguesa, porque a sociedade burguesa é a sociedade onde predomina a economia, isto é, é a sociedade onde a produção econômica determina o homem, e se caracteriza pelo reino da necessidade. Nessa sociedade burguesa a relação entre os homens é medida pelo capital. A sociedade humana é onde predomina o homem, não como único, em seu isolamento natural, mas enquanto um feixe de relações sociais. É consequentemente, a sociedade onde o homem, na sua alma social, determina a produção, construindo o reino da liberdade.
Por outro lado, é preciso destacar que a sociedade burguesa, ou seja, a sociedade capitalista proporcionou um salto fundamental na construção da humanidade do homem, e projetou para frente a sua humanidade, mas a partir de certo momento começou a vedar essa perspectiva. É por isso que estamos diante de dilemas que no momento atual se sintetizam na perspectiva do humano, logo, a questão fundamental do pensamento marxiano vem à tona, qual seja, a de saber como se dá a constituição do homem a partir da animalidade.
Importante destacar é o fato de que essa questão está posta, hoje mais do que nunca, no entanto, sem a consciência da esmagadora maioria dos afiliados do pensamento de Marx, o que encerra precisamente este desafio. E aliás, este foi o grande desafio de Marx, sobre o qual viveu e elaborou conhecimento, uma vez que o problema central de todo o pensamento marxiano é, exatamente este, como se construiu o gênero humano e como se chega à emancipação humana.
O que se observa, na realidade, é que o século XX tomou de forma unilateralizada e aberrantes parcelas discursivas do pensamento de Marx e o converteu, acima de tudo, em um autor político. E partir do momento que este pensador se converte meramente em um autor político, seu pensamento escorre entre os dedos e se perde. É preciso esclarecer que isto ocorre não simplesmente porque ele tenha sido mal-entendido, mas sim porque ocorreram eventos concretos que, na realidade, forçaram nesta direção. O resultado desse processo foi uma dupla falência: primeiro, falência teórica-intelectual-espiritual consubstanciada na perda da herança marxiana, uma vez que, nada é mais ignorado no mundo contemporâneo do que o pensamento de Marx. E esse Marx que é celebrado como um cadáver nacional e internacionalmente, na academia e na imprensa, em termos de consciência, em termos de ideação e em termos de teoria, é a celebração de um pseudo Marx. Logo, é muito importante que Marx tenha morrido, porque sem dúvida o “marxismo vulgar” morreu e foi enterrado pela Glasnost, pela Perestroika e pelos acontecimentos no conjunto do leste europeu.
Na verdade, quando se diz que o “marxismo vulgar” morreu é importante saber como esse corpo que morreu foi gerado, e o que significou enquanto existência efetiva. A resposta a essas questões vai gerar a ideia real do complexo de realidade que acabou por subverter, danosamente Marx de um autor resultado de dois mil anos de pensamento, ciência e filosofia num mero idealizador político. Assim, este é o segundo motivo pelo qual Marx é dado como morto e deriva do fato de que o conjunto revolucionário do século XX foi, em termos sumários, a tentativa de realizar uma revolução no quadro de uma impossibilidade. Esta é a questão fundamental.
O que se está querendo dizer é que, na realidade, a herança intelectual de Marx teve um destino perverso, inicialmente com os desentendimentos dos significados mais profundos do seu pensamento pelo próprio Engels, que foi o parceiro de Marx durante quase quarenta anos de atividades comuns. Mas, com isto não se quer dizer que haja uma rejeição por completo da figura de Engels, mas apenas uma restrição clara e direta, porque ele foi nessa espantosa proximidade, espantosamente alguém que não entendeu o cerne da questão marxiana. E o resultado disto é que a sucessão dos “herdeiros” do pensamento marxiano perfaz o destino típico desse patrimônio.
Vale destacar que isso ocorre a partir de uma frase aludida por Engels¹⁸ e da profunda solução da II Internacional.
A Internacional, raiz última do social-democratismo contemporâneo, que serviu de base para edificação do que se tornou consagradamente a aberração máxima do marxismo que é o pensamento que se costuma designar por stalinismo, ou pensamento staliniano.
Na verdade, não se sabe o que é pior se a II Internacional ou o Stalinismo¹⁹, porque na verdade são versões distintas de um mal único que, guardando as especificidades próprias, tem, no entanto, uma malha comum de esvaziamento substancial do pensamento de Marx. Pensamento staliniano que, a nível mundial, a partir da II Guerra Mundial começa a conhecer os seus limites de impossibilidade, e da década de 50 para cá, paulatinamente, um desmoronamento a nível meramente verbalizador, mas que não corresponde a uma recuperação desse pensamento com o neo-stalinismo e até mesmo com formas que não são e de maneira nenhuma querem ser herdeiros desses pensamentos, mas que são decorrências dele. Na realidade, o resultado final é o que se assistiu, seja na sua expressão mais controlada que é, particularmente, o caso russo através da antecipação, já em 85, de medidas tais como a Glasnost e a Perestroika, e as formas muito mais turbulentas e até sangrentas de reação feroz, caso da China, pelo conjunto daquilo que outrora se ousou chamar de “Bloco Socialista”.
O fundamental é ficar claro que, no Leste-Europeu (inclui Cuba, China, Nicarágua, ou seja, o conjunto dos países que, hipoteticamente, viveram uma transição socialista), neste conjunto do pós-capitalismo não houve transição socialista. Isto porque, o chamado “socialismo real” pelo simples fato de exigir o adjetivo real colado ao substantivo socialismo, indicava que havia um descompasso fundamental entre o que havia permitido a Marx, que permite a reconstrução do seu pensamento, e a outros entenderem por socialismo como decorrência não de uma postulação utópica ou de um projeto político, mas como um movimento decisivo da autoconstituição do homem.
É preciso entender que as formas organizacionais, incluindo as formas políticas e as formas de pensar, apresentadas neste conjunto pela reflexão marxiana, não constituem um projeto no sentido de utopia, no sentido de um sonho, de um dever-ser ético, mas o resultado de uma investigação que tem por cerne a seguinte questão: como é que se forma o homem a partir da animalidade? Acrescida de uma outra questão também muito importante: em que momento dessa construção do humano se entra quando se constitui o capitalismo a ordem geral do capital, e quando já se constitui o capitalismo a ordem geral do capital, e quando já em meados do século XX, como resultante dessa produção, emerge um novo personagem histórico que passa a desenvolver uma crítica teórica e prática da realidade do capital? Isto porque é a partir de meados do século XX que se abre uma perspectiva de superação do capital, a partir da lógica onímoda²º do trabalho, da lógica polivalente do trabalho.
É preciso destacar que a lógica do capital e a lógica do trabalho são dois universos possíveis da construção do humano. Na realidade, o capital ao se instaurar e criar a sua sociabilidade, instaura uma fase decisiva na constituição do homem gerado, simultaneamente, um limite, um bloqueio e mais à frente, este capital revela o que já esteve em germe desde o começo, os elementos de trituração desse humano e com isso gerado a impossibilidade de que essa construção infinita prossiga. A obra de Marx é uma resposta de como é que o homem e a humanidade podem ir à frente. É neste sentido que se pode entender a dimensão política e a proposta da revolução socialista como instrumento, utensílio, ferramenta, mediação que reponham a possibilidade de levar adiante a construção do homem.
Acontece, todavia, que, de um lado esta percepção de pensamento marxiano escapa à compreensão quando, em determinados momentos, se transforma em uma espécie de humanismo, que é colado na obra econômica de Marx e nessa interpretação há vários erros fundamentais que nulificam inteiramente o seu pensamento. Na realidade, a obra econômica de Marx é uma crítica à economia política clássica, porque ele estava interessado em compreender a lógica do capital e encontrar o modo pelo qual este capital possa ser superado. Daí que a obra econômica de Marx é uma ciência de superação de uma forma de sociabilidade. Com isto, Marx não é meramente um denunciador dos limites ideológicos burgueses da economia política clássica, cujo cerne é a ideia de eternidade do capital, ou seja, da perenidade dessa forma de sociabilidade engendrada pelas relações de produção regidas pelo capital. Talvez seja legítimo dizer que a ciência econômica de Marx é um momento de determinação concreta, de um instante preciso, das formas de antepor-se da homem face à interrogação básica: como é que este homem, que atingiu a configuração do capital, faz face a esta forma de sociabilidade que, ao mesmo tempo que produz a riqueza, desproduz o homem? Como é que esta contradição se resolve pela superação do próprio capital? Como é que o homem prossegue na infinitude de sua autoconstituiçao? Como é que, atingindo o estágio do capitalismo, este ser social retoma ou leva à frente os caminhos de sua auto-edificação? Na realidade, o que Marx faz é mostrar que a economia política clássica só enxerga o lado positivo do trabalho e não o lado negativo, e ele demonstra o aspecto do desfazer do trabalho, uma medida em que constata que o trabalho não apenas desfaz, mas desfaz, precisamente, o seu produtor, porque o produtor que faz é desfeito no próprio ato do fazer, ou seja no ato que cria.
Assim é que, o pensamento de Marx não tem entre outras coisas, um humanismo que é colado à sua análise econômica, mas tem sim, uma consequência humanista que parte de uma preocupação com este ser, o homem, que é gerado por si mesmo no ato do trabalho e que tem que continuar se construindo. Esta é uma das características fundamentais deste ser, porque a construção do homem é infinita, não há ponto de chegada, cada momento atingido é apenas um degrau novo e mais elevado para um patamar, para um grau mais alto. Todavia, nessa escada, nessa construção, pode haver e de fato houve, passos para trás. E o capitalismo que foi o ponto que propulsionou para cima, a um dado instante, empurra para baixo e desfaz uma parte do feito e até mesmo desfaz graus anteriormente conquistados. E o que é mais grave, veda a possibilidade de ir para a frente.
E, de outro lado, a perspectiva de uma sociabilidade do trabalho que começa a emergir em meados do século XIX e que encontrará em Marx a antena e teoricamente mais capacitada, mais perspicaz, (porque foi o único pensador a perceber e apreender a possibilidade de superação da ordem burguesa), não se faz herança nos seus herdeiros. Assim, a questão que se coloca é: por que esta é a questão central do mundo atual?
Nesse quadro, nesse contorno a questão que Marx coloca é que, ao se reconhecer o salto fundamental gerado pelo capital para a construção do homem e que já está evidenciado os seus limites, que desde a sua origem são os seguintes: o capital que constitui um novo mundo, aquela forma social que instaura, pela primeira vez na história, a individualidade, porque antes do capitalismo não há propriamente individualidade humana no universo. O indivíduo tal qual se conhece hoje é um produto, é uma categoria a nível genético da instauração da ordem burguesa, da ordem do capital, ou seja, da lógica do capital. É a partir do século XVI que se formula historicamente a possibilidade da individuação, porque antes não há o que se pensar em termos de indivíduo. Isto porque, o indivíduo nada mais era do que uma singularidade, como uma planta, um coqueiro, um boi, um cão, etc. Quando a individuação emerge, ela aparece com um florescimento real de possibilidades e a ênfase sobre o sujeito cresce, mas com o risco de tornar a individualidade o centro organizador do mundo. Na realidade são os homens, com suas ações, que constroem o mundo dos homens, mas isso não nega a ideia de classes sociais, porque a classe não é outra coisa sem o conjunto dos indivíduos. Não existe uma classe antes dos indivíduos, e o que marca o nascimento de uma classe é, efetivamente, a aquisição da consciência, do seu ser para si. Assim, embora seja o indivíduo o produtor do seu mundo, mas é o indivíduo social, o homem em sociedade, que produz esse mundo.
Daí a grande indagação de Marx: como é possível superar os limites do capital, que ao instaurar o indivíduo ao mesmo tempo o destitui? Assim, por que instaura e destitui? Marx demonstra que isto ocorre porque o produtor da riqueza ao produzir o universo da riqueza desproduz-se como indivíduo. Ou seja, na sociedade regida pelo capital o produtor produz a riqueza e desproduz a si mesmo. Mas, é preciso destacar que produção do capital gera a possibilidade, pela primeira vez na história da humanidade, da existência do indivíduo. O indivíduo se descola do universo, uniforme da manada onde foi gerado, mas nesse movimento que gerou o indivíduo o reconverte, agora, a uma manada como “lepra civilizada”.
Vale dizer que, “lepra civilizada” é uma expressão muito utilizada por Marx, que utilizava também a expressão “barbárie” no sentido de na existência de formações anteriores, nos momentos pré-capitalistas, onde existia a barbárie do não civilizado, agora, com o capitalismo se instaura uma nova barbárie como “lepra civilizada”. Isto porque, o indivíduo, este homem, esta individualidade que é posta pela primeira vez pelo capital, é posta, no entanto no interior desta “lepra civilizada”, ou seja, como uma “lepra civilização”.
Diante dessas colocações de Marx, é preciso lembrar que ele não assistiu aos momentos mais agudos disso, porque morreu em 1883, portanto, antes da virada do século quando vai haver uma violentíssima acumulação, através de um processo auto-destruidor que culminará na I Guerra Mundial, depois na II Guerra Mundial, e continua sendo um processo que ocorre até hoje. Assim, os indivíduos, hoje em dia, são os infelizes privilegiados que assistem, como partícipe, essa destruição do humano. A destruição do humano foi reduzida de uns anos para cá em seres que são e que explicam por dimensões unilaterais, desprezando as suas outras dimensões superiores. Isto porque, hoje mais do que nunca, toma força e espaço as correntes irracionalista, do pensamento e com isto procuram demonstrar que a ordem burguesa, a ordem do capital é o estágio máximo da humanidade do homem.
Assim, a questão que se coloca a partir daí é a seguinte: por que se dá isto? Por que o pensamento de Marx e os desdobramentos necessários não se operaram ao longo deste século? Assim, a discussão gira em torno da seguinte questão: por que o homem foi esquecido? Por que o século XX esqueceu o homem? Por que o capital gera esse esquecimento? Estas são questões fundamentais que precisam ser respondidas para que se possa ter garantida a possibilidade de continuar o processo de construção do homem. Isto é, para que possa ser construída a sociedade humana, ou humanidade social.
17 – FEUERBACH, Ludwing (1804-1872) Grande filósofo alemão do período pré-marxista, fundador do “velho materialismo”. Escreveu a obra “A Essência do Cristianismo”, onde faz uma ferrenha crítica ao idealismo de Hegel.
18 – Quando afirmou em seu livro ”LUDWIG FEUERBACH e o fim da Filosofia Clássica Alemã” que: “A questão fundamental da Filosofia é a Teoria do Conhecimento e dois ângulos se formam: o idealismo e o materialismo”.
19 – II Internacional: agrupamento internacional de partidos socialistas fundado em 1889. Quando começou a guerra imperialista mundial de 1914-1918, os líderes da II Internacional traíram o socialismo, colocaram-se ao lado dos seus governos imperialistas e a II Internacional desmoronou-se. Os partidos e grupos de esquerda que pertenciam antes à II Internacional aderiram à III Internacional (Internacional Comunista), fundada em Moscou em 1919. A II Internacional foi reconstituída na Conferência de Berna (Suíça) celebrada no mesmo ano (1919). Ingressaram nela unicamente os partidos que representavam a ala direita, oportunista, do movimento socialista. STALINISMO: desenvolvimento teórico-prático do marxismo-leninismo realizado pelo estadista soviético Iosif Vissarionovitch Djugatcvilli, dito Stalin (1897-1953), e que se baseia na tese do “Socialismo em um só país”, a URSS. Na realidade trata-se de um conjunto dos métodos de condução política, econômicos e sociais aplicados por Staliln, no período em que predominou politicamente na URSS (1924-1953).
20 – Onímoda: que é de todos os modos; que abrange todos os modos de ser; que abrange tudo; que não tem restrições. (Dic. Aurélio).