CAPÍTULO IV – UM CAMINHO PARA O COMEÇO
REMISSÃO AO COMUNISMO
A supressão da propriedade privada implica na transformação da organização social; ou seja, na sociedade comunista.
Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos Marx rompe com o chamado “socialismo vulgar” e com o “comunismo vulgar”, buscando refletir sobre o comunismo como movimento histórico da ordem burguesa. É nesse texto que o proletariado se configura como classe. O proletariado como encarnação plena da alienação e como a única categoria que tem interesse em superar essa ordem.
A revolução implica em uma determinação interna da dinâmica da ordem burguesa. O proletariado, enquanto classe despida de qualquer possibilidade de realização humana, para afirmar-se como sujeito humano, precisa destruir a ordem que o gerou. Isto porque a propriedade privada é propagadora da alienação, que encarna, universalmente, em uma classe, o proletariado. Este se põe como negação de si mesmo e, portanto, como negação da propriedade privada.
Esta questão põe em relevo a teoria da Revolução Comunista, pois o surgimento do capital, e do seu pólo contraditório e necessário, que é o trabalho, está no texto fragilmente configurado. A discussão não é da produção e reprodução da ordem burguesa, mas da produção e reprodução da alienação da ordem burguesa.
Marx apanha a essência do fenômeno histórico da ordem do capital, localiza o sujeito ativo que pode superá-lo, mas não o determina concretamente, não o particulariza na análise da ordem burguesa.
Nesse texto, faz também algumas observações em relação à revolução, cuja característica fundamental seria a supressão da alienação no próprio movimento histórico. O comunismo, para Marx, não era um ideal, um projeto visionário, mas um movimento do real, de superação da propriedade privada e da divisão social do trabalho, colocado pela dinâmica de seu desenvolvimento e, tanto em uma como na outra, encarnado pelo proletariado.
O comunismo é caracterizado como a re-humanização do homem; porque o ser objetivo, o ser que se objetivisa, perde a objetividade com o processo de alienação do mundo burguês, na ordem do capital, que reconduz o homem à barbárie. A revolução seria a abertura de um espaço histórico, que permitiria a re-humanização do homem, fazendo com que a essência humana pudesse se expressar sem ser negada, como ocorre na organização da sociedade do capital.
Não é porque a ordem burguesa interdite a expressão da essência humana, o fato é que a essência se manifesta negando-se a si própria, através da alienação. Logo, o fim da alienação é a possibilidade de re-humanizar o sujeito social, o homem.
Em 1844, Marx caracteriza o comunismo, não como o fim da história, mas como o fim de uma forma de expressão da história; ou seja, como o início da verdadeira história humana. Ele afirmar que a sociedade burguesa é o fim da pré-história da humanidade. Explica ainda que o comunismo não é a meta da sociedade humana, mas a forma da sociedade humanizada. Não se trata de pensar a história como uma sucessão de épocas que vão se constituindo e se ultrapassando até chegar à sua forma acabada e perfeita. O comunismo seria um novo patamar no processo de transformação da estrutura da essência do homem. A ideia é que se gesta um patamar social cujas condições de objetivação e de riqueza são impensáveis. Assinala Marx que o comunismo é um salto histórico profundamente significativo na construção da sociedade humana.
O que se observa nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos é que há um afastamento de todo pensamento especulativo, inclusive o de Feuerbach, porque pensa o homem como ser prático e social. Em Feuerbach o ser prático é extremamente frágil. Com Marx, está colocada uma possibilidade que será desenvolvida posteriormente, nas Teses, onde demonstra que Feuerbach não vê o lado prático, ativo do homem.
Outra questão discutida no texto é a distinção entre objetivação e alienação, que vem de Hegel, mas agora recuperando a ideia de autocriação que é, ao mesmo tempo, uma contraposição a Feuerbach, dado o caráter de atividade que adquire.
Esse homem, que é produto de si mesmo, segundo Hegel, o é por um tipo de trabalho, o trabalho do espírito. Para Marx, o trabalho é visto enquanto metabolismo do homem com a natureza.
O importante é que, nos textos de 1843, são pontuadas as limitações do pensamento de Feuerbach, a partir de Hegel, de sua ideia de autocriação. Além de que, se as objetivações expressam a estrutura essencial do homem, e estes têm como ponto fundamental o trabalho, é o processo de trabalho que distingue esse ser de todos os outros. O trabalho é a forma das objetivações, mas as objetivações do homem não se limitam a tal processo. Esse processo põe outras objetivações, por exemplo, as várias linguagens; em especial, a linguagem articulada, que é um sistema especial de sinalização do homem. Falar de linguagem é, necessariamente, falar de consciência, questão que será abordada na Ideologia Alemã.
Assim, todo esse processo é deflagrado pelo trabalho. E, mais, linguagem e consciência põem a possibilidade do ser objetivo sentir-se universal; isto é, revela sua natureza genérica. É o conjunto de objetivações que estabelece o caráter prático e social do homem, o caráter universal da práxis. A práxis é a prática.
No universo intelectual de Marx, o conjunto de objetivações aparece fundado na prática. Agora, como essa categoria se constitui e qual o seu papel, no pensamento marxiano, só será clarificado em 1845; no confronto com Feuerbach. Tal confronte será, de um lado, o ajuste de contas com toda a ideologia alemã e, do outro, a ruptura com a filosofia enquanto razão especulativa.
REFLEXÕES SOBRE A IDEOLOGIA ALEMÃ
Na análise dos textos marxianos, em termos teórico-metodológicos, vê-se tanto a relação da razão do movimento histórico real, quanto a reflexão de Marx em face dos materiais que lhe estavam sendo postos. Não só os materiais histórico-factuais empíricos – os processos históricos que estava analisando –, mas toda a tradição cultural emergente, da qual se apropriava pela investigação.
Na crítica que Marx faz a Hegel, o conhecimento teórico da ordem burguesa não é uma hipótese explicativa, mas a expressão consciente do movimento do ser social dessa forma de organização; ou seja, o conhecimento torna racional o movimento do real. É no movimento que a história se racionaliza e a razão se historiciza. Não é que a história possa ser comandada pela razão, mas se torna compreendida, quando iluminada pela razão. É com esse movimento que a razão, mergulhando na história, se historiciza.
Assim é que em Marx não se tem uma análise explicativa por parte do sujeito, de como é que se comporta o objeto – a ordem burguesa –, na expressão teórica do sujeito, porque o que vem à tona é o próprio movimento da ordem burguesa.
Essa forma de apreensão do real, na concepção marxiana, está vinculada a um conjunto de circunstâncias históricas muito preciso: a sociedade burguesa constituída, o movimento da classe operária, etc.
A conjuntura teórica marxiana está sendo constituída desde 1843, com seu “esboço”, os Manuscritos de Kreuznach. Neste, Marx desmonta o discurso hegeliano, à luz do mundo contemporâneo. A escolha de Hegel para o embate não se deu por acaso, estava fundamentada nas suas leituras, porque Hegel logiciza o Estado moderno.
Marx tenta compreender como o Estado moderno se relaciona com a sociedade. Não concorda com a concepção hegeliana, do Estado como fundante da sociedade civil; por isso, procura perceber no Estado as contradições da sociedade civil.
Esse é um movimento embrionário, e Marx não consegue avançar nessa reflexão no terreno da política, do jurídico, então desloca a questão para o campo social; na medida em que percebe a necessidade de crítica da sociedade, para fazer a crítica do Estado, embora não esteja claro o caminho a seguir.
É quando se desloca para Paris, em finais de 1843, com o objetivo de continuar seus estudos sobre a realidade, juntamente com Ruge, nos Anais Franco Alemães, que se dão alguns fatos importantes a sua reflexão.
Marx não está apenas saindo da Alemanha, mas de uma realidade cujas hipotecas com o antigo regime são fortíssimas, direto para o mundo da modernidade, da revolução burguesa e da revolução industrial, da urbanização e da proletarização. Aquilo que conhecia por ecos e informações insuficientes, em Paris, conheceria de fato, porque a cidade já era burguesa, após 1830. Era o cadinho da revolução européia, que inicia em fevereiro de 1848.
Em Paris, estabelece uma efetiva relação com Engels que, por sua vinculação ao fenômeno burguês-industrial, descortina para o horizonte intelectual marxiano um elemento radicalmente novo.
Marx se vincula, na Paris de 1844, ao Movimento Operário Socialista, do qual tinha pálidas referências na Alemanha. É por isso que nos textos de 1844, A Questão Judaica e a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, já aparece um novo protagonista: o proletariado.
A insurreição da Silésia, na Alemanha, tinha sinalizado para esse fato; mas, só em Paris Marx interage com o Movimento Operário, percebendo que a esfera da política autônoma da classe operária não é um elemento teórico, mas efetivamente prático.
Daí porque o ano de 1844 é de profunda precipitação, na formação teórica de Marx, momento em que começa a estudar economia política; fato que transparece nos debates contidos nos Manuscritos de 1844.
A sua relação com Ricardo, primeiro contato seu com a economia política, não é muito clara no começo. Mas, a partir desse contato, os anos de 1845-46 vão assinalar o avanço da elaboração teórica marxiana.
É em Paris que está se formando, ainda que subterraneamente, o movimento que eclodirá em 1848. Marx, entrando em contacto com Engels, incorpora os debates de economia política para compreender a lógica da organização burguesa.
Ao se resgatar a trajetória de Marx entre 1843-44, verifica-se que dos Manuscritos de Kreuznach aos Manuscritos Econômico-Filosóficos ocorreram os seguintes fatos:
Marx se desvincula do programa político de Hegel, ainda que a problemática hegeliana, que dera nascimento à reflexão política moderna da sociedade civil, estivesse presente na discussão. Marx é um democrata radical, que se contrapõe à visão teórica de Hegel, amparado na crítica de Feuerbach ao pensamento hegeliano.
Em 1844, Marx resgata, ainda que de forma embrionária e pouco histórica, a perspectiva da revolução proletária. Isto se dá com a valorização de Feuerbach, em consideração à crítica que faz a Hegel.
São postos, então, os termos de um primeiro ajuste de contas entre Marx e a tradição pós-hegeliana, o que está expresso n’A Sagrada Família: crítica da crítica crítica. É aí que Marx, marcado pelas concepções de Feuerbach, juntamente com Engels, começa um balanço das tendências neo-hegelianas; ou seja, um debate com seus companheiros de 1841-42, Bauer, Ruge, etc.