Assustado com a própria imagem refletida no espelho,
o pensamento abre uma perspectiva para o que está
situado além dele!
Os fatos de nada valem quando não estão dados,
mas não nega sua ocorrência. A bondade é uma mártir
da lei moral. A razão, porém, tira as consequências que
a burguesia queria evitar: ela amaldiçoa o catolicismo,
no qual vê a mitologia mais recente e, com ele, a
civilização em geral. As energias ligadas ao sacramento
são redirecionadas para o sacrilégio.
Essa inversão, porém, é transferida pura e
simplesmente à comunidade.
Em tudo isso, não procede de modo algum
com o fanatismo dos católicos em face dos incas.
Apenas se dedica esclarecida e diligentemente à
faina do sacrilégio, que os católicos também têm
no sangue desde tempos arcaicos.
Os comportamentos proto-históricos que a
civilização declarara tabu e que haviam se
transformado sob o estigma da bestialidade e
comportamentos destrutivos, continuaram a
levar uma vida subterrânea. Eles não são mais
praticados como comportamentos naturais,
mas proibidos por um tabu. Se compensa o
juízo de valor contrário, sem fundamento
na medida em que nenhum juízo de valor
tem fundamento, pelo seu oposto.
Assim, quando se repete as reações primitivas,
já não são mais as primitivas, mas as bestiais.
Nisso não é diferente porque não encarna, em
termos psicológicos, nem a libido não sublimada
nem a libido regredida, mas o gosto intelectual
pela regressão, amor intellectualis diaboli, o prazer
de derrotar a civilização com suas próprias armas.
O resultado é:
Amar o sistema e a coerência e manejar
o órgão do pensamento racional.
Ao autodomínio, essas instruções estão para
as da filosofia positivista, às vezes, assim como a
aplicação especial está para o seu princípio:
“A virtude”, “na medida em que está fundada
na liberdade interior, também contém para os
homens um mandamento afirmativo, que é o de
submeter todos os seus poderes e inclinações ao
seu poder (da razão), colocar, o mandamento do
domínio de si mesmo, ao qual se acrescenta à
proibição de se dominar por suas emoções e
inclinações (o dever da apatia): porque, se a razão
não toma em mãos as rédeas do governo, aquelas
agem sobre os homens como se seus amos.”
Como esclarecimento é preciso dissertar sobre a
autodisciplina do criminoso. “Primeiro, imagine
seu plano com vários dias de antecedência, reflita
sobre todas as consequências, examine com atenção
o que poderá lhe ser útil… o que seria suscetível de
traí-la, e pese essas coisas com o mesmo sangue-frio
como se tivesse a certeza de ser descoberta.”
A fisionomia do assassino deve revelar a maior calma.
“… faça reinar nela a calma e a indiferença e trate de
adquirir o maior sangue-frio possível nessa situação…
se não tivesse a certeza de não ter nenhum remorso,
e jamais a terá senão pelo hábito do crime, se não
tivesse a inteira certeza disso, em vão trabalharia para
se tornar senhor do jogo de sua fisionomia.”
A liberdade de remorsos é tão essencial para
a razão formalista quanto a do amor ou do ódio.
O arrependimento apresenta como existente o
passado que a burguesia, ao contrário da ideologia
popular, sempre considerou como um nada;
ele é a recaída, e sua única justificativa perante
a práxis burguesa, seria preveni-la e opina por isso
como maquiavelista que a humildade e o
arrependimento assim como o medo e a esperança,
apesar de toda sua irracionalidade, seriam bastante úteis.
“A apatia é (considerada como fortaleza) um pressuposto
indispensável da virtude”, mas é preciso distinguir da
“apatia moral” a insensibilidade no sentido
da indiferença a estímulos sensíveis.
O entusiasmo é mau.
A calma e a determinação
constituem a força da virtude.
“Tal é o estado de saúde na vida moral;
ao contrário, a emoção, mesmo quando é
excitada pela representação do bem, é da
brilhante e instantânea aparição que deixa
atrás de si a lassidão”, como um vício…
“Minha alma é dura, e estou longe de achar
a sensibilidade preferível à feliz apatia de que
desfruto. …tu te enganas talvez sobre essa
sensibilidade perigosa
de que se orgulham tantos imbecis.”
A apatia surge nos momentos decisivos da
história burguesa, e mesmo da Antiguidade,
quando os pauci beatia, em face da força
superior da tendência histórica, se dão conta
da própria impotência. Ela assinala o recuo da
espontaneidade individual-humana para a esfera
privada, que só então logra se constituir,
assim como a autêntica forma de vida burguesa.
O estoicismo – e é nisto que consiste a
filosofia burguesa – torna mais fácil para os
privilegiados, em face dos sofrimentos dos outros,
enfrentar as ameaças a si próprios. Ele preserva o
universal, elevando a vida privada ao nível de um
princípio para se proteger dele. A esfera privada do
burguês é o patrimônio cultural decaído da classe superior.
O credo da burguesia é a ciência.
A burguesia abomina toda veneração cuja racionalidade
não se possa demonstrar: a fé em Deus e em seu
filho morto, a obediência aos dez mandamentos, a
superioridade do bem sobre o mal, da salvação sobre
o pecado. A burguesia se vê atraída pelas reações proscritas
pelas lendas da civilização. Ela opera com a semântica e
com a sintaxe lógica como o mais moderno positivismo,
mas diferentemente desse empregado da mais nova
administração, ela não dirige sua crítica linguística de
preferência contra o pensamento e a filosofia, mas,
filha que é do esclarecimento militante, contra a religião.
“Um Deus morto!” diz a burguesia, de Cristo, “nada é
mais cômico do que essa incoerência do dicionário católico:
Deus, quer dizer eterno; morto, quer dizer…
não eterno. Cristãos imbecis, o que quereis fazer
com vosso Deus morto?”
A transformação do que é condenado sem prova
científica em algo digno de ser ambicionado,
bem como do que é reconhecido sem base em provas
em objeto da abominação, a transvaloração dos valores,
“a coragem para o proibido” sem o traiçoeiro “vamos!”,
sem o seu idealismo biológico, eis aí sua paixão específica.
“Será preciso de pretextos para cometer um crime?”
Nietzsche, na quintessência de sua doutrina, afirma:
“Os fracos e os malformados devem perecer: primeira
proposição de nossa filantropia. E convém ainda ajudá-los
a isso, para ele o mais prejudicial que qualquer vício
– A compaixão ativa por todos os malformados e fracos –
o cristianismo…”.
A religião cristã, “singularmente interessada em domar
os tiranos e reduzi-los a princípios de fraternidade …
desempenha aqui o papel do fraco; ela o representa,
ela deve falar como ele … e devemos estar persuadidos
de que esse laço [de fraternidade] foi, na verdade, proposto
pelo fraco, foi sancionado por ele quando a autoridade
sacerdotal se encontrou por acaso em suas mãos”.
É isso que contribui à genealogia da moral em que se
celebra os poderosos e sua crueldade exercida perante
tudo o que não pertence a eles próprios.
“Eles gozam aí da liberdade de toda coerção social,
buscam nas regiões selvagens uma compensação para
a tensão provocada por um longo encerramento e
clausura na paz da comunidade, eles retornam à inocência
moral do animal de rapina, como monstro a se jubilar,
talvez saindo de uma série horrorosa de assassinatos e
incêndios, estupros, torturas, com a insolência e a
serenidade de quem cometeu apenas uma travessura
de estudantes, convencidos de que os poetas terão agora
e por muito tempo algo a cantar e a celebrar…”
A reconciliação da civilização com a natureza,
que o cristianismo queria obter prematuramente
através da doutrina do deus crucificado,
permaneceu tão estranha ao judaísmo quanto
o rigorismo do esclarecimento.
A religião e a filosofia não pregaram o sentimento,
sua lei fria não conhece nem o amor nem a fogueira.
A luta da filosofia contra o monoteísmo atinge a
doutrina cristã mais profundamente do que a judaica.
É verdade que ele nega a lei, mas ele quer pertencer ao
“eu superior”, não ao natural, mas ao mais-que-natural.
Ele quer substituir Deus pelo super-homem porque o
monoteísmo, sobretudo em sua forma corrompida, o
cristianismo, se tornou transparente como mitologia.
Mas do mesmo modo que os velhos ideais ascéticos a
serviço desse eu superior são enaltecidos pela filosofia a
título de autossuperação “em vista do desenvolvimento da
força dominadora”, assim também o eu superior revela-se
como uma tentativa desesperada de salvar Deus,
que morreu, e como a renovação do empreendimento
do positivismo no sentido de transformar a lei divina
em autonomia, a fim de salvar a civilização europeia que,
no ceticismo inglês já havia entregue o espírito.
O princípio da filosofia positivista de “fazer tudo com
base na máxima de sua vontade enquanto tal, de tal modo
que essa vontade possa ao mesmo tempo ter por objeto
a si mesma como uma vontade legisladora universal”
é também o segredo do super-homem. Sua vontade
não é menos despótica que o imperativo categórico.
Ambos os princípios visam a independência
em face de potências exteriores, a emancipação
incondicional determinada como a
essência do esclarecimento.
Todavia, quando o temor da mentira (que Nietzsche,
nos momentos mais luminosos, tachou de “quixotismo”)
substitui a lei pela auto-legislação e tudo se torna
transparente como uma única grande superstição desnudada,
o próprio esclarecimento e até mesmo a verdade em todas
as suas formas tornam-se um ídolo, e nós percebemos
“que também nós, os conhecedores de hoje, nós ateus e
anti-metafísicos, também tomamos nosso fogo do incêndio
ateado por uma fé milenar, aquela fé dos cristãos que
também foi a de Platão, para a qual Deus é a verdade
e a verdade, divina”.
Portanto, mesmo a ciência…,
sucumbe à crítica à metafísica.
A negação de Deus contém em si a contradição insolúvel,
ela nega o próprio saber. Sade não aprofundou a ideia do
esclarecimento até esse ponto de inversão.
A reflexão da ciência sobre si mesma, a consciência moral
do esclarecimento, estava reservada à filosofia,
isto é, aos alemães.
Para Sade, o esclarecimento não é tanto um fenômeno
espiritual quanto social. Ele aprofundou a dissolução
dos laços, isto é, à crítica à solidariedade com a sociedade,
as funções e a família, até o ponto de proclamar a anarquia.
Sua obra desvenda o caráter mitológico dos princípios
nos quais, segundo a religião, se funda a civilização:
do decálogo, da autoridade paterna, da propriedade.
Cada um dos dez mandamentos vê comprovada
sua nulidade perante a instância da razão formal.
Seu caráter ideológico fica inteiramente comprovado.
O arrazoado em defesa do assassínio, é própria autoridade
que o pronuncia. Para ela, racionalizar os atos não cristãos
é uma tarefa mais fácil que a tentativa feita outrora
de racionalizar pela luz natural os princípios cristãos
segundo os quais esses atos provêm do diabo.
A razão romana, mais ainda que o Deus prussiano,
se alinha ao lado dos batalhões mais poderosos.
Mas a lei está destronada, e o amor que
devia humanizá-la está desmascarado
como regressão à idolatria.
Não foi apenas o amor romântico entre os sexos que,
enquanto metafísica, sucumbiu à ciência e à indústria,
mas todo o amor em geral, pois nenhum prevalece
diante da razão: nem o da mulher pelo homem nem o
do amante pela amada, nem o dos pais nem o dos filhos.
O poder da nobreza anuncia aos subordinados que os
parentes dos senhores, filhas e esposas, serão tratados
tão rigorosamente, ou melhor, ainda mais rigorosamente
que os outros, “e isso justamente para mostrar-vos a
que ponto são desprezíveis a nossos olhos os laços
pelos quais imaginais que estamos presos”.
O amor da mulher é substituído,
assim como o do homem.
As regras da libertinagem devem valer para todas as
mulheres e assim, formula-se o desencantamento
materialista do amor parental.
“Esses laços decorrem do medo que têm os genitores
de serem abandonados na velhice, e o cuidado interessado
que dedicam à nossa infância deve proporcionar-lhes
a mesma atenção em sua velhice.”
O argumento é tão velho como a burguesia.
O amor parental humano como tendo motivos econômicos
já fora denunciado pelos gregos. A filosofia moderna
desencanta também a exogamia, o fundamento da civilização.
Não há nenhum argumento racional contra o incesto, e o
argumento higiênico que se opunha a ele, acabou retirado
pela ciência mais avançada. Ela ratificou o frio juízo do interesse.
“… não está absolutamente provado que as crianças nascidas do
incesto têm mais tendência que as outras a serem cretinas,
surdas-mudas, raquíticas etc…”
A família – cuja coesão é assegurada não pelo amor romântico
entre os sexos, mas pelo amor materno, que constitui a base de
toda ternura e dos sentimentos sociais –
entra em conflito com a própria sociedade.
“Não pensem vocês que poderão fazer bons
republicanos enquanto isolarem na família as
crianças que devem pertencer à comunidade apenas…
Se é extremamente nocivo permitir que as crianças
absorvam em sua família interesses que divergem
muitas vezes dos da pátria, é por isso mesmo
extremamente vantajoso separá-las dela.”
Os “laços do himeneu” devem ser destruídos por
razões sociais, o conhecimento dos pais deve ser
interditado aos filhos, porque eles são unicamente
criança da pátria, e a anarquia, o individualismo,
que a filosofia moderna proclamou na luta contra
as leis, desemboca no domínio absoluto do universal,
a república.
Do mesmo modo que o Deus derrubado ressurge
em um ídolo mais duro, assim também o velho
Estado-gendarme burguês ressurge na violência
da coletividade fascista.
A modernidade levou às últimas consequências o
conceito do socialismo de Estado, em cujos primeiros
passos os heróis haviam fracassado. Se a burguesia os
enviou à guilhotina, a eles, seus políticos mais fiéis,
ela também baniu seu mais franco escritor – Sade –
para o inferno da Bibliothèque Nationale, porque
as crônicas escandalosas sobre os costumes – que,
produzida em série, prefigurou no estilo do século
dezoito o folhetim do século dezenove e a literatura
de massas do século vinte – é a epopeia homérica
liberada do último invólucro mitológico: a história
do pensamento como órgão da dominação.
Assustado com a própria imagem refletida
no espelho, o pensamento abre uma perspectiva
para o que está situado além dele.
Não é o ideal de uma sociedade harmoniosa, especular
sobre o futuro até mesmo para um pensador como Sade,
que exaltou: “guardem suas fronteiras, fiquem em casa”:
e nem mesmo a utopia socialista desenvolvida, mas é sim,
o fato de que ele não deixou a cargo dos adversários a tarefa
de levar o esclarecimento a se horrorizar consigo mesmo,
que faz de sua obra uma alavanca para salvar o esclarecimento.
Ao contrário de seus apologetas, os escritores sombrios
da burguesia não tentaram distorcer as consequências do
esclarecimento recorrendo a doutrinas harmonizadoras.
Não pretenderam que a razão formalista tivesse ligação
mais íntima com a moral do que com a imoralidade.
Enquanto os escritores luminosos protegiam pela negação
a união indissolúvel da razão e do crime,
a sociedade burguesa e da dominação, aqueles proferiam
brutalmente a verdade chocante.
“É nas mãos sujas pelo assassinato das esposas e
dos filhos, ela sodomia, pelos homicídios,
pela prostituição e pelas infâmias que o céu coloca
essas riquezas; e para se recompensar por essas
abominações, ele as põe à minha disposição”.
A justiça da má dominação não é consequente
a ponto de recompensar apenas as atrocidades.
Mas só o exagero é verdadeiro.
A essência da pré-história é o aparecimento do horror
supremo no detalhe. Por trás do cômputo estatístico das
vítimas do pogrom, que inclui os fuzilados por misericórdia,
oculta-se a essência que somente surge à luz na descrição
exata da exceção, ou seja, a mais terrível tortura.
Uma vida feliz num mundo de horror é refutada
como algo de infame pela mera existência desse mundo.
Este torna-se assim a essência, aquela algo de nulo.
Certamente, o assassinato dos próprios filhos e esposas,
a prostituição e a sodomia, são muito mais raros entre os
governantes durante a era burguesa do que entre os
governados, que adotaram os costumes dos senhores de
épocas anteriores. Em compensação, quando estava em
jogo o poder, estes ergueram montanhas de cadáveres
mesmo nos séculos mais recentes.
Comparada à mentalidade e aos atos dos senhores
no fascismo, onde a dominação realizou sua essência,
a descrição entusiástica do sadismo cai ao nível de
uma banalidade inofensiva.
Os vícios privados do sadismo são a historiografia
antecipada das virtudes públicas da era totalitária.
O fato de não ter encoberto, mas bradado ao mundo
inteiro a impossibilidade de apresentar um argumento
de princípio contra o assassinato ateou o ódio com que
os progressistas ainda hoje os escritores luminosos que
expuseram as mazelas da burguesia.
Diferentemente do positivismo lógico, esses escritores
ambos tomaram a ciência ao pé da letra. O fato de que
insistem na razão de uma maneira ainda mais decidida
que o positivismo tem o sentido secreto de liberar
de seu invólucro a utopia contida, como no conceito
de razão, em toda grande filosofia:
a utopia de uma humanidade que, não sendo
mais desfigurada, não precisa mais de desfigurar
o que quer que seja.
Ao ser proclamado a identidade da dominação
e da razão, as doutrinas sem compaixão são
mais misericordiosas que as doutrinas dos lacaios
morais da burguesia.
Daí indagar o grande pensador Nietzsche:
“Onde estão os piores perigos para ti?”,
Ele mesmo responde:
“Na compaixão.”
Ao negar a compaixão, ele salvou a confiança
inabalável no homem, que é cada vez mais traída
quando faz uma afirmação consoladora pela…
compaixão!