“CAPITAL HUMANO”, uma reflexão¹
Diversos são os modos de produção que coexistem na atualidade do capital, na sociedade capitalista moderna. Modernamente, o capitalismo é centralizado na valorização de grandes massas de capital fixo material que, rapidamente, são substituídas por um capitalismo pós-moderno, agora centrado na valorização do capital imaterial, também denominado “capital humano”, capital de conhecimento ou “capital de inteligência”. Essa transformação é acompanhada por novas e revolucionárias metamorfoses do trabalho. O trabalho abstrato simples é substituído por trabalho complexo. O trabalho de produção material, mensurável em unidades de produtos por unidades de tempo, é substituído por trabalho imaterial. É gerado o “capitalismo cognitivo” de uma “sociedade do conhecimento”.
O conhecimento passa a ser a “força produtiva principal” e a principal fonte de riqueza. Na verdade, “o trabalho em sua forma imediata”, mensurável e quantificável, deixa de ser a medida da riqueza criada que depende, cada vez menos, do tempo de trabalho e da quantia de trabalho fornecida; dependerá, isso sim, cada vez mais do “nível geral da ciência e do progresso da tecnologia”. Assim, o “trabalho imediato e sua quantidade não mais aparecem como os principais determinantes da produção”, são apenas “um momento indispensável, porém subalterno, em relação à atividade científica geral”. Logo, “o processo de produção” não é mais confundido como um “processo de trabalho”. São agora duas instâncias de uma mesma questão: o trabalho.
Trata-se, na terminologia de Marx, tanto do “nível geral da ciência” quanto dos “conhecimentos gerais da sociedade”: ora do conhecimento geral, ora das “potencialidades gerais do cérebro humano”, ora da “formação artística, científica, etc.”, que o indivíduo poderá adquirir graças ao “acréscimo do tempo livre”, e que “retroage sobre a força produtiva do trabalho”. A liberação do tempo “para o pleno desenvolvimento do indivíduo” passa a ser considerada, “do ponto de vista do processo de produção imediata, como produção de capital fixo no próprio indivíduo, em si mesmo”. Essa é a concepção de “capital humano”.
Essa questão é de certa forma manipulada, camuflada e, nos tempos atuais, aparece como: a “economia do imaterial”, o “capitalismo cognitivo”, o “conhecimento, principal força produtiva”, o que se denomina como “ciência, motor da economia”. Na concepção marxiana, “O valor encontra hoje sua fonte na inteligência e na imaginação. O saber do indivíduo conta mais que o tempo da máquina. Carregando consigo o seu próprio capital, o homem carrega igualmente uma parte do capital da empresa”.
Assim, não é mais a ciência ou o conhecimento, mas a inteligência, a imaginação e o saber que, juntos, constituem o “capital humano”. Os conhecimentos são diferentes dos saberes e da inteligência, porque eles se referem aos conteúdos formalizados, objetivados, que, por definição, não podem pertencer às pessoas; isto porque o saber é feito de experiências e de práticas tornadas evidências intuitivas, hábitos; e a inteligência sobre todo o leque das capacidades que vão do julgamento e do discernimento à abertura de espírito, à aptidão de assimilar novos conhecimentos e de combiná-los com os saberes. Daí a denominação de “sociedade da inteligência”. Trata-se, então, não apenas de conhecimento nem de qualificações profissionais dos “colaboradores”, e sim: a) as qualidades de comportamento; b) as qualidades expressivas e imaginativas; c) o envolvimento pessoal na tarefa a desenvolver e completar. São qualidades e faculdades habitualmente próprias dos prestadores de serviços pessoais, dos fornecedores de um trabalho imaterial impossível de quantificar, estocar, homologar, formalizar e até mesmo de objetivar.
PRODUZIR-SE: o segredo do trabalho
A informatização da indústria transformou o trabalho em gestão, em um fluxo contínuo de informações. O operador deve: “se dar” ou “se entregar” de maneira contínua a essa gestão de fluxo; tem que se produzir como sujeito para assumi-lo. A comunicação e a cooperação entre operadores são parte integrante da natureza do trabalho. “O desempenho depende, sobretudo, dos aspectos sistêmicos e das relações entre os indivíduos…”. Assim, não é a soma do trabalho dos indivíduos que conta, mas a qualidade e a pertinência das comunicações articuladas em torno do sistema produtivo, porque o trabalho não é mais mensurável de acordo com as normas e padrões preestabelecidos. “Não se sabe mais como definir as tarefas de maneira objetiva. O desempenho não é mais definido na relação com essas tarefas: tem a ver diretamente com as pessoas”; isto porque, o desempenho repousa sobre sua implicação subjetiva, chamada de “motivação”; assim, o modo de realizar as tarefas, que não podem ser formalizadas, não pode tampouco ser prescrito. O que é prescrito é a subjetividade, isto é, precisamente o que o “operador” pode produzir ao “se dar” à sua tarefa. Logo, as qualidades impossíveis de serem demandadas, e que dele são esperadas, são: o discernimento, a capacidade de enfrentar o previsto, de identificar e de resolver os problemas. “A ideia do tempo como padrão do valor não funciona mais. O que conta é a qualidade da coordenação”, a capacidade em assimilar e compreender o que se passa na realidade.
Assim, não mais se mensura o desempenho individual e da prescrição dos meios e procedimentos. Para se alcançar um resultado é exigida a “gestão por objetivos”: os empresários “fixam os objetivos aos assalariados, cabendo a eles desdobrarem-se para cumpri-los. É o retorno ao trabalho como prestação de serviços”; o retorno do servicium, obsequium devido ao suserano na sociedade tradicional. Na atualidade, o fornecimento de serviços, esse trabalho imaterial, torna-se a forma hegemônica do trabalho; o trabalho material é remetido à periferia do processo de produção ou abertamente externalizado. O trabalho imaterial se torna um “momento subalterno” desse processo, mesmo que seja indispensável ou visto do ponto de vista qualitativo. O cerne, o centro da criação de valor, é o trabalho imaterial.
O trabalho imaterial é fundamentado nos conhecimentos, nas capacidades expressivas e cooperativas que não podem ser ensinadas, na clareza presente na utilização dos saberes e que faz parte da cultura do cotidiano. Essa é a diferença fundamental entre os trabalhadores de manufaturas ou de indústrias taylorizadas e os do pós-fordismo. Os primeiros só se tornaram operacionais depois de serem despojados dos saberes, das habilidades e dos hábitos desenvolvidos pela cultura do cotidiano, e submetidos a uma divisão parcelada do trabalho (Marx, cap. XIV e XV d’O Capital). Essa é destruição dos saberes cotidianos da mão-de-obra de origem essencialmente rural (séc. XIX) com métodos disciplinares quase carcerários. Era exigido que os trabalhadores executassem as tarefas com autômatos e sem questionar o comando que a maquinaria industrial lhe transmitia, impondo-lhe a velocidade e a cadência dos atos a serem executados (V. filme TEMPOS MODERMOS).
Já os trabalhadores pós-fordistas, ao contrário, entram no processo de produção com sua bagagem cultural adquirida nos jogos, nos esportes de equipe, nas lutas, disputas, nas atividades musicais, teatrais, etc., atividades fora do trabalho onde são desenvolvidas sua vivacidade, sua capacidade de improvisação e de cooperação. Assim é o saber vernacular do trabalhador que a empresa pós-fordista exige e explora, denominada de “exploração de segundo grau”, subsunção ao capital do trabalho coletivo como trabalho hetero-produzido (ou seja, de capacidades predeterminadas inculcadas pelo empregador), como um produto que continua, ele mesmo, a se produzir”; “não são os indivíduos que interiorizam a ‘cultura da empresa’, mais que isso, é a empresa que vai de agora em diante buscar no nível de vida cotidiana de cada um, as competências e as capacidades de que ela necessita”. As empresas consideram como “seu” o capital humano, porque é um recurso gratuito, uma externalidade que se produz sozinha e que continua a se produzir, e da qual elas apenas captam e canalizam a capacidade de se produzir. Esse “capital humano” não é puramente individual, ele se produz sobre a base de uma cultura comum transmitida pela socialização primária e de saberes comuns. Os pais e os educadores, o sistema de ensino e de formação, participam do desenvolvimento geral e intelectual, tornando-se acessíveis os saberes e conhecimentos, as capacidades de interpretação, de comunicação, de intercompreensão dessa cultura comum. É próprio das pessoas apropriarem-se dessa cultura comum, subjetivando-a. A sociedade e seus dispositivos não podem produzir razões pessoais. Podem apenas produzir e reproduzir o quadro no qual, socializando-se, os sujeitos se produzirão eles mesmos pelo uso que farão da linguagem, do gestual, dos esquemas de interpretação e de comportamento, da cultura de sua sociedade. Nenhuma instituição pode, no lugar dos indivíduos, realizar o trabalho de aprendizagem, de apropriação, de subjetivação. O sujeito é socialmente dado, ele é dado a si mesmo como um ser que tem de se fazer, ele mesmo é o que ele é. Nada pode dispensá-lo dessa tarefa nem obrigá-lo a realizá-la.
Logo, se o saber, que se tornou a fonte mais importante da criação de valor é particularmente o saber vivo, que está na base da inovação, da comunicação e da auto-organização criativa e continuamente renovada, o trabalho do saber vivo não produz nada materialmente palpável, porque ele é, sobretudo, uma economia de rede: o trabalho do sujeito cuja atividade é produzir a si mesmo. Todo usuário do trabalho de rede sincroniza-se continuamente com os outros, e os dados que manipulam para a soma dos dados põem em marcha um processo em que o resultado coletivo excede de longe a soma dos dados manipulados individualmente. Essa “inteligência coletiva”, que assim se origina, lembra um “coro polifônico improvisado”, isto é, a uma atividade que se ajusta às atividades alheias que a excedem e a alimentam e, desse modo, faz surgir um resultado coletivo que ultrapassa as possibilidades dos participantes.
Vê-se aí o modelo perfeito do que se conhece como “externalidades positivas”, isto é, os resultados coletivos que surgem de interações individuais, e possuem um valor sobre essas interações como uma ação positiva. E externalidades positivas são sempre coletivamente itens que beneficiam todos os indivíduos, mas não podem ser estabelecidas conforme o plano de uma empresa, qualquer que ela seja, nem compradas por dinheiro algum, e nunca são convertidas em propriedade privada. O saber vivo imaterial e a cultura do cotidiano pertencem às externalidades positivas. O coro polifônico improvisado, segundo esse paradigma, se aplica por excelência às comunidades virtuais da internet e, ao menos potencialmente, este é o modelo que está presente em todo trabalho interativo na rede. Dessa forma, a divisão do trabalho em tarefas especializadas e hierarquizadas está virtualmente abolida, assim como está a impossibilidade na qual se encontravam os produtores, de se apropriarem dos meios de produção e de autogeri-los. A separação entre os trabalhadores e seu trabalho reificado, e entre este último e o seu produto, está, pois, virtualmente abolida – os meios de produção se tornaram apropriáveis e suscetíveis de serem partilhados. O computador aparece como o instrumento universal, universalmente acessível, por meio do qual todos os saberes e todas as atividades podem, em princípio, ser partilhados. É este direito ao livre acesso e à partilha dos programas de computadores e das redes livres que são reivindicados pelas comunidades revolucionárias.
Para confirmar essa tese é preciso buscar Marx (Ideologia Alemã):
Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram restringidas, indivíduos cujas atividades pessoais eram restringidas por instrumentos de produção limitados e um comércio limitado, apropriaram-se desses instrumentos e não chegaram a esse resultado senão por meio de uma nova limitação. Seus instrumentos de produção se tornaram suas propriedades, mas eles mesmos continuaram subordinados à divisão do trabalho e aos seus próprios instrumentos de produção (…). Na apropriação produtiva, uma massa de instrumentos de produção deve ser subordinada a cada indivíduo, e a propriedade subordinada a todos. O comércio universal moderno não pode ser subordinado aos indivíduos, a não ser que sejam subordinados a todos.
E acrescenta Marx: “O comunismo é a abolição do trabalho – como meio – porque perdeu toda aparência de atividade pessoal” e “se privou de toda substância viva” dos indivíduos, “tornados abstratos”.
Esta é uma questão fundamental para se entender a lógica da sociedade capitalista e sua apropriação do “trabalho imaterial”.²
Recife, novembro, 7 de 2023³
¹ ANDRÉ GORZ – O IMATERIAL : conhecimento, valor e capital.
² Essa é uma questão muito importante e precisa ser analisada com profundidade e divulgada socialmente.
³ Vamos continuar essa reflexão. A segunda parte vai ser analisar os conceitos de: conhecimento, valor, capital. Com essas ferramentas teceremos algumas observações sobre a produção-de si do trabalhador e o exemplo de auto-empreendedor.