CAPÍTULO IV – UM CAMINHO PARA O COMEÇO
CRÍTICA À FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL – INTRODUÇÃO
Esse texto é escrito no final de 1843 e início de 1844, mas sua compreensão só se efetiva com leitura do Manuscrito de Kreuznach. A partir do Manuscrito, Marx produz uma crítica e publica com o título: “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Nela, contém duas ideias fundamentais:
1) A emancipação humana é, antes de tudo, uma autoemancipação. O processo de emancipação faz com que o sujeito se liberte, trazendo, portanto, uma questão atrelada a si, que não estava presente nos Manuscritos de 1843:
A Revolução Social, que se dá por meio da supressão da propriedade privada, ideia surgida em 1843, como horizonte, mas que retorna com A Questão Judaica. Na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel é posta como resultante de uma Revolução Social, cujo condicionante é a promoção da autoemancipação.
2) O aparecimento da categoria proletariado. Na concepção marxiana, o proletariado está como sujeito social, que sofre a alienação da ordem burguesa, mas sem ser passivo. É um elemento sensível, encarnação da alienação, da humilhação e da servidão. O contexto dessa descoberta é Paris, onde Marx se defronta com a classe operária, com o movimento operário e o movimento socialista.
Marx caracteriza o proletariado como coração da Revolução Social, sendo a cabeça a filosofia. E a possibilidade de revolução, para este pensador, dependia da junção desses dois elementos: do proletariado, enquanto coração da ordem burguesa, e da filosofia, órgão capaz de formular as bases para a revolução₁₆. Esta tese é questionada por vários estudiosos marxistas, a exemplo de Rosa Luxemburgo, que apontam suas limitações históricas.
Entretanto, é válida no que diz respeito à deflagração da luta operária revolucionária, não enquanto seu desenvolvimento; ou seja, para deslanchar a gênese de uma consciência revolucionária é necessário um vetor de fora do mundo operário. Porém, uma vez constituída a consciência, esta ganha uma dinâmica que lhe é própria. Assim, a participação externa funciona, enquanto gênese do processo; mas, a partir daí, a própria classe trabalhadora levará a diante tal empreendimento.
É importante analisar a filosofia à qual Marx se refere; porque não é especulativa, pois já deixa patente, embora embrionária, uma unidade entre filosofia e ação. Isto objetiva-se na afirmativa de Marx, quando explica que só o coração faz pulsar a negação dessa ordem, mas que é insuficiente, pois é preciso que esteja vinculado a uma reflexão que ele sozinho não é capaz de formular.
É por isso que, no final do texto, Marx afirma: “A hora da revolução na Alemanha soará junto com o canto do galo gaulês.” Ou seja, que a revolução na Alemanha acontecerá a partir da revolução na França. Marx considera que, na Alemanha, a cabeça já está constituída, mas não o coração. Este havia sido composto na França, onde tinha início um processo de urbanização, industrialização e formação de uma classe operária.
O texto aponta ainda para uma concepção internacionalista, uma vez que, para Marx, o “galo gaulês” é quem pode despertar a “coruja de Minerva”, de Hegel, que é a filosofia.
Nesse texto, emerge a concepção de proletariado e uma relação exterior à Alemanha, mas pensada em termos de unidade extra-nacional. A Questão Judaica e a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel devem ser analisadas como expressão de uma mesma problemática, porque ambas contêm o aprofundamento das concepções de 1843 e apontam para a apreensão de Marx do mundo do trabalho em Paris. São também transnacionais, mostram o percurso que Marx está realizando, desde a ideia de que a crítica política só tem base se for feita a partir da crítica da sociedade, até a emergência do novo sujeito, o proletariado, e seu papel.
Na verdade, esses dois textos representam um avanço na compreensão da realidade e o resultado das reflexões de Marx quando de seu caminho de Kreuznach a Paris. Neles, surgem os novos sujeitos da história, e também a preocupação com a miséria, junto à ausência de perspectiva quanto à emancipação política na Alemanha. Embora o provincianismo político alemão comece a dar lugar a uma referência constante, ao que se passa para além do Reno, ao que está em ebulição no resto da Europa Ocidental. Mostram ainda o deslocamento de Marx da condição de pensador alemão para a de pensador não-cosmopolita, universal.
A universalidade teórica de Marx desenvolve-se quando apanha o proletariado, não como aquele que sofre a miséria da ordem burguesa, mas como sujeito que pode universalizar, não o seu sofrimento, mas a recusa da ordem burguesa. Ou seja, o estatuto da universalidade da reflexão marxiana se firma quando o proletariado começa a tomar vulto em seu horizonte intelectual, como sujeito político privilegiado, que tem papel revolucionário na sociedade.
Assim é que, se 1843 foi ponto de chegada, também constituiu o ponto de partida. Um ponto de chegada porque Marx precisa entender a insuficiência da crítica jurídico-política, para resolver a questão política. Tem de perceber a necessidade de transcender os limites jurídico-políticos, para superação e negação do ordenamento político.
Um ponto de partida porque essa constatação não aparecia como concreção histórica. Marx apenas apontava para a necessidade da crítica da sociedade. Daí por que não consegue fundar a ideia de “democracia verdadeira”, com sujeitos sócio-históricos determinados. Por isso, o apelo ao conceito, extremamente vago, de povo. Esse conceito começa a desenhar o caminho para a crítica social, que é a crítica à propriedade privada.
Na Introdução, a crítica da propriedade privada implica em uma revolução, que não aparece como petição, mas encontra um vetor de orientação, que é a filosofia. Esta, por sua vez, ao se colocar como vetor de orientação revolucionária, perde o estatuto de razão meramente especulativa, passando a se vincular a um projeto de intervenção. Entretanto, é necessária a existência de uma categoria nova, que realize não apenas a dissolução do político, mas a própria ação. Tal categoria se faz presente no texto seguinte, é a práxis.
Na Introdução, já começa a se formular um sujeito que não é mais povo, mas uma classe.
É preciso ressaltar que, os textos de 1843 a 1845 não devem ser analisados isoladamente, ou vistos sob uma ótica de evolução ulterior, porque não chegam a ser a formulação de uma concepção conclusa de sociedade; mas o desenvolvimento de uma construção teórica, na qual o pensamento de Marx está caminhando, se concretizando, em um processo que visa apanhar a realidade. Marx constitui a sua originalidade, iniciando em 1843, mas ainda como crítica abstrata, porque apanha as características deletérias da sociedade, apontando apenas para sua origem, a propriedade privada.
É, na verdade, com esses dois textos, que Marx inicia sua vida intelectual em Paris. Eles são como seu “passaporte” para os movimentos sociais, a partir das organizações secretas de tradição blanquista, do movimento francês; ou seja, do Movimento Operário francês. Esse “visto de permanência” dura pouco, porque Marx é expulso em 1845, mas constituiu um vínculo oportuno à condução de seu pensamento, embora seja ainda insuficiente.
Paris, durante a estada de Marx, congrega os mais diversos revolucionários expulsos de suas pátrias. Por isso, entrou em contato com os revolucionários russos, a exemplo de Bakunin, com os emigrados carbonários italianos, tendo em torno de si o mundo do trabalho dos operários socialistas. É também o momento em que Marx estabelece contato direto com Engels, interagindo em um mundo novo para si. Tal contato resulta em uma reflexão profunda, que não é publicada em sua época, só em 1932. Nesse material, está feita a crítica da ideologia alemã, a ruptura com Feuerbach, e a recuperação de traços de Hegel. Enfim, a preparação do que se constitui o mais avançado programa de estudo e pesquisa iniciado em 1843.
MANUSCRITOS ECONÔMICOS E FILOSÓFICOS DE 1844
Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, escritos em 1844, há alguns elementos radicalmente novos, dentre os quais está a elaboração de uma filosofia, que tem o objetivo de subsidiar a ação, o que não se encontra em Hegel, nem em Feuerbach. Para fundamentar essa concepção, Marx trabalha com a antropologia, retornando a Hegel, embora preserve sua opinião.
Nos Manuscritos, verifica-se a preocupação não apenas de investigar, mas de expor resultados da investigação. Nele, se encontram três pontos que o singularizam em relação aos anteriores:
1) A expressão do contato de Marx com o Movimento Operário, que não trata mais da Revolta da Silésia, posto Marx passar a viver a organização e o debate sobre a condição operária, estabelecendo suas primeiras relações com o mundo do trabalho. É uma passagem fundamental, porque não se liga às lideranças, senão aos núcleos operários combativos. Se em suas viagens Marx já identificava esse sujeito, agora esse protagonista de uma nova história começa a ser conhecido em sua realidade empírica.
Marx frequenta grupos de exilados e estabelece relações com lideranças do Movimento Operário de toda a Europa Ocidental. Esta é a primeira marca nova desse período que se reflete no texto.
2) O estudo da economia política, com a qual, desde os trabalhos da Gazeta Renana, tem se defrontado. No primeiro semestre em Paris, se dedica intensivamente ao estudo da economia política. Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos trazem as primeiras implicações de suas análises. Estas serão aprofundadas de 1846 a 1848. É uma primeira análise fecunda, que constituirá um eixo de sua crítica social. Isto porque, se em 1843 há um deslocamento da análise política para a social, é agora nos Manuscritos que se tem uma crescente historicização e concretização dessa crítica. Este processo levará ao eixo da obra marxiana: a crítica da economia política. A economia política, estudada por Marx em Adam Smith e David Ricardo, aparece como uma teoria da ordem burguesa, um conhecimento básico da teoria social, uma teoria burguesa da sociedade do capital. Os economistas políticos clássicos não estavam interessados em saber como funcionava uma empresa, nem como o orçamento nacional se distribuía em rubrica, mas apenas em conhecer a gênese e funcionamento da ordem burguesa.
3) A dupla análise. Os três textos em enfocados aqui, A Questão Judaica, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito e Manuscritos Econômicos e Filosóficos, apesar de serem de natureza distinta, contêm uma mesma estrutura, porque são atravessados pelo que poderia se chamar de dupla análise ou dupla descrição, a saber: uma descrição da pobreza dos homens em uma sociedade que historicamente é aquela que mais produz riquezas. Não é por acaso que os textos de 1843 são amplamente utilizados nas várias correntes humanistas do século XX, mesmo aquelas que não se prendem à tradição revolucionária marxiana incorporam elementos dessa descrição.
A força dos Manuscritos e a atração que exerceu no século XX estão no fato de colocar a análise da miséria e da situação humana em uma sociedade que, historicamente, é a que mais produz riquezas. Toda a dicotomia, percebida no mundo Ocidental, entre ter e ser, se encontra nesse texto. E, a outra descrição, que consiste no contraponto da primeira, é que nele trata-se do fim da alienação na sociedade comunista.
Esses três pontos são novos, apesar do percurso em que foram construídos ter sido de continuidade e ruptura, vez que há certos resgates de textos anteriores.
Tanto os elementos novos quanto a visão universalizante estão vinculados à compreensão do desenvolvimento da propriedade privada.
N’A Questão Judaica, está posta a ideia de supressão da propriedade privada e a crítica da cidadania, que discute a “verdadeira democracia”. A alienação, bem como a desalienação estão vinculadas à construção da sociedade, à geração da propriedade privada e à sua supressão. A constituição da propriedade privada resulta no homem alienado e, a sua supressão, na desalienação do homem.
Na acumulação de processos, fenômenos e categorias, com base nos elementos novos à obra marxiana, aparece a reivindicação da sociedade comunista. Esta, ainda não detalhada, aparece para denotar, não outros atores, mas a condição de Marx como pensador.
Na realidade, todos esses elementos são intercorrentes, pois o pensamento de Marx está operando uma síntese revolucionária que toma forma na crítica que, juntamente com Engels, faz à ideologia alemã. Nos Manuscritos, há uma crítica teórica à economia política, pois ao se debruçar sobre os clássicos da economia política, Marx toma como referência o estudo realizado por Engels, mostrando que os pensadores ingleses tratavam suas categorias como categorias eternas. Ainda nos Manuscritos, Marx recupera essa reflexão e constrói toda uma concepção a partir da posição de Engels, fazendo uma crítica à economia política e demonstrando o seu caráter ahistórico. Explica que os problemas da economia política surgem fundamentalmente do fato de se tomar as categorias, com as quais se trabalha, como se fossem categorias dadas, conclusas, enfim, ahistóricas.
A partir daí, o desenvolvimento da concepção marxiana terá como fundamento a ideia de que a compreensão da ordem burguesa só será possível pela crítica da economia política. O primeiro resultado dos estudos de Marx, publicado em 1859, é a Introdução à Crítica da Economia Política. É aí que a análise da economia política aparece com elementos críticos, com a afirmação de Marx de que a ciência da economia política não trabalha a partir de fundamentos históricos, pois mistifica seus fundamentos.
Apesar de apanhar a concepção desenvolvida por Engels, Marx vai além, na medida em que desenvolve uma crítica da sociedade burguesa. No momento, é ainda insuficiente, como o tratamento que é dado a Ricardo. Isto porque Ricardo continua utilizando as determinações de Adam Smith, que considera o valor econômico ser constituído pelo tempo de trabalho, instaurando, assim, as bases da teoria do valor-trabalho. Contudo, após estudos mais aprofundados, Marx incorpora, de forma crítica e seletiva, a teoria do valor-trabalho, que se tornará um pilar insubstituível na arquitetura de seu pensamento. Porém, no texto de 1859, a ideia fundamental na análise da economia política é a de que essa ciência tem um caráter apologético, porque tende a ser a legitimação de uma dada sociedade, congelando, mistificando e eternizando as suas categorias. Essa crítica do caráter ahistórico das categorias, Marx retoma quando do seu embate com Proudhon, na Miséria da Filosofia. Mas, também, neste texto não consolida uma diferenciação entre os momentos constitutivos da economia política, o que só fará na construção d’O Capital.
N’O Capital, Marx demonstra que, até 1830, a economia política deu conta da ordem burguesa, mas o cinismo com que os clássicos dessa ciência tratavam as iniquidades da ordem burguesa era historicamente justificado, porque a burguesa se punha como classe progressista; era a vanguarda do progresso social. Entre 1830 e 1848, a situação será deslocada e, a partir daí, começa o período de decadência; momento em que os economistas políticos passam a fazer simples apologia à realidade.
Em 1844, Marx não faz distinção entre um processo de constituição teórica estrito, da economia política, e a sua transformação em apologia. Esta será a aproximação, porque Marx não havia entendido o conteúdo efetivo, a substância verdadeira, da obra ricardiana. É no texto de 1859 que apresenta uma reflexão, ainda simplista, de sua elaboração teórica, ao mesmo tempo em que constitui o eixo fundamental do conjunto de seus estudos sobre a economia política, partindo do período em que a burguesia toma posição defensiva em face das lutas de classe.
Tem-se, ainda, a elaboração de uma crítica da ordem burguesa que não se limita à questão política. Pela primeira vez, à base da crítica da economia política, Marx começa a fundamentar sua crítica à ordem social. Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, elabora a crítica socioeconômica da ordem burguesa e do sistema capitalista, focando o fenômeno da alienação; cuja temática é de raiz hegeliana.
Em Hegel, que era um idealista objetivo, a realidade era produto de uma alienação do espírito; o alienar-se era o sair de si mesmo, objetivar-se. O espírito, quando se objetiva, se aliena de si, sai de si. Tal alienação, que em Hegel é objetivação, coloca a polaridade espírito/mundo, na qual o espírito nega o mundo, que se resolve em uma síntese, que é a negação da negação, onde espírito e mundo se reconciliam.
Assim, para Hegel, alienar e objetivar são processos idênticos; para Marx, o fenômeno da alienação se distingue nitidamente do fenômeno da objetivação, porque o homem é, antes de tudo, um ser objetivo; ou seja, um ser que carece sempre de objetivar-se. É um ser que só se mantém enquanto tal na medida em que se objetiva, que produz objetivações nas quais se inscreva. Com isso, Marx quer dizer que o homem é necessariamente atividade. Só se pode pensar o homem enquanto um ser que se objetiva, um ser ativo. Essa atividade do homem produz objetivações, que consistem na expressão de sua situação de homem.
Tal atividade é humano-social. Porém, as objetivações só se tornam possíveis e requisitadas na medida em que esse ser objetivo é necessariamente um ser social. Por isso, afirma Marx que essa objetividade põe a possibilidade da subjetividade humana, que é tida como a apropriação de cada indivíduo do conjunto de objetivações da sociedade.
Nessa construção, se encontra uma das temáticas marxianas, segundo a qual a riqueza do homem – esse ser objetivo – consiste na apropriação conjunta de objetivações dos seres que constituem a sociedade. É a riqueza das relações humanas que está em questão. Isto posto, Marx diz que o homem pode ser um ser subjetivo porque ele é, basicamente, um ser objetivo. Esta concepção promove um ponto de ruptura entre o humanismo marxiano e os demais, porque para Marx a riqueza subjetiva deriva da objetiva e, a tradição do humanismo cristão, por exemplo, em suas várias vertentes, acredita que é possível ao homem objetivar-se, porque há uma subjetividade em que brilha a faísca divina. A concepção marxiana trata de um processo especificamente antropocêntrico: a riqueza individual é aquela que pode ser apropriada no plano da sociedade; só se é rico subjetivamente na medida em que ocorre a apropriação das objetivações sociais.
Não resta dúvida de que essa apropriação é um jogo contínuo, porque as objetivações incorporadas à subjetividade possibilitam um florescimento maior e, portanto, um enriquecimento das objetivações sociais como um todo. Isto quer dizer que ser rico, subjetivamente, é ter se apropriado da riqueza objetiva de relações. Marx destaca que esse ser, pela sua estrutura, pela sua essência, é um ser autocriado.
O suposto de toda essa discussão, que não é axiomático, mas que se comprova na elaboração, é o de que há uma essência no homem. Não é uma essência humana dada, conclusa e fechada, mas é algo anterior, é a acumulação de conquistas na autoconstrução humana. O homem é um ser que se institui a si mesmo, é produto de sua atividade. A estrutura que resulta dessa atividade é, portanto, uma estrutura em movimento, que põe possibilidades e limites ao ser.
É preciso destacar que a essência humana não é algo dado, é construído em aberto, vai se fazendo ao longo de um processo histórico. Não é a suposição de uma essência humana imutável e atribuída ao homem. A essência humana, segundo Marx, é o elemento de atividade, porque o homem é um ser prático e social. O caráter prático é indissociável do caráter social. A estrutura essencial do homem é o processo de objetivação e de recuperação das objetivações.
Enquanto para Hegel a objetivação é a alienação, Marx acredita que objetivação seja a condição fundamental para a estrutura antropológica do homem. Porém, apenas em condições historicamente determinadas é que essa objetivação se metamorfoseia em alienação. Isto ocorre quando os homens não têm condições de reconhecer, nas objetivações, a sua atividade.
Para Marx, a objetivação primeira é o trabalho. Esta determinação não é apenas a resultante da hominização, é, simultaneamente, sua causa e efeito. O trabalho não é apenas o produto típico da objetivação do ser homem, é o fundamento da condição de ser homem: o homem se autocriou pelo trabalho. É a atividade do trabalho que funda a condição do ser homem. A noção de trabalho é inseparável do ser prático e social que é o homem e, apenas em condição muito especial, o trabalho se converte em trabalho alienado. Essa condição é a propriedade privada e sua implicação, que é a divisão social do trabalho.
Marx, através de seus estudos e pesquisas, demonstra que é na ordem burguesa que a alienação chega ao ápice com o trabalho assalariado. É daí que Marx elabora sua crítica social, em 1844. E, a partir dela, diz que, essa sociedade que produz a riqueza máxima, o faz de modo que o caráter dessa objetivação faça desaparecer qualquer traço do seu criador. O processo de trabalho e seu produto deixam de fazer referência à expressão das qualidades da sua essência.
Na sociedade, quem mais trabalha, mais objetiva, é mais expropriado. Isto porque a riqueza, na ordem burguesa, deixa de ser riqueza das relações sociais, passando a ser o acúmulo dos produtos do trabalho que não se reconhece a si mesmo como realização dos indivíduos.
Enquanto determinação fundamental, o trabalho é a realização dos indivíduos. Mas o que Marx observa é que, se submete o trabalhador a uma jornada estafante, a uma condição de vida pauperizada, fazendo do trabalho não realização e sim condenação do sujeito. A liberdade e a realização do ser parecem estar fora e para além do espaço do trabalho.
Assim, a sociedade burguesa, sociedade do capital, é, portanto, a negação maior da possibilidade de objetivação do ser. É a negação da própria essência do ser. Nessa concepção, ressoa um forte viés ético, mas não eticista.
Na construção marxiana, a tentativa é a de mostrar que a alienação, derivada do trabalho, não aparece como uma determinação ahistórica, mas, ao contrário, é a expressão da divisão social do trabalho e da propriedade privada. Logo, categorias como salário, propriedade e divisão social do trabalho não são eternas, ahistóricas, nem remetem ao direito natural, pois são construções históricas. E, por ser construção histórica, o trabalho é um processo histórico, não é a forma definitiva do trabalho humano.
O que se precisa destacar é a historicidade das categorias, não apenas das categorias da economia política, mas das realidades a que tais categorias fazem referência e expressam.
É nesse processo que Marx apanha a concepção de “comunismo filosófico” de Moses Hess. Nas reflexões sobre a alienação, aparecem algumas elaborações fundamentais para compreensão do pensamento marxiano, principalmente quando se refere ao grande fetiche, que é o dinheiro.
N’A Questão Judaica não aparece com clareza uma crítica à economia política, porque é um texto ainda muito marcado pela filosofia. Nele, o fundamento desvendado é a relação assalariada. A remissão ao assalariamento é feita diretamente à ordem do capital, mas, ao mesmo tempo, fundamenta-se por certa base antropológica: a noção de uma existência humana rigorosamente historicizada. É nos Manuscritos que Marx faz a descrição da alienação na ordem burguesa.
Marx também alude ao comunismo; ao mesmo tempo em que faz a descrição da alienação na ordem burguesa, embora de forma precária, porque a questão é abordada tomando como referência as organizações anteriores, para mostrar como pode ser superado esse processo. A superação da alienação implica, necessariamente, a supressão da propriedade privada e da divisão social do trabalho.
Marx, nos Manuscritos, não empreende uma análise global da sociedade capitalista, sua temática principal é o trabalho assalariado, na relação que estabelece com o capital.
A análise, em termos históricos, quer do capital, quer do trabalho, é ainda incipiente. O aprofundamento, com uma análise universalizante, ocorre em 1847, na Miséria da Filosofia. Contudo, a análise da alienação fica na superfície, na medida em que não especifica as alienações particulares da ordem capitalista.
Na análise que Marx faz, da divisão social do trabalho e da propriedade privada, aponta a possibilidade de sua supressão e levanta a hipótese de que, em seu lugar, surgiria a propriedade social. Esclarece que a especificidade técnica não desapareceria, mas se daria a redução do trabalho a uma única forma, porque seria possível na nova sociedade desenvolver várias formas de trabalho. Assim, pode-se ser pela manhã pescador, à tarde caçador e à noite crítico literário. Todo o processo implica na transformação da organização social.
₁₆ Essa ideia é analisada por correntes marxistas como a antecipação da tese leninista, da constituição do partido de tipo novo. No texto de 1902, “O Que Fazer?”, Lênin coloca que a luta operária, por si mesma, é um elemento fundamental no processo revolucionário, mas que tem uma limitação, que é a consciência – consciência sindical –, que é o mais alto grau que a luta operária pode atingir, enquanto autodinamizada. É a luta no interior das fábricas: a luta por melhores salários, por melhores condições de trabalho ou, mais exatamente, a luta para redução da quota de extração, de expropriação do trabalho excedente. Mas, enquanto luta operária, não põe em causa o poder do capital. Assim, afirma Lênin, para que essa luta ganhe a dimensão de ultrapassagem da ordem burguesa, é necessária a construção de uma consciência teórica, que possa dar rumo ao movimento, à luta. Essa introdução é tarefa de um partido político de estrutura, de função e com características novas. Esse partido, no caso, foi o Bolchevique, depois conhecido como Partido Leninista.