Capítulo 9
POSSIBILIDADE DE HUMANIZAÇÃO NUM MUNDO GLOBALIZADO
A existência de ideias revolucionárias numa
determinada época já pressupõe a existência
de uma classe revolucionária. Karl Marx
A partir da crise do socialismo real, ser marxista passa a ter uma conotação diferente. Isso ocorre inclusive no meio acadêmico, porque a crise dessa forma histórica de transição era identificada na sociedade à teoria social de Marx. Assim é que o funeral do autor é anunciado a cada ano, desde 1883, quando de sua morte, por diferentes teóricos de várias tendências. Esse fenômeno de negação do pensamento marxiano é tão claro quanto a afirmação da perenidade do capital. Mas esse quadro é ainda mais complexo, porque compreender a ordem do capital é atentar para um momento fundamental, de profunda crise, que assola a humanidade com lutas sociais expressas nos grandes conflitos, consequência, sobretudo, do modelo de desenvolvimento adotado, que favorece a desigualdade com o privilégio absoluto da reprodução do capital e a tentativa de superação do valor do trabalho.
A ordem burguesa, a organização social do capital, vive uma crise estrutural insuperável, insanável. Para se compreender o quadro atual da humanidade, é fundamental recorrer ao pensamento marxiano, pois suas concepções possibilitam explicar a crise de um determinado modo de transição pós-capitalista, o do leste europeu, derrubado pelos diversos movimentos sociais, neste último período histórico. É preciso que a inteligência, a razão, ponha em prática o seu projeto de humanidade à medida que emergem as lutas sociais, pois como afirma Marx (1987, p.14): “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa agora é transformá-lo”.
A grande questão é saber para onde caminha a humanidade. No cerne desse problema está a possibilidade de o homem continuar a construir o seu mundo, ou seja, do homem humanizar-se enquanto ser social; ou então, do retorno à barbárie, que ocorrerá não mais na forma da pureza primitiva, mas com extrema violência, uma vez que acarretará na perda de sua humanidade, conquistada ao longo do processo histórico.
Para compreender esse processo é necessário um instrumental heurístico que dê conta de sua inteira expressão, o que é possível alcançar fundamentalmente pela concepção elaborada por Marx, pensador que dá conta da compreensão da totalidade do ser social, apontando a possibilidade de superação da organização do capital pelo viés do trabalho, o que ultrapassa a emancipação política na construção da emancipação humana, como explica n’A Questão Judaica:
Toda emancipação é a redução do mundo humano,
das relações, ao próprio homem. A emancipação
política é a redução do homem, de um lado, a
membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta
independente e, de outro, a cidadão do Estado, a
pessoa moral. Somente quando o homem individual
real recupera em si o cidadão abstrato e se converte,
como homem individual, em ser genérico, em seu
trabalho individual e em suas relações individuais;
somente quando o homem tenha reconhecido e organizado
suas “forces própres” (próprias forças)
como forças sociais e quando, portanto, já não sepa-
ra de si a força social sob a forma de força política,
somente então se processa a emancipação humana.
(MARX, s/d, p. 51-52).
O homem, como todos os outros seres, emergiu da natureza e em sua longa caminhada da animalidade ao ser social foi se fazendo humano pelo trabalho, e por meio do trabalho construiu o seu mundo, o mundo dos homens. Assim, em sua tese central, Marx afirma, no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política:
Na produção social da sua existência, os homens
estabelecem relações determinadas, necessárias,
independentes da sua vontade, relações de produção
que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas materiais.
O conjunto destas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base concreta
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política e a qual correspondem determinadas formas
de consciência social. (MARX, 1977, p.24).
A sociedade burguesa, a sociedade do capital, é uma forma de organização social que gera, em todos os aspectos, uma imensa riqueza e que, hoje, entrava o processo de transformação em termos de evolução para uma nova sociedade, a sociedade humana. Diante disso, Marx explica a seguir: “Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade”. (MARX, 1977, p.25).
O fato é que tais condições materiais já existem na forma de sociedade atual, mas ao invés de superar esse estágio, o capitalismo impede a transformação, utilizando o processo destrutivo da produção, na medida em que os produtos já materializados, e inclusive os aparatos tecnológicos, estão sendo eliminados. Esse processo é uma forma de garantir a reprodução do capital, desvalorizando, ou mesmo apagando da história o papel fundamental do trabalho na construção do patrimônio da humanidade. Isso porque:
O trabalho é um processo de que participa o homem
e a natureza, processo em que o ser humano com a
sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu
intercâmbio material com a natureza. Defronta-se
com a natureza como uma de suas forças. Põe em
movimento as forças naturais de seu corpo, braços
e pernas, cabeça e mãos, a fi m de apropriar-se dos
recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à
vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa
e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua
própria natureza. Desenvolve as potencialidades
nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo
das forças naturais. (MARX, 1980, p.202).
A crise da sociedade capitalista data de muito tempo, mas o ponto de referência é o desmoronamento do leste europeu, pois, do ponto de vista marxiano, uma sociedade verdadeiramente humana só pode se instalar onde existirem todas as condições objetivas e subjetivas para a sua realização, caso contrário, toda a velha miséria retorna. Não é por acaso que a crise da cientificidade contemporânea, minimizada nesses últimos anos com o aparecimento de estudos e pesquisas, demonstra a imensa produção do falso socialmente necessário, socialmente determinado. Os estudos marxianos demonstram que a crise da sociedade é extremamente profunda, aguda, e que é dada a possibilidade deste modo de produção ser superado.
Na realidade, estamos vivendo num momento em que se tem de um lado, uma imensa geração de riqueza socialmente produzida; e, do outro, uma população sem nenhuma condição de acesso a essa riqueza. O capital vive uma crise estrutural, portanto, insanável, irreversível compulsoriamente, e não eliminável. Esta crise está no próprio seio da sociedade capitalista, é da sua essência, e ela, a sociedade do capital, só pode se reproduzir em cima da própria crise. O único modo através do qual o capital pode garantir a sua existência é tornando substancial a crise, adiando a sua agonia e impedindo o seu fenecimento e superação à custa do autoextermínio social.
Neste momento histórico é preciso compreender que a crise demonstra que há uma extensa contradição entre os interesses do capital e do homem. Na relação entre as necessidades, do capital e do homem, constata-se que é da natureza do sistema do capital a subversão pela qual a produção material realizada pelos homens se afasta irreversivelmente dos objetivos do próprio homem; pois, desde o seu início, há um afastamento entre a produção dos homens e os seus objetivos. O que os homens precisam para atender às suas necessidades se torna distante daquilo que efetivamente fazem do seu produto. Assim, o homem, enquanto produtor da riqueza, é desproduzido no próprio ato da produção, uma vez que o produto do seu trabalho é apropriado por outro, ou seja, estranhado de si, na medida em que: O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.
Este fato nada mais exprime, senão o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece […] como desefetivação, do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento, como alienação.
A efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação
que o trabalhador é desefetivado até morrer
de fome. A objetivação tanto aparece como perda
do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos
mais necessários não somente à vida, mas também
dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo se
torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se
apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias
interrupções. A apropriação do objeto
tanto aparece como estranhamento que, quanto mais
objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir
e tanto mais fica sob o domínio do seu produto,
do capital. (MARX, 2004, p.80).
Daí ser possível compreender que há uma contraposição entre necessidade humana e necessidade do capital, na medida em que o capital tem uma lógica para pôr e resolver as suas necessidades, diferente de pôr e resolver as necessidades humanas. A lógica do capital é a negação das necessidades humanas e, ao mesmo tempo, a afirmação das necessidades da organização social capitalista. O capital atende às necessidades humanas por coincidência e não por opção. Isso porque um capitalista não monta a sua fábrica, não compra matéria-prima e não compra ou aluga força de trabalho para atender à humanidade, para ser socialmente útil. Não existe finalidade social no capital. O capital não se move por razões relativas às necessidades humanas, isto é, às necessidades de consumo das pessoas, mas sim para se ampliar em escala crescente e, na medida em que essas necessidades humanas estão em um patamar possível de atendimento, a produção do capital é destrutiva. Logo, destruindo aparatos tecnológicos, produz-se a própria destruição da humanidade, cujo expoente maior é a construção de armas, sejam elas químicas, físicas e/ou biológicas.
É preciso esclarecer que o ser humano é um ser objetivo e, enquanto tal, incompleto. Na sua incompletude, é obrigado a se relacionar com seres objetivos externos a si, com os outros homens, alimentos, vestimentas, casas, etc. E o ser social, o homem, precisa do outro para se relacionar, construir e desenvolver sua própria humanidade, porque só existe homem em sociedade. A incompletude e a objetividade são duas categorias inseparáveis do ser social, daí a necessidade de seres objetivos, de coisas e objetos, enquanto valores de uso, que supram essas carências. O valor de uso é uma utilidade e, sob certos aspectos e dimensões, completa a incompletude do ser, não só do homem. É exemplo disso a planta, que precisa de água, se a ela for negado este elemento, fenece e morre.
Entretanto, como as necessidades do capital são outras, não é da sua lógica atender às necessidades do homem, às necessidades humanas, mas sim ao seu automovimento de ampliação. O capital produz não para dar de comer, mas para alimentar a si mesmo, de forma que se reproduza cada vez mais em tamanho maior, porque o capital que não se amplia fenece e morre. O capital passou a fazer a produção destrutiva, que é o ponto, o momento, em que o capital devora a si mesmo para poder continuar crescendo. Mas essa produção também se tornou insuficiente para satisfazer as necessidades do capital, que passa a queimar sistematicamente partes, para que nesta queima, abra-se uma brecha para colocar novamente uma produção. A produção destrutiva é na realidade destruir, não só aparatos tecnológicos, mas toda e qualquer produção que para o capital não seja mais viável.
Além do que, na sua gênese, o capital nasce sob a forma do vil metal, e o dinheiro, sofisticado pelos movimentos do capital, chega à condição do dominador total. É importante entender que o dinheiro tem uma característica fundamental: é a mercadoria que vale por todas as outras, é o equivalente geral, universal do modo de produção capitalista. O capital financeiro foi aquele que se tornou progressivamente dominante, é um valor que predomina sobre todos os outros. Uma mercadoria que predomina sobre todas as outras, pois tem uma capacidade gigantesca de circular utilizando para tanto todo um sistema altamente complexo para a sua realização. O capital financeiro é absolutamente multiforme, pode ser moeda, cheque, número em um papel; e, pode se converter em qualquer moeda. Tem uma mobilidade que penetra por todos os poros da sociedade, se metamorfoseia em qualquer coisa para que fique garantida a sua reprodução. É esta forma de
capital que, atualmente, domina todo o sistema.
O importante, nesse momento histórico, é entender se existe uma real possibilidade de humanização do homem no mundo globalizado. E isso só é possível com a superação do modo de produção atual; pois no desenvolvimento da sociedade capitalista foi gerada de um lado, uma imensa riqueza, apropriada privadamente; e, do outro, uma massa destituída de tudo, que são os proletários, os verdadeiros produtores da riqueza.