Chegou cedo, como sempre faz. Na sala já se encontravam duas pessoas. Olhou-as e viu qual era a situação. Encaminhou-se à secretária que lhe sorriu e disse: volta? Sim, telefonei marcando. Mostra os envelopes dos exames. Ah! a doutora avisou que vai chegar atrasada… “como sempre…”, acrescentou, com certa malícia. Pode sentar-se, é a terceira.
Olhou ao redor e procurou um lugar onde não precisasse ver a televisão. Mas não consegue deixar de ouvir as reportagens assustadoras. “Criança de seis anos cai do vigésimo andar de um condomínio de luxo… a mãe estava na cozinha com um filho pequeno. O interfone toca, o porteiro avisando… Intervalo, propaganda de bebida, cosméticos, lojas em liquidação. Procura se desligar… abre o livro – sempre carrega um consigo -, esse, um pequeno livro de contos. O autor ganhou um prêmio. “Vindo de casa, a menina caminha sem pressa…”.
Nova reportagem: um menino que cai numa jaula de gorila. A secretária pergunta: foi onde? Nos Estados Unidos. As imagens mostram o animal arrastando a criança no lago da jaula e as vozes estridentes dos espectadores do zoológico e das pessoas na sala. A mesa da secretária fica recuada, não vê as imagens. Olha-as em frente na parede de vidro que separa a sala do banheiro. Mostra-se inconformada com a notícia de que precisaram sacrificar o animal para salvar a criança. E ouve atenta, o repórter dizer que a sociedade de proteção aos animais processou os pais por negligência, porque ele podia ter caído do apartamento. Disse, é, agora os pais não cuidam direito dos filhos…
Procura se concentrar, acompanha as peripécias da menina. Por um instante levanta a vista e constata que a sala já está repleta: oito pacientes fora ela, todas exibindo estágios diferentes de gravidez. Observa que prestam atenção ora ao que se passa na televisão, ora passando o dedo no telefone, vendo as mensagens. Olha o relógio, já se passaram duas horas. A porta abre-se num rompante, a médica entra de nariz empinado e um seco “bom dia”. Passa por ela, trocam olhares. Conhece-a há tempo.
A primeira paciente é chamada. Levanta-se com dificuldade e se arrasta atravessando a sala até a médica que a espera. Volta à leitura. Antes passa a vista na sala. A TV exibe notícias de trânsito, chuva, previsão… ninguém mais tem interesse. A secretária a falar ao telefone justificando que não tem mais vagas. Convênio só tem daqui a sessenta dias. Ah, particular, vamos ver se arranjo um encaixe para semana que vem…, agora… não sei, vou verificar. Tem que chegar logo, até às 13hs. Tudo bem, nome, telefone, valor é esse sim. Pode chegar, aí encaixo. Mas tem que vir agora, não vai faltar, não é?
Volta à leitura, antes consulta o relógio, a paciente já está há quase quarenta minutos. Alguém pergunta: por que demora? Ah, está para nascer, precisa ser examinada, ver se a criança está bem. No último mês tem que vir toda semana. Vai ser cesariana; já tem ideia da data, mas precisa ser examinada.
Continua na leitura, a menina caminhando descalça pelas ruas. O narrador vai acompanhando as peripécias, descrevendo o que ela vê ou o que lhe chama atenção. A porta se abre. Entra uma jovem de longos cabelos castanhos, seus olhares se cruzam. Lembra as netas, deve ter a mesma idade, uns vinte e poucos anos. Procura um lugar para sentar, as cadeiras ocupadas. Dirige-se à secretária, se identifica, passa um cheque. Quando sair da consulta dou o recibo, viu, diz. Vira-se, olha ao redor e fica indecisa.
Está cada vez mais interessada na leitura. Nota que a jovem se encaminha para
seu lado. Senta-se num pufe. Olhou-a, não tem barriga, corpo perfeito, “sarado” como
se diz. Lembrou-se de si naquela idade. Não tão bonita assim, mas tinha um corpo que
chamava atenção. Lá se vai mais de meio século, quase dez de viúva, um casamento de
quarenta anos. Agora caminha para os oitenta.
Sai a primeira paciente. Em seguida entra a outra, barriga começando a aparecer. Vai até a secretária: sou eu depois? É sim!
Retorna e continua a leitura, agora quase no final.
A menina está de volta a casa e conta para a mãe o que aconteceu no armazém. A jovem começou a ficar inquieta. Olhava para todos os lados e virou-se: “Conhece essa doutora há muito tempo”, sim, disse-lhe. “Foi indicação, quero um exame completo. Estou apaixonada, queremos um relacionamento sério; preciso saber se está tudo bem”. Ah, é jovem, deve estar grávida, ou vai querer filho logo! “Ah, meu namorado de antes queria, mas eu, não”. E agora esse vai querer! “Não, não é isso, é porque a minha namorada, por quem estou apaixonada quer um atestado médico dizendo que não tenho nada”.
Por uns segundos não soube o que dizer, olhou-a, sorriu. Rapidamente lembrou de um filme, o título falava da cor azul… aborda a relação entre duas mulheres, uma adolescente e a outra mais madura. O filme mostra todo o período de envolvimento, preparação, conquista e, finalmente, o ato sexual, exibido em detalhes. Baixa os olhos, estava no penúltimo parágrafo: “No banheiro, a menina se levanta da privada, os olhos pregados no espelho de barbear do pai, guarnecido com moldura barata… desengancha o espelho da parede, deitando-o em seguida no chão de cimento. Acocora-se sobre o espelho como se sentasse num penico, a calcinha numa das mãos, e vê, sem compreender, o seu sexo emoldurado. Acaricia-o demoradamente com a ponta do dedo, os olhos sempre cheios de espanto…”.
Estremece, uma cena lá longe, na infância, emerge em burburinho em sua memória. O irmão, um pouco mais velho, diz-lhe, quer ver como é diferente de mim e porque tem que urinar sentada? Pegou um espelho que trazia, colocou no chão: tire a calcinha, se acocore e olhe…, espantou-se com o que viu. Assustada levantou os olhos, ele disse: deixe-me mostrar como é. Começou a acariciar seu sexo, causando-lhe uma sensação de imensa satisfação. Não entendia o que acontecia; fez-se um silêncio úmido e distenso, nenhum ruído ali dentro… só o respirar levemente ofegante do irmão; luz, só a que entrava pela claraboia do alto da parede e, projetadas na parede numa sombra calma e fria de recolhimento, suas formas mergulhadas. O dedo começou a penetrá-la lentamente. A porta se escancara e a mãe entra. Agarra-a pelos cabelos, arrastando-a até a cozinha onde, com um cinturão, aplicou-lhe uma profunda surra. Ficou dias na cama recebendo curativos. Não lembra o que aconteceu depois… faz tanto tempo, devia ter uns sete e o irmão uns dez anos.
Ouviu chamar seu nome.
Apanhou a bolsa e os exames, a médica esperava na porta.
Como está?
Bem!
Sentou-se e sorriu.