Tinha, afinal, decidido, daria um rumo diferente à vida. Reuniu os filhos e comunicou: iria morar num abrigo. Fez um testamento partilhando tudo. O advogado da família se encarregara das providências. Ouviram uma buzina. Levantou-se, abençoou a todos. Apanhou a pequena mala, apenas o necessário. Caminhou até o carro. Entrou. Disse o endereço. No trajeto reconstituiu a história.
Foi num domingo, dia de feira e de vaquejada. Ajudava o pai na lida. Tinha perdido o ânimo depois da morte da mãe – tuberculose. Completara vinte e um anos. Gostava do sítio, de trabalhar a terra, cuidar dos pequenos animais. Queria morar na cidade. Estudar. Aprendera a ler e escrever. Na Escola, a professora, vendo seu gosto pela leitura, emprestava livros. Concluído o primário, na despedida, a professora entregou um embrulho. O pai perguntou: que é isso, menina? Nada, pai, só livros velhos. Vai ter que cuidar do sítio. Calada, entrou no quarto, num baú, guardou os livros. Só à noite, quando o pai pegava no sono, levantava-se, acendia a lamparina e lia, relia e anotava. Quando o pai morreu, vendeu tudo foi morar na cidade. Estudou, se formou, casou, teve filhos e ficou viúva.
No sítio, cuidava da roça, recolhia os animais, ficava no rio lavando a roupa, pensando nas coisas que leu. Menina, tá no mundo da lua! Presta atenção no que tá fazendo. Às vezes ia com o pai à feira. Naquele dia, vestiu a melhor roupa e foi para cidade. Viu muita gente, é o rodeio, disse o pai. O prefeito vai lançar a candidatura para deputado. Posso ir ver? Não conhecia ninguém. Sentou-se na arquibancada, perto do palanque. Com a chegada do prefeito a festa começou. Desfile de vaqueiros, cavalos enfeitados, paravam em frente ao palanque, tiravam o chapéu e cumprimentavam. Quando o último vaqueiro se apresentou foi ovacionado. Escutou, esse não perde pra ninguém! Levantou a vista, ao redor várias pessoas, uma lhe chamou atenção, uma jovem, uns dezesseis anos, a quem o vaqueiro fazia um cumprimento especial. A moça virou-se, seus olhares se cruzaram. Estremeceu. Brotou um sentimento que já vira nos romances. Não tinha sentido, era uma moça como ela, de olhos azuis, pele branca, faces rosadas e os cabelos amarelos, pareciam raios de sol. A moça sorriu para ela.
Terminada a competição o vaqueiro recebeu o prêmio entregue pela jovem. O coração disparou quando o viu beijando a mão dela. Imaginou-se no lugar dele, teve tontura, quase desmaiava. Vamos, demorou tanto que vim buscá-la. Era o pai. Gostou? Mais ou menos, fiquei com pena dos animais. No portão, cruzaram com o prefeito que distribuía sorrisos e panfletos. A jovem se aproximou e entregou-lhe o panfleto, percebeu que tinha algo a mais. O que é isso? Perguntou o pai. É pedindo o voto. O prefeito se aproximou, apertou as mãos dos dois. Ah, prazer! Perguntou o nome. Posso contar com seu voto, não é? O pai respondeu, não sei ler. Sua filha sabe, ela ensina. Basta assinar o nome, dou um jeito para o senhor votar. Cabeça baixa, ouviu o pai se despedindo, ergueu os olhos e sentiu-se fulminada com aquele azul. Corou as faces queimadas de sol, que arderam. Quis correr, se afastar, quebrar o encantamento, não conseguia. Enquanto o pai pegava os cavalos, abriu o papel: “Espero atrás da Igreja, às oito. Não falte”. Ficou assustada. Sentiu tontura. Que isso menina? Deve ser o calor. Sempre voltavam no mesmo dia, mas já estava anoitecendo. Pediu para pernoitar. Estava se sentindo mal. Foi até a farmácia, lá disseram que precisa tomar líquido e repousar. Procuraram uma pensão. Pai, vou deitar, amanhã sairemos cedo.
No horário, estava lá. Ansiosa, aguardou alguns minutos. Ela chegou ofegante, abraçaram-se e se beijaram profundamente. Afastou-a. Não podemos fazer isso, onde já se viu?! Não ia à igreja, mas na escola a professora falava sobre Deus e que Ele tudo via. Aquilo era pecado. Não importa! Beijou-a. A mão percorria com ardor seu corpo trêmulo. Não sabe quanto tempo passou. Ouviram vozes. Ela desprendeu-se. Saiu correndo.
Na pensão, passou a noite em claro. Quando o pai a chamou, já estava pronta. No caminho só pensava no ocorrido. Após alguns dias de agonia e desespero, voltou à cidade. Procurou a moça. Disseram: viajou. O pai tinha ouvido uns boatos. Levou-a embora. O prefeito não venceu a eleição, saiu da cidade. Nunca mais teve notícia.
Nesse dia quando se despediu da família não contou o porquê da decisão.
Era domingo, céu azul límpido; saiu para caminhar; seguiu por outros caminhos, se deparou com uma pequena igreja. Entrou, a missa já começara. Escutava os cânticos e observava. Adiante, uma senhora sentada chamou atenção: a mão direita com um leve tremor apoiava-se em uma bengala, no dedo anelar um pequeno anel com pedra azul; os cabelos esbranquiçados presos, pescoço longo. Algo naquela mão a hipnotizou. Terminada a cerimônia, as pessoas começaram a sair. Esperou. A senhora permaneceu sentada. Alguém se aproximou dizendo: o táxi está esperando. Obrigada, respondeu. Ficou paralisada. Conheceu a voz. Seu corpo estremeceu. É ela, tinha certeza! Aproximou-se, os olhos azuis, esmaecidos, brilharam. Morava numa instituição geriátrica. Vinha aos domingos àquela capela. Tinha seu próprio quarto. Sentia-se só. Convidou-a para visitá-la. Anotou o endereço.
Depois de certo tempo decidiu visitá-la. As visitas passaram a ser rotineiras, nos fins de semana e feriados. Uma tarde, enquanto tomavam chá, virou-se, perguntou: “Quer morar comigo?” Não sei, preciso pensar! “Estarei esperando. Não quero mais visita; só quero se vier para ficar”. Levou um tempo para decidir.
Chegou ao destino. Lá estava, luminosa, na mão, uma rosa vermelha. Abraçaram- se.
O céu azul tingia-se de vermelho. Anoitecia…