Capítulo 9
POSSIBILIDADE DE HUMANIZAÇÃO NUM MUNDO GLOBALIZADO
Lutas sociais na superação da ordem atual
A humanidade vive já há algum tempo uma profunda crise, seja econômica, fi nanceira, política ou mesmo ideológica. Na realidade, trata-se de uma crise estrutural, da essência do próprio mundo criado pelo homem, em que a grande questão é saber como se caminha para a humanização, porque no topo dessa problemática está a possibilidade do homem de continuar a construir a sua humanidade. Por isso, é importante compreender de onde ele veio e para onde vai.
Em meados do século XIX, começa a emergir o que então se chamava ou era designado de Movimento Operário e que viria a ser chamado de Movimento Proletário, abrindo uma perspectiva de superação para que os limites da autoconstituição do homem fossem rompidos. Essa é uma questão muita antiga, mas que se explicita e se torna viável nesse período de realização da ordem do capital, da sociedade capitalista, momento no qual Marx sinaliza para a perspectiva de o homem continuar no caminho da construção de sua humanidade, ou seja, da sociedade humana ou da humanidade socializada. (MARX, 1987, p.128).
Na realidade, para compreender essa questão é preciso apanhar o processo da divisão radical entre o público e o privado, e do homem concentrado sobre si próprio, ou seja, do homem entendido como um ser egoísta, fechado em si mesmo, e que atua movido exclusivamente por esse lance de egoísmo. Em tal processo, a razão se põe a partir do egoísmo, havendo, por conseguinte, um ardil da razão que, movendo o egoísmo, se afi rma enquanto racionalidade. Isso está posto hoje mais do que nunca, porque quando se passa a ouvir que são o mercado, a concorrência, a livre iniciativa e a competência que devem reger o universo da sociabilidade, nesse instante mesmo se está sob as formas mais puras, no sentido de isentas de qualquer outra intervenção, do nódulo fundamental da sociabilidade do capital.
É, portanto, na sociedade regida pelo capital, que se gerou a concepção de homem como ser isolado, cujos limites são os do seu egoísmo, sendo a liberdade o exercício e o controle desse sentimento no mundo político. Por isso, o Estado é, neste sentido, o controlador do egoísmo. Logo, é preciso organizar, através de uma solução contratualista qualquer, uma ordenação tal que os egoísmos não levem à recíproca aniquilação entre os indivíduos; pois, se o egoísmo só conhece por limite ele próprio, cada indivíduo vai até o seu limite máximo em relação ao outro.
E, partindo da lógica, ou seja, da concepção de que a lógica do capital concebe o homem como um ser egoísta, isto é, movido por seus próprios interesses, a expressão máxima fundamental como atributo desse ser é a propriedade privada. Isso está na Constituição Francesa de 1793, que proclama a declaração dos direitos do homem e do cidadão, dispostos em seu artigo 16, citado por Marx:
O direito humano à propriedade privada, portanto,
é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele
dispor arbitrariamente, sem atender aos demais homens,
independentemente da sociedade, é o direito
do interesse pessoal. A liberdade individual e esta
aplicação sua constituem o fundamento da sociedade
burguesa. Sociedade que faz com que todo homem
encontre noutros homens não a realização de
sua liberdade, mas pelo contrário, a limitação desta.
(MARX, s/d, p. 43).
Este é o marco inicial da chamada democracia burguesa, cujo princípio norteador é a divisão do homem em duas partes: o cidadão da vida pública e o burguês da vida privada. Ao primeiro é conferida a graça dos direitos públicos universais; ao segundo, o direito à consubstanciação dos interesses econômicos particulares e desiguais.
Dessa forma, sob a designação expressa de direitos do cidadão e direitos do homem, constata-se que o conteúdo dos primeiros (direitos do cidadão) é a participação na comunidade política, especificamente, na sociedade política (Estado); enquanto que os últimos são os direitos do membro da sociedade civil, isto é, do homem circunscrito ao egoísmo. Assim, a característica decisiva da sociabilidade do capital, ou seja, da ordem burguesa, é a propriedade privada.
No entanto, é preciso não esquecer que a propriedade privada gerou um desenvolvimento fantástico, a questão daí para frente era a superação dessa forma de propriedade, transformando- a em social. A transição socialista, então, é a superação operada com a passagem da propriedade privada para a propriedade social, formando uma comunidade universal. É essa a essência da transição socialista.
A questão que se coloca a partir desse instante é de que maneira ocorre esse processo na análise da realidade, ou melhor, na passagem da propriedade privada para a propriedade social? Esta é a grande questão colocada por Marx, em pleno século XIX, cuja análise já aparece nos seus escritos de juventude e será mantida pelo resto da vida. Está formulada, por exemplo, na Ideologia Alemã, que foi escrita entre 1845 e 1846. Esta passagem, da propriedade privada para a social, “ocorrerá no instante em que existir um universo gigantesco de riqueza, riqueza material e espiritual”.
Para que esta concepção fi que clara, é preciso estabelecer o que seja riqueza material e espiritual. Quando o mundo de riqueza material e espiritual estiver de um lado e a pobreza material e espiritual estiver de outro, as condições necessárias à transição estarão postas. Atualmente, observa-se ao mesmo tempo um universo magnífico de riqueza material e espiritual, em praticamente uma parte da humanidade, enquanto a outra parte é o repositório da miserabilidade, tanto material quanto espiritual, uma vez que esta formação desigual está na essência mesma da sociedade capitalista. Esse fenômeno expressa uma imensa população despossuída, não apenas de bens materiais, mas, sobretudo, de bens espirituais, o que acentua a emergência de um processo de transformação social, com a tendência de volta à barbárie (canibalismo) num processo de destruição de sua própria espécie, exemplo máximo da miserabilidade a qual o humano está sendo exposto.
A riqueza espiritual significa, na realidade, o aperfeiçoamento de todas as capacidades ou capacitações humanas e espirituais, tais como a inteligência, o intelecto, a sensibilidade em termos de sentimento humano; ou seja, não é um princípio qualquer para além ou transcendente da dimensão material; é um componente decisivo, absolutamente nítido, cuja expressão maior, mais imediata, é o fato de que o ser humano tem pensamento, consciência. E a própria linguagem é a expressão disso, posto ser “a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens”. (MARX, 1987, p. 43). A linguagem é uma atividade ativa, é a consciência se fazendo, se pondo, se colocando. Na realidade, a fala é a consciência universal.
Para melhor compreender tal questão é importante fazer um parênteses, para que fique claro o que seja a riqueza material. Trata-se da produção e reprodução dos bens produzidos pelo homem na construção do seu mundo, como ser capaz de gerar a “objetivação do gênero humano”. Isso porque o ser humano, enquanto tal, se põe como um ser especial, pois é ele que constrói o seu mundo. O homem constrói o seu mundo através do trabalho. A natureza é o campo inicial para a formação do ser, mas o homem não habita mais a natureza, ele habita o mundo que ele próprio criou a partir das transformações da natureza. Estas transformações foram por ele produzidas a partir de seus atos teleológicos, com o trabalho. É nesse processo que o ser social, o homem, constrói sua própria humanidade.
Por outro lado, é preciso não esquecer que o homem tem dimensões biológicas das quais não pode se apartar, basta pensar, por exemplo, na nutrição e na sexualidade. Entretanto, nem a nutrição nem a sexualidade se resolvem de forma natural no homem, mas sim de forma social, ou seja, humana. Dessa maneira, a partir do momento em que uma parte da humanidade se apropria de toda a riqueza material e espiritual criada pela sociedade e destitui a outra parte dessa riqueza, põe-se a necessidade de desencadear um processo de transformação dessa realidade. Entendendo por riqueza material e espiritual um mundo efetivado pelo homem, aquele que está desprovido de quaisquer riquezas e, mais ainda, sem nenhuma chance de usufruir dos benefícios gerados nesse processo, encontra-se destituído da morada mesma do homem.
Além do mais, num mundo de riquezas, aquele que está privado desses benefícios:
[…] retorna à caverna etc., mas regressa a ela sob
uma figura estranhada, hostil. O selvagem na sua
caverna – esse pitoresco elemento natural oferecendo-
se para fruição e abrigo – não se sente estranho,
ou sente-se, antes, como em casa, como o peixe na
água. Mas o porão dos pobres é uma habitação hostil.
(MARX, 2004, p.146).
Na verdade, o pobre, o expropriado, o desvalido, de quem se extrai a mais valia, é aquele que perdeu, antes de tudo, o direito ao habitat do homem, que é este imenso mundo de riquezas, que foi gerado pelo próprio homem, no seu processo de humanização. Ele perdeu, então, as condições de ser homem, de ser humano. Essa é uma dimensão, um aspecto absolutamente decisivo no processo de construção da humanidade do homem, uma vez que o mundo do homem é feito de dimensões materiais e espirituais. O homem destituído do mundo é o homem privado de humanidade, isto é, das condições materiais e espirituais próprias ao ser humano. Submetido à violência, apreende, e aprende a praticar, a violência, gerando um mundo de terror, violência contra violência.
Para que o processo de transformação se efetive é decisivo que a maioria da população tenha acesso às condições materiais e espirituais, geradas pelo próprio homem, que foram apropriadas privadamente. A partir daí será preciso, então, que essa maioria se conscientize das suas condições, como o primeiro momento de um processo de transformação para si, como classe, e que supere os obstáculos que a separam da verdadeira humanidade, pois esta é a forma de realizar a verdadeira humanidade.
Tal transformação não deve ser feita simplesmente para detenção do poder político, pois embora a emancipação política seja um passo importante, simboliza “a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral. (MARX, s/d, p. 51). Na realidade, o poder político é detido simplesmente como mediação instrumental, porque a revolução política é um momento importante nesse processo, mas terá de ser superada com a realização da emancipação humana. Só poderá haver uma sociedade verdadeiramente humana, na qual haja o reino da liberdade, quando se extinguir a política e o Estado; ou seja, quando houver a dissolução do poder enquanto dominação. A defesa da dissolução do Estado e a geração de um processo de cooperação dos trabalhadores livremente associados é resultado do fato de que o Estado e a política se tornam inúteis nesta nova forma de organização social.
Portanto, a autoconstituição, ou construção do homem, só é possível de se tornar realidade a partir de duas destituições: 1) da propriedade privada e 2) da política. É somente a partir da superação da propriedade privada, na direção da propriedade social, e da destituição do Estado, da política, que o processo será conduzido para a realização da emancipação humana. Isto é, emancipação da humanidade, porque tanto a propriedade privada quanto o Estado são parcelas das forças sociais alienadas na sociedade capitalista.
A discussão não pode ser sobre se é este ou aquele Estado que está distante ou acima da sociedade. Na realidade, é da natureza do Estado, de sua essência fundamental, tomar distância em relação à sociedade civil, porque ele é um usurpador de energias sociais. O Estado nada mais é do que o conjunto da alienação social. Isso porque recolhe um coágulo, uma parte da sociedade, como um todo, voltando-o em benefício de uma parte e ao mesmo tempo contra a sociedade civil.
Assim é que a organização da sociedade civil, na articulação com o Estado, é a preservação das relações privadas de produção, ou das relações estatizadas de produção. Daí porque o estatismo não é socialismo, uma vez que a transição socialista não consiste na passagem da propriedade privada à propriedade estatal, mas sim na passagem da propriedade privada à propriedade social, qual seja, a propriedade do conjunto dos trabalhadores, isto é, dos produtores que a regem livremente.
Essa sociedade, regida pelos produtores livremente associados, pode ser denominada de sociedade comunista, isto é, sociedade humana. Não aquela sociedade primitiva, na qual a luta pela sobrevivência é constante para a maior parte dos homens, que se encontram despossuídos de qualquer riqueza material e espiritual. A sociedade comunista, ou seja, a sociedade como uma só comunidade, é a verdadeira sociedade humana. Isso porque:
O comunismo distingue-se de todos os movimentos
anteriores pelo fato de que subverte os fundamentos
de todas as relações de produção e de intercâmbio
anteriores, e de que aborda pela primeira vez conscientemente
todos os pressupostos naturais de criação
dos homens que nos precederam, despojando-
-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder
dos indivíduos unidos. (MARX& ENGELS, 1987,
p.110).
Em termos de entendimento, quanto ao estabelecimento da sociedade comunista, sociedade verdadeiramente humana, explicam ainda os autores:
Sua instituição é essencialmente econômica, a produção
material das condições dessa união (dos trabalhadores
livremente associados) faz das condições
existentes condições de união. O existente, que
o comunismo está criando, é precisamente a base
real para tornar impossível tudo o que existe inde-
pendentemente dos indivíduos, na medida em que o
existente nada mais é do que um produto do intercâmbio
anterior dos próprios indivíduos. (MARX&
ENGELS, 1987, p.110).
Assim, para que o homem possa atingir a sociedade comunista, ou seja, a emancipação humana, é preciso entender que no processo histórico de desenvolvimento da sociedade, o trabalhador, aquele que gera a riqueza, e a própria riqueza, são contrários. Entretanto, não basta dizer que são duas faces de um mesmo todo, que constituem uma totalidade, porque ambos são formações do mundo da propriedade privada, embora o lugar que ocupe cada um deles nessa contradição seja determinado.
No processo histórico de construção da sociedade capitalista burguesa duas categorias são determinantes: o proletariado e a riqueza, materializada na propriedade privada. Nesse processo, o proletariado e a riqueza são contrários mesmo que constituam uma totalidade. São, na realidade, as duas faces de uma mesma totalidade, a sociedade burguesa; pois são formações do mundo da propriedade privada. Por isso, compreender o lugar que cada um ocupa é fundamental para saber o papel que desempenharão no processo de transformação da ordem do capital.
A propriedade privada, enquanto propriedade privada da riqueza, é forçada a perpetuar a sua própria existência e, por isso mesmo, de seu contrário, o proletariado. A propriedade, que encontra a satisfação em si mesma, é o lado positivo da contradição, que luta para eternizar-se; e o proletariado, inversamente, constitui o lado negativo, a inquietação da contradição, aquele que é destituído de si no processo de produção. Ele é forçado, enquanto proletariado, a abolir-se a si mesmo e a seu contrário, a propriedade privada, dissolvendo-a e dissolvendo-se, enquanto classe, para continuar construindo sua humanidade.
Na verdade, a classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação. Porém, a classe possuidora sente-se à vontade nesta alienação, porque encontra em si uma confirmação, reconhece na alienação de si o seu próprio poder e a aparência de uma existência humana. Enquanto a classe dos proletários sente-se aniquilada nesta alienação, vendo em si a impotência e a realidade de uma existência inumana. Por isso, é no aviltamento, na revolta por suas condições de vida, na revelia a esse processo para o qual é empurrada, contra aquela classe que se tornou proprietária da riqueza gerada socialmente, que é obrigada a lutar. Assim, o proletariado precisa utilizar-se de todos os meios para superar a contradição entre a sua natureza humana e a sua situação miserável frente aos que detêm privadamente a riqueza.
É no seio desta contradição que o proprietário privado é, pois, a parte conservadora, sendo o proletário a parte destruidora da relação. Do primeiro, emana a ação, através de quaisquer meios, para manter a contradição; do segundo, provém também a ação, embora utilize os meios que estão ao alcance inversamente, ou seja, na busca por aniquilar a contradição. É verdade que, no seu movimento econômico, a propriedade privada se encaminha por si mesma para uma dissolução; mas o faz unicamente através da evolução de um processo independente de si mesma, inconsciente, que se realiza contra a sua vontade na medida em que a natureza das coisas gera esse condicionamento. Isto posto, o proletariado consciente de sua miséria moral e física e da negação de sua humanidade, deve encontrar meios de superar a si mesmo enquanto trabalhador, resgatando em-si o homem, o humano.
O proletariado executa a sentença que a propriedade pronuncia contra si mesma ao engendrar o proletariado, executando, ainda, a sentença que o trabalho assalariado pronuncia contra si mesmo ao engendrar a riqueza apropriada pela minoria, gerando nesse processo a sua própria miséria. A vitória do proletariado não significa de modo algum que ele se tenha transformado em ser absoluto da sociedade, porque ele só conseguirá eliminar a propriedade privada eliminando a si mesmo, enquanto proletário e abolindo o seu contrário. Depois disso, o proletariado desaparece tal como a propriedade privada.
Se ao proletariado é atribuído esse papel histórico não é, de maneira alguma, por ser considerado como um ser maior, mas porque nele encontra-se plenamente desenvolvida e consumada a
abstração de toda a humanidade, inclusive a aparência de humanidade, pois está ao lado da riqueza produzida e apropriada privadamente como partícipe, explicitando em seu estranhamento toda a miséria dessa contradição. Isso porque é nas condições de vida do proletariado que se encontram condensadas todas as condições de vida da sociedade atual, no que possam ter de mais inumano. No proletariado, com efeito, o homem perdeu-se a si mesmo, mas vai adquirindo, ao mesmo tempo, a consciência teórica dessa perda.
Além disso, a miséria que o proletariado já não pode evitar nem mascarar, a miséria que lhe é imposta inelutavelmente – expressão prática de sua imensa necessidade –, obriga-lhe a revoltar-se contra tal desumanidade. É por isso que o proletariado pode e deve libertar a si mesmo. Todavia, não pode se libertar sem abolir as suas próprias condições de vida, nem pode abolir suas próprias condições de vida sem acabar com as condições de vida da sociedade atual, que acentua sua própria situação. Por isso, não é em vão que o proletariado passa pela rude, mas fortificante, escola do trabalho. Ora, o trabalho é a categoria que põe o ser humano, uma vez que com o trabalho o homem constrói o seu mundo, em uma sociedade cujo fundamento é a apropriação privada de toda riqueza gerada socialmente, portanto, essa relação não deveria jamais se basear na alienação do produtor no ato mesmo da produção.
Não se trata, pois, de saber qual o objetivo deste ou daquele proletariado, ou até do proletariado como um todo, mas de entender o que é o proletariado e o que ele historicamente foi obrigado a fazer de acordo com este ser que ele é. O seu fim e a sua ação histórica estão traçados de modo tangível e irrevogável pela sua própria situação e por toda a organização da sociedade burguesa atual.