CAPÍTULO III – LEITURA DO TEXTO DE 1843 – MANUSCRITO DE KREUZNACH
No Manuscrito de Kreuznach, parágrafo 262, se encontra a seguinte questão:
[…] a Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais de seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude, para ser, a partir da idealidade delas, Espírito real e infinito para si, divide, por conseguinte, nessas esferas, a matéria dessa sua realidade, os indivíduos como a multidão, de maneira que, no singular, essa divisão aparece mediada pelas circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria de sua determinação. (MARX, 2005, p. 29)
É assim que Karl Marx começa a desmontar a construção hegeliana:
Aqui aparece claramente o misticismo lógico, panteísta. […] A ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado é apreendida como sua atividade interna e imaginária. (idem, ibidem, p.30)
É com a oposição deste fundamento que Marx aponta onde está o misticismo. Entretanto, “[…] a família e a sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, na especulação, isso se inverte.” (p.30) (especulativo aí é o movimento do pensamento hegeliano).
Enquanto a ideia é subjetivada por Hegel, os sujeitos reais, a sociedade civil, a família, as circunstâncias, o arbítrio, etc, se transformam em momentos objetivos da ideia, irreais, revestidos de um sentido diferente. A atribuição material do Estado no indivíduo, “pelas circunstâncias, arbítrio e pela própria escolha de sua determinação”, não é simplesmente anunciada como verdadeira, necessária, justificada em si e para si; não é dada em si como racional, embora o seja de tal modo que aparece como mediação aparente, adquirindo o significado de uma determinação, de um resultado, de um produto da ideia.
A diferença não reside no conteúdo, mas na maneira de considerá-lo. Esta acaba sendo uma questão de dupla significação – esotérica, internamente, e exotérica, externamente –, ou seja, o conteúdo radica na parte exotérica (dado por algo que lhe é exterior: a ideia); já na esotérica encontra-se sempre o conceito lógico. Entretanto, o aspecto exotérico corresponde à tarefa que realiza o movimento, próprio da parte externa, como o pensamento é o movimento do sujeito e não o sujeito real.
Precisamente, nessa atribuição exotérica de Hegel, percebe-se a relação entre filosofia e verdade empírica, uma vez que este estudioso considera a verdade empírica como verdade filosófica.
Para fazer essa diferenciação, Marx explica, ainda no parágrafo 262, onde está o mote de toda a sua crítica:
A finalidade de sua existência (do Estado e das duas esferas família e sociedade civil) não é essa existência mesma, mas a Ideia segrega de si esses pressupostos, para ser a partir da idealidade delas espírito real e infinito para si. (idem, ibidem, p.30)
Isto é, o Estado político não pode existir sem a base natural da família e a base artificial da sociedade, pois estas são instâncias indispensáveis à sua existência; entretanto, a condição é formulada inversamente por Hegel, como se fosse o condicionado, o determinante pelo determinado, o produtor pelo produto de seu produto.
Na ideia não se resolve a finitude da família e da sociedade civil senão para produzir, por sua supressão, sua infinitude em si e para gozar dela. Atribui-se, pois (para alcançar sua finalidade), “a estas esferas, a matéria de sua realidade finita” (mas estas esferas são sua própria realidade finita, sua matéria), são “os indivíduos enquanto multidão”; e “a especulação enuncia um fato como fato da ideia, não como ideia de multidão, senão como fato de uma ideia subjetiva, diferente do mesmo fato.” (grifos nossos, p.31).
Outro aspecto importante dessa discussão é que:
[…] a realidade empírica é, portanto, tomada tal como é; ela é, também, enunciada como racional; porém, ela não é racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua existência empírica, possui um outro significado diferente dele mesmo. O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico. (p.31)
Ou seja, Hegel considera que os fatos são apreendidos e incorporados, não como ponto de partida para a reflexão desvendar a sua verdade filosófica, mas como expressão, produto dessa verdade.
Estas questões postas por Marx são formuladas diante de dois processos intelectuais distintos. Vejamos o parágrafo 267 (p.32), onde Hegel pontua:
A necessidade na idealidade é o desenvolvimento da Ideia dentro de si mesma; ela é, como substancialidade subjetiva, a disposição política e, como objetiva, diferentemente daquela, é o organismo do Estado, o Estado propriamente político e sua constituição.
É de se observar que se trata de um movimento exotérico; movimento do desenvolvimento conceitual do conceito.
A argumentação de Marx desmonta logo essa afirmativa: O sujeito aqui, “a necessidade na idealidade”, – “a ideia em si mesma” –, ‘o predicado’, é a disposição política e a constituição política. Em outros termos: a disposição política é a substância subjetiva do Estado; sendo a constituição política sua substância objetiva. Por conseguinte, a transformação lógica da família e da sociedade civil no Estado é pura aparência, pois não se demonstra como o sentimento familiar e o civil; a instituição da família e as instituições sociais, como tais, se relacionam com a disposição política e a constituição política e coincidem com ela.
Deve-se observar que Hegel transforma sempre a ideia em sujeito, fazendo do sujeito real, propriamente dito, tal como a “disposição política”, o predicado. Mas, o desenvolvimento se efetua sempre do lado do predicado, o que salienta sua inversão.
No comentário ao parágrafo 269 (p.33), Marx explica que só na aparência Hegel dissolve a “constituição política” na ideia abstrata e geral do “organismo”, mas em sua própria opinião, e segundo a aparência, faz surgir da “ideia geral” o determinado. O sujeito da teoria transforma em produto, em predicado da ideia. Não desenvolve seu pensamento de acordo com o objeto, mas desenrola o objeto partindo de seu pensamento, terminando em si, o que acaba na esfera abstrata da lógica.
Não se trata de expor a ideia determinada, mas de travar uma relação entre a constituição política e a ideia abstrata, de classificá-la como enlace da história de sua vida (da ideia), o que é uma mistificação manifesta.
Observa-se, com isso, que Hegel não trata de estudar a lógica da constituição política, mas de encontrar nela um laço, um elo de uma corrente muito maior que é a evolução da ideia.
Em seu comentário ao parágrafo 270 (p.36), ponto no qual Hegel mostra os diferentes poderes do Estado e como este se manifesta nestes poderes, Marx observa que, na exposição de Hegel são transformadas em sujeitos: a realidade abstrata, a necessidade (ou a diferença substancial) e a substancialidade, isto é, as categorias abstrato-lógicas são qualificadas como realidade e necessidades do Estado, pois:
Ela (a realidade abstrata, a substancialidade) é a necessidade do Estado, enquanto sua realidade se divide em atividades distintas, cuja distinção é racionalmente determinada e que são, com isso, determinações estáveis. A realidade abstrata do Estado, a sua substancialidade, é necessidade na medida em que o fim do Estado e a existência do todo só se realizam na existência dos poderes distintos do Estado. (p. 37)
Mas, 1) “ela”, a “realidade abstrata” ou “substancialidade” é sua própria necessidade; 2) “ela” é a que “se divide nas diferenças ideais de sua atividade”. As “diferenças ideais” são também, por meio daquela substancialidade, determinações “reais fixas”, poderes; 3) a “substancialidade” já não é considerada como uma determinação abstrata do Estado, como “sua” substancialidade como tal; é transformada em sujeito. Então, finalmente, conclui: “essa substancialidade é precisamente o espírito que passou pela forma de cultura, que se conhece e deseja”.
Observa-se que traços de uma particularidade – a substancialidade, a vontade, a necessidade – são erigidos como categorias universais e se transformam em categorias lógicas. Marx explica mais adiante que não é a análise do Estado que preocupa Hegel, mas expressar a lógica do Estado.
O item d, da página 38, refunde e sintetiza toda a aporia marxiana, ao definir que:
O conteúdo concreto, a determinação real, aparece como formal; a forma inteiramente abstrata de determinação aparece como o conteúdo concreto. A essência das determinações do Estado não consiste em que possam ser consideradas como determinações do Estado, mas sim como determinações lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata. (p.38)
O objeto é retomado, mas a sua essência, a sua estrutura, a sua legalidade, a sua racionalidade não são próprios dele, porque lhe são exteriores; assim:
O verdadeiro interesse não é a filosofia do direito, mas a lógica. O trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas existentes se volatizem no pensamento abstrato. O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. (p.39)
É preciso lembrar da correlação entre verdade empírica e verdade filosófica no pensamento hegeliano. Assim, a lógica não serve para provar a existência do Estado, mas, ao contrário, o Estado serve para provar a lógica.
Nesse sentido é preciso indicar a determinação marxiana fundamental ao longo do texto de 1843. Para Marx, Hegel tem o mérito de tratar do Estado presente, ou seja, do Estado contemporâneo. Não trata de um Estado abstrato, mas do verdadeiro Estado, real, concreto. A Filosofia do Direito, de Hegel, obra sobre a qual Marx se debruça nesse momento, foi escrita em 1821, depois do intenso, corrosivo e subversivo da Revolução Francesa e depois do processo restaurador surgido no Congresso de Viena, em 1815.
Esse Estado que é analisado por Hegel, e que ele acaba de sancionar, é um Estado que pretende submeter a sociedade civil e a família. Hegel o recolhe, não busca a sua legalidade, a sua racionalidade, a lógica efetiva, porque o vê como realização lógica, o que acaba por sancioná-lo: “Esse Estado, por ser real, passa a ser racional”.
O real nessa lógica hegeliana é a condensação dessa racionalidade esotérica. Na verdade, o discurso hegeliano é o discurso do Estado que ele analisa. É o Estado que se propõe, precisamente, a apresentar-se como a expressão racional do movimento real.
Outro elemento que se repete no texto é o conceito de soberania. Vejam a página 43, parágrafo 279, onde Hegel discute a questão da soberania do Estado, à qual Marx faz uma crítica ontológica. Marx contrapõe aquilo que seria o senso comum do seu tempo à formalização hegeliana:
Hegel transforma todos os atributos do monarca constitucional na Europa atual em autodeterminações absolutas da vontade. Ele não diz: a vontade do monarca é a decisão última, mas a decisão última da vontade é o monarca. A primeira frase é empírica. A segunda destorce o fato empírico em um axioma metafísico. (p.45)
Observemos como a empiria é recolhida por este pensador; uma vez que seu ideal é a monarquia constitucional, a questão que se coloca é a seguinte: Como é que o real empírico é incorporado e, ao mesmo tempo, se lhe atribui uma racionalidade que lhe é exterior? Este texto de 1843 é, exatamente, a crítica marxiana desta inversão.