CAPÍTULO II – ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA CRÍTICA À FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL
A Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, de 1843, apesar de incompleto, é um diagrama do movimento intelectual de Marx. Este texto contém aspectos determinantes do radicalismo democrático marxiano. No ano de 1840, em virtude da realidade alemã, este pensador já não tinha nenhuma ilusão liberal, mesmo que alguns jovens hegelianos nutrissem esperança ainda na reforma do Estado, com a assunção de Frederico Guilherme IV, e que a débil burguesia também incorporasse algumas das ideias liberais. É na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel que aparece o radicalismo democrático de Marx, já com suas conclusões socialistas. Aí Marx desloca toda a discussão para encontrar uma solução política, por isso parte, em 1844, para uma perspectiva socialista revolucionária.
Esse texto assinala o radicalismo democrático marxiano, do ponto de vista teórico-metodológico, o que se chama de inversão dialética abstrata. O eixo do texto é a polêmica com a elaboração hegeliana, apanhada, em primeiro lugar, através do procedimento metodológico de Hegel. Ou seja, este filósofo põe como sujeito dos processos sociais e dos movimentos reais a Idéia, que não é outra coisa senão um processo do pensamento. Marx pontua então que, para Hegel, o demiurgo, o produtor da realidade, é o pensamento.
Hegel não nega a factualidade, a empiria, ao contrário, dá extremo valor aos fatos, mas apanha o movimento social real de uma maneira peculiar: Supõe que os fatos são como a manifestação e a expressão de uma ideia. Portanto, não nega a factualidade dos processos históricos, trabalha com a factualidade e a empiria, entretanto, tomando-as como mediação da ideia.
Deste modo, as concepções idealistas não desprezam a realidade, os fatos, não é assim que são construídas suas formulações; os pensadores idealistas apanham o movimento social real de maneira peculiar, na medida em que supõem que os fatos sociais são expressão e manifestação de uma ideia, logo, para estes estudiosos, o mundo é o mundo das ideias.
1 – O MISTICISMO LÓGICO DE HEGEL
O processo do pensamento no homem está estruturado na base da empiria, do real. Esta é uma premissa básica e uma questão-chave na crítica feita por Marx, por isso chama de misticismo lógico a concepção de Hegel. Este filósofo não considera a empiria, o real, o concreto e os fatos como realidade e sim como uma espécie de relação aparente. Não são os fatos, o seu encadeamento e suas relações empíricas, que se põem como objeto de reflexão hegeliana, eles são apanhados e tomados como mediação da ideia; ou seja, a racionalidade dos fatos é exterior a eles.
A noção de misticismo lógico considera que a ideia tem, antes de tudo, uma natureza lógica, porque é eminentemente e imanentemente lógica. Esta perspectiva aparece como uma espécie de desenvolvimento pensado do pensamento, porque a ideia é o desenvolvimento conceitual do próprio conceito. Neste sentido, Hegel incorpora os fatos, mas a lógica que preside a essa incorporação não é a dos próprios fatos, uma vez que se atribui essa lógica à realidade. Nessa ordem, todo o texto da Filosofia do Direito, de Hegel, no que possui de mais substantivo, sua temática recorrente, é uma discussão sobre a relação entre sujeito e predicado. Por esse motivo, na concepção marxiana, em Hegel, o pensamento é sempre sujeito e a realidade é sempre predicado.
O misticismo lógico hegeliano considera própria aos processos reais uma racionalidade que não lhes é inerente, mas que é do sujeito, e este sujeito é o pensamento, que conduz Hegel a um empirismo.
É importante observar que frequentemente as discussões partem da ideia de que o empirismo está ligado a uma concepção materialista vulgar dos processos históricos, mas Hegel não é um materialista vulgar; tem uma percepção, apreensão e tratamento empirista dos fatos e dos processos, porque os recolhe tal como se apresentam empiricamente, mas supõe que a sua existencialidade, sua racionalidade, não lhe é inerente mas, diferentemente, é suportada pelo sujeito, que é o pensamento.
O empirismo reside então na apreensão e incorporação dos fatos como se apresentam, sem que seja feita uma crítica deles. Hegel recolhe os fatos, considera-os tal como ocorrem na empiricidade mas, simultaneamente, lhes atribui uma racionalidade que lhes é extrínseca, nisto consiste seu empirismo.
Ao deduzir a racionalidade dos fatos e dos processos e não dos seus encadeamentos, de um sujeito que esses fatos e processos expressariam, Hegel parte da pura especulação. E ainda quando atribui aos fatos uma processualidade, direcionada por uma instância da qual são apenas a expressão, resvala para um dedutivismo revestido de especulação, uma vez que é a ideia, o pensamento pensado, que confere racionalidade àqueles fatos.
Assim, Marx demonstra como, no texto de Hegel, a verdade empírica é identificada com a verdade filosófica. Ou seja, para este pensador, a verdade filosófica – o movimento do pensamento – se expressa na verdade empírica. A empiria é a encarnação da verdade filosófica. Para Marx, este filósofo busca na empiria, no desenvolvimento dos fatos, a expressão de uma verdade que lhes é exterior, superior e anterior, inscrita no desenvolvimento da ideia.
2 – OPOSIÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA ENTRE MARX E HEGEL
A Crítica à Filosofia do Direito de Hegel mostra que Marx segue um caminho diferente do hegeliano; sua construção parte da verdade empírica para a verdade filosófica. Daí a necessidade de distinção entre o pensamento dos dois estudiosos: Hegel encontra no objeto – nos fatos, na empiria – a razão da lógica do pensamento, enquanto Marx concentra-se em descobrir a lógica do objeto.
Marx não infirma os procedimentos hegelianos, entretanto, demonstra que Hegel tenta distinguir da verdade empírica uma verdade filosófica, esclarecendo que na empiria, enquanto aparência das coisas, dos fatos, não se lê a verdade. Este é um ponto fundamental no pensamento marxiano, que traz ainda algumas categorias hegelianas na relação entre essência e aparência. É relevante ressaltar o princípio do qual parte para analisar essa relação entre aparência e essência: Se a aparência das coisas expressasse toda sua verdade, não seria preciso investigá-la, bastaria olhar para a coisa e já se teria a verdade.
Por essa razão, Marx ressalta que a aparência das coisas ou dos fatos, ao mesmo tempo em que revela também oculta a verdade; ao mesmo tempo em que indica também despista. Por isso, depois de tomar o objeto diretamente da empiria, deve-se reconduzi-lo à sua verdade filosófica. Esta verdade filosófica é sua lógica interna; aquilo que carrega na essência.
Marx não identifica a lógica do real com a do empírico; o empírico é um nível necessário do real, a sua aparência. Cabe à razão avançar além dessa aparência em busca da essência. O problema não é que a aparência seja uma inverdade, seja falsa; ela faz parte do real, é expressão do real, mas não é expressão da estrutura efetiva, íntima, íntegra do real, capaz de expressar a verdade filosófica.
Nesta distinção marxiana, existe uma questão teórico-metodológica de fundamental importância, que se contrapõe ao pensamento de Hegel: É o princípio de que à razão cabe desvendar o objeto e reproduzir a sua lógica; enquanto o movimento hegeliano busca encontrar no objeto a lógica da razão. É neste sentido que Marx afirma que o objeto da Filosofia Política de Hegel não é o Estado, mas o Estado como razão lógica. É, portanto, essa lógica hegeliana que Marx diz hipostasear e mistificar o sujeito; mistifica porque introduz na realidade um sujeito que lhe é extrínseco, que não está inserido na realidade e que é exterior a ela; hipostasia na medida em que o desmembra de seus predicados. O sujeito passa, então, a expressar-se por predicados; e os predicados, por sua vez, descolam-se do sujeito.
Esta discussão se estende ainda à universalidade hegeliana, na medida em que é construída por hipostasias, com a reunião de traços particulares. Na crítica ao idealismo de Hegel, Marx recupera a que faz Aristóteles à metafísica de Platão, ao idealismo platônico, com a categoria do substrato do real, que não consiste no desenvolvimento conceitual do conceito, mas antes de tudo no próprio movimento da realidade.