Capítulo 9
POSSIBILIDADE DE HUMANIZAÇÃO NUM MUNDO GLOBALIZADO
Realização da sociedade humana
O que se verifica em termos concretos é que a globalização gerou todas as condições para a transformação do processo de alienação, posto que ao lado da riqueza produzida socialmente tem-se ainda uma vasta população destituída de qualquer bem e até mesmo da possibilidade do seu acesso, privada de qualquer perspectiva de continuar construindo a sua humanidade.
Daí porque a globalização gera condições empíricas para a mutação da sociedade, uma vez que, no seio da sociedade capitalista, já estão postas as condições de sua transformação. Pensemos, por exemplo, no grande desenvolvimento das forças produtivas e nos movimentos migratórios de massas humanas desvalidas a partir de migrações econômicas e políticas, bem como na ampliação das inter-relações entre povos, raças, religiões, gostos, com tendência à aglomeração de populações em determinados espaços, o que gerou um enorme processo de urbanização.
Assim, uma nova globalização pressupõe que as transformações sejam centradas na humanização do homem, e não mais no lucro, no dinheiro; uma vez que, na fase vivida pelo capital, o centro das preocupações é ocupado pelo dinheiro, em suas formas mais agressivas, um dinheiro em estado puro, sustentado por uma informação ideológica, com a qual se encontra em simbiose. Como consequência disso, ocorre uma violenta distorção, no sentido e no objetivo da vida em todas as suas dimensões, tais como no trabalho e no lazer, o que propicia a valorização das pessoas e a constituição do espaço geográfico de modo desordenado.
Na realidade, só será possível outra forma de organização global, se partirmos do princípio de que é preciso colocar o homem, o humano, no ápice das preocupações do mundo, não só como dado filosófico, mas também como objetivo para realização das suas ações. E o resultado desta nova visão, desta nova compreensão do mundo, assegurará a humanização das relações interpessoais, bem como da solidariedade social dos indivíduos entre si, entre eles e a sociedade, e entre a sociedade e o Estado que, ao longo do processo de transformação, será superado. Todo esse processo imprimirá uma nova forma de relação social capaz de transformar o mundo, isto é, a sociedade capitalista, na sociedade verdadeiramente humana.
Dentro dessa concepção, estaria superada a ideia de que o processo e a forma atuais de globalização seriam irreversíveis, pois a própria globalização gerou as possibilidades reais, concretas, possíveis para realização da transformação sob condições determinadas, fundada na conjunção de dois valores; a saber, de um lado, aqueles valores fundamentais, essenciais e que são fundadores da própria humanização do homem, válidos em qualquer tempo e lugar, tais como liberdade, dignidade e felicidade, e de outro, todos os valores contingentes capazes de instrumentalizar as ações do homem na construção da verdadeira sociedade humana, como exemplo, a técnica.
A globalização aponta para a possibilidade de uma sociedade humana, onde se teria o intercâmbio entre os povos, a concentração do processo de urbanização, a ideologização acentuada das relações sociais, mas também o empobrecimento das populações tanto relativo como absoluto, e a perda da qualidade de vida das camadas médias, além da politicização da sociedade. Acrescido do fato de que a atual globalização, através do processo de manipulação dos meios de comunicação, estabelece como eixo central do mundo as relações de consumo. Este fato repercute na vida de toda a população, provocando grandes consequências na produção, nas formas presentes de existência e nas perspectivas das pessoas.
Na verdade, a realização de uma nova história passou a ser possível a partir da mistura de povos, raças, culturas, religiões, etc, fenômeno gerado pela própria globalização. Além do fato de que com a aceleração da urbanização, no último quarto do século XX, com as mutações nas relações de trabalho, acrescidas do desemprego crescente e do rebaixamento dos salários insuportavelmente, impõe-se a necessidade de superação deste modo de produção, cujo elemento desencadeador é a metamorfose das relações de trabalho.
Com o advento da sociedade capitalista, o trabalhador se livrou das amarras feudais e se tornou livre para vender no mercado a única propriedade que lhe restou, sua força de trabalho. É com a transformação dessas relações, nos dias atuais, que a organização social não mais absorve o trabalhador, transformado agora em consumidor, para a ampliação cada vez maior do exército de reserva e do seu lumper. Este passa a ser o momento histórico em que o trabalhador vai se tornando livre das relações que o prendia ao capitalista, pois estão sendo geradas as condições para que um novo modo de relação se materialize, dando aos trabalhadores possibilidades de compreender o seu lugar neste mundo. É quando, então, o trabalho será não mais sofrimento e expropriação, mas realização da humanidade do homem.
Assim, através dessas metamorfoses, é possível pensar o mundo como um todo globalizado humanamente, e que forma uma universalidade, respeitando as particularidades e realizando a humanidade do homem a partir da construção de um novo ethos, de uma nova ideologia e de concepções políticas estruturadas na solidariedade, tendo a liberdade de cada um como a realização da liberdade de todos. É através da própria dinâmica entre as universalidades empíricas, concretas, de desenvolvimento das forças produtivas, isto é, da técnica, materializada na sua socialização nas formações particulares, que será possível a superação do reino da necessidade e, finalmente, a realização da humanidade do homem enquanto ser social.
É demasiadamente concreta e visível a grave crise atual que atravessa a sociedade capitalista em toda sua universalidade. A globalização da relação de produção nessa forma de organização social fez com que se tornasse um todo, passando a humanidade a ser capaz de identificar-se e reconhecer-se nesta unidade, apesar das diferenças entre os países, lugares, povos, etc.
Por isso, a consciência de pertencer ao mundo e nele estar inserido é algo concreto, que se tornou possível pelo amplo desenvolvimento da técnica e das ações dos próprios indivíduos, constituindo, neles próprios, as condições para que uma leitura diferente fosse feita desse mundo globalizado. Na realidade, foi a expansão das relações capitalistas sociais como um todo que gerou uma produção universal da história; uma relativa liberação do homem em relação à natureza, na medida em que os objetos e materiais responsáveis pela realização e satisfação das necessidades humanas são cada vez mais objetos e materiais manufaturados, ou seja, construídos pelo próprio homem.
Assim é que a solução para o atendimento das suas necessidades o homem não busca mais diretamente na natureza, mas no seu próprio processo de fabricação, realizando, com isso, a máxima de que “o homem é um animal que fabrica objetos”, o que torna cada vez mais patente seu afastamento das barreiras naturais para realização de sua humanização.
Não resta dúvida de que a consciência de um novo mundo está sendo gestada – a partir do velho mundo – pelo nível de informação, que demonstra o quanto o mundo é um só, o quanto estamos próximos um do outro e, com isso, a certeza de que pertencemos ao mesmo mundo. A gestação deste novo mundo já é uma realidade histórica, com particularidades diversificadas, um todo humano.
As condições objetivas e subjetivas para superação das relações desalmadas perpetuadas pelo mito do dinheiro e da tecnologia estão postas, bem como a possibilidade de instauração de um mundo novo fundado no trabalho humano como valor de uso e livre.
As condições para a instauração do mundo verdadeiramente humano estão dadas pela globalização das relações sociais. Assim, a verdadeira história humana está sendo gerada no seio da velha sociedade e sua realização passa necessariamente pela consciência desse processo, pela ação expressa nas lutas, no sentido de transformar as relações sociais com mudanças radicais no uso da tecnologia, para que esta seja um instrumento de realização da verdadeira sociedade humana. Importante destacar é que, aliado a este projeto, está a concepção de que é preciso compreender a espécie humana como gênero, como um todo único na sua profunda diversidade, enquanto particularidade e singularidade, na formação de um todo universal, capaz de construir “a sociedade humana ou a humanidade social”, conforme afirma Marx (1987, p.14), na X Tese ad Feuerbach.
Em síntese, para compreender a possibilidade de uma universalidade verdadeiramente humana, se põem duas grandes mutações: a) o infinito desenvolvimento das forças produtivas e b) a preocupação filosófica do homem em buscar a solução das questões na raiz, que é o próprio homem, dentro da concepção ontológica. A filosofia se transforma em instrumento de mudança, e as mudanças são as armas da filosofia, como diz Marx, para que um mundo novo se ponha. Logo,
É fato, no entanto, que a arma da crítica não pode
substituir a crítica das armas, o poder material tem
de ser derrubado pelo poder material, no entanto,
também a teoria se transforma em poder material
assim que se apodera das massas. A teoria é capaz
de apoderar-se das massas assim que se evidencia
ad hominem [no ser humano – latim], e de fato ela
se evidencia ad hominem tão logo se torna radical.
Ser radical signifi ca agarrar a questão pela raiz. Mas
a raiz é, para o ser humano, o próprio ser humano.
[…] o ser humano, é o mais nobre dos seres para o
ser humano, ou seja, com o imperativo categórico
de derrubar todas as condições que fazem do ser
humano um ser humilhado, oprimido, abandonado,
desprezível. (MARX, 2010, p.44).
Portanto, é fundamental esclarecer que o entendimento da contradição entre o proletariado, aquele que gera a riqueza, e aqueles que se apropriam dessa riqueza, os proprietários privados, faz parte de uma etapa do processo de desenvolvimento da humanidade. A sociedade civil, a sociedade burguesa, é um momento importante e determinante, no qual foi gerada imensa riqueza material e espiritual, capaz de conduzir o homem à verdadeira sociedade humana, onde terá sido superada toda e qualquer necessidade e se instaurará o reino da liberdade, cabendo a todos os homens, em sua diversidade, formarem uma única comunidade. E, assim, “em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”. (MARX, 1980, pag. 38). Eis o desafio posto para a construção da sociedade verdadeiramente humana.